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Contos fantasticos !!!
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Página 1 de 1
Contos fantasticos !!!
Contos Fantásticos
/ Terror / Ficção Científica / Insólitos /
Os contos serão postados abaixo em citações , basta abrir o spoiler para poder vizualizar
Última edição por Admin em Dom Out 30, 2011 5:20 pm, editado 2 vez(es)
Re: Contos fantasticos !!!
A CANTIGA DO MAL
Terror
Escrito por Lucas F. Maziero
Escrito por Lucas F. Maziero
- Spoiler:
- I
Solitário com sua lira
De melódica e suave
Canção, ávido procura
As insígnias: feras vê
Encarniçadas de ira,
E a dorida morte prevê
Apossar-se de sua alma
Amedrontada e perdida.
Em Iona, uma ilha ao largo do sudeste da Escócia, corria o verão do século VII. Julius, um bardo papalvo de versos medíocres, seguia com vagar por uma estrada árida e solitária, montado num jumento de carnes escassas. Como há dias cavalgava sem rumo certo, desanimado por não encontrar estímulos para suas canções, resolveu fazer uma visita a um seu amigo monge no mosteiro de Cantergod, onde habitavam cristãos celtas. Pelo menos essa visita lhe garantiria algumas horas de boa conversação, regadas com doce vinho e saboroso pernil, que os monges comiam muito à larga.
Declinando o dia, a noite principiava a chegar e via-se ainda o bardo a caminho, esquecido dos perigos que diziam existir naqueles descampados. O jumento, com sua natural morosidade, parecia insatisfeito e decidiu por si aumentar o passo, despertando Julius de uma cochilada que já durava algum tempo, estirado ao lombo do animal. Recolocando-se na posição de montar, abrindo aos poucos os olhos, o bardo percebeu que se tinham desviado do caminho anterior. Atravessavam uma floresta, e passavam por uma trilha desusada. A lua mostrava-se cheia no alto do céu. As árvores projetavam sombras caliginosas, e foi preciso que se acendesse um candeio, retirado de dentro dum alforje.
— Eia, Murlão! - assim se chamava o jumento. - Por quais caminhos tu te foste meter! Já não sei aonde vamos, e decerto nos perdemos. A fome aconselha-me a comer, e pela tua falta não merecias compartilhar da minha ceia - e dizendo isso, Julius sacou do farnel uns nacos de queixo e pão, comendo-os muito a gosto. Murlão recebia na boca o seu quinhão, não ficou sem, e ornejava de contentamento.
Avançando cada vez mais pela trilha, a um determinado lugar surgiu uma névoa sufocante, oriunda duma fogueira, acompanhada de cantos que diziam palavras indistinguíveis, e isso pôs o bardo em sobressalto e em cuidados. Guiando Murlão para detrás duma árvore, como prevenção a que ninguém os notasse, ali permaneceram, esperando ver no que acabaria aquela fumaceira e aquelas vozes. Mas de repente nada mais se ouviu, e depois de algum tempo o ar ficou lúcido, o que muito causou espanto ao bardo. Ele acreditou que sua imaginação lhe pregava uma boa, e por isso continuou em frente.
Poucos passos andaram quando ao solo Julius viu um amontoado de gravetos queimados, vindo a indicar-lhe que não se tinha enganado, como pensou. Mas não havia pessoa alguma, o lugar era aberto, uma pequena clareira, e as árvores em torno tinham os troncos marcados com símbolos que pareciam arder em chamas. Aquilo lhe arroubou os olhos, e, admirado, saltou de Murlão e ficou contemplando um bom espaço os estranhos símbolos. Sussurros frágeis se faziam ouvir aqui e ali, e Julius ficou como que tomado por um instantâneo torpor, deixando-se cair semidesperto.
II
Invocando a besta mestra
Está o incauto bardo
Que, rodeado de olhares
Flamejantes, surgidos
De ocultos lugares,
Ledo ri alucinado
O nefando intento
Que sua lira cantou aos ventos.
Súbito se levantou ainda turbado, e tentou dominar os movimentos corporais. Voltando aos poucos a si, mas não de todo, encaminhou-se ao jumento e de suas bagagens tirou uma lira surrada, em seguida indo se acomodar sentado no sopé de uma das árvores. Tomado duma grande e obscura inspiração, o bardo experimentou as cordas, limpou a garganta e começou a entoar, tangendo a lira com uma macabra moção de dedos, uma medonha e sombria cantiga. As folhas dos ramos agitaram-se com uma brisa que soprou e os tais símbolos ficaram ainda mais chamejantes com as palavras que foram cantadas:
Venha, Endelói, liberto
Das malditas e sombrias
Trevas; venha, nefasto
Ser, invoque as fúrias
Famélicas, cruentas,
E domine a sua floresta.
Das moitas e brenhas retumbaram sinistros regougos e uivos, e olhos irados e rubros apareciam na tenebrosa escuridão. A floresta impregnou-se de sons animalescos e de vultos avultados que, desferindo bramidos contra a lua, exibiam as aguçadas presas de suas bocarras. O bardo permanecia numa espécie de transe, rendido a estímulos exteriores, ensoando cantigas que pareciam ser lidas nas árvores. Assim esteve ele grande parte da noite.
Ao despontar da manhã, Julius acordou com a boca amargosa e com o corpo doloroso, e a primeira coisa que fez foi esquadrinhar todo o local, procurando os símbolos. Nada viu senão o resto da fogueira e sua lira caída ao solo. Pasmado, riu-se e considerou-se um estúpido por acreditar que o que lhe tinha acontecido fosse verdadeiro. Tudo não passou de um estranho sonho, ou pesadelo. Considerou que, recitando versos que lhe brotavam do íntimo, os quais há tempos buscava, deixou-se levar ao som de sua lira e, cansado, adormeceu satisfeito. Era a explicação que sintetizou de suas vagas lembranças.
Mas uma sensação de temor perpassou-lhe pelos membros, e por isso quis sair daquele lugar o quanto antes. Achegando-se a Murlão, que a alguns passos dali devorava uns grelos, montou-lhe e tomou-lhe a correia, e sem demora partiram, vencendo a floresta e voltando a encontrar a conhecida estrada solitária, da qual não se deveriam ter desviado.
Era meado da tarde quando Julius alcançou a pacata aldeia de Cantergod. Passando pelas tortuosas ruelas, ele notou que as pessoas o olhavam desconfiadas e curiosas, o que não era de estranhar-se pelo aspecto magrizel do jumento e pela figura bizarra do bardo. Escutavam-se estranhos murmúrios das bocas dos rústicos sobre sinistros rumores terem ressoado durante toda a noite anterior, não longe dali. Havia um certo pavor nos olhos dos aldeões, e ele receou ser o motivo de tal pavor. Desfilou ainda um tanto pela aldeia e enfim chegou ao simplório pórtico do mosteiro, onde um gordo monge, que guardava a entrada, dirigindo-lhe um olhar inamistoso, a muito custo o deixou entrar. Em seguida Murlão foi conduzido por um almocreve não à cavalariça, mas a um lugar de menos qualidade, que lhe cabia mais a justo. Entrando no edifício principal, sem demora Julius foi recebido pelo seu amigo, o monge Ambrósio, a quem beijou as mãos pedindo benção, e disse:
— Reverendíssimo Ambrósio, espero que estejais contente por me verdes em vosso santíssimo lar. Vim porque há tempos vos devia uma visita cordial, e sabei que muito me agrada a vossa amigável hospitalidade.
— Que venhas em boa paz, filho meu - volveu o monge -, e que desta vez não aprontes das tuas indiscretas pilhérias com os meus irmãos menores, como a que aprontastes da última vez em que estivestes aqui...
— Oh, não lembreis mais disso - tornou o bardo -; ainda me lembro das santas e dolorosas penitências que o vosso irmão, aquele cenhoso e cruel Reginaldo, aplicou-me em tão má hora... Perdoai-me, que não quis ofender-vos, e confesso-vos que eu bem mereci, ainda que por um pouco daquele bendito vinho fizeram-me pagar por todos os meus pecados.
— Contenhas essa tua boca, que no falar demais é que estão as impropriedades - disse Ambrósio. - E nunca é demais lembrar que, pecado novo, penitência nova...
— Lembrar-me-ei - disse Julius. - Dizei-me, meu bom Ambrósio, ainda tendes daquele vinho em vossa adega? Porque já o sinto em meu paladar, e esperava mesmo que me convidásseis a tomar um cálice, a viagem que fiz secou-me de todo a goela, e melhor licor não há para dessedentar, se não vos peço em demasia.
— Há de arranjar-se um pouco - disse o monge. - Mas por agora venhas a teu aposento, que te mandarei preparar.
E o bardo o acompanhou ao lugar onde ficavam os dormitórios dos hóspedes. Transitando pelos escuros corredores, os monges deram-se ao diabo quando viram o indesejado visitante, pois das passadas vezes que ali esteve a sua presença foi tão desajeitada que o que só fez foi arrumar confusões e provocar altercações com os religiosos. Estes sempre esperavam algo de ruim quando o bardo ali aparecia.
III
Após os cânticos vespertinos, das orações penitenciais e demais rezas inerentes à vida monacal, do campanário propagou-se o tilintar de um sino, indicando aos monges que era a hora da ceia. Todos se encaminharam ao singelo, mas bem munido refeitório para abastecer-se de farto e refectivo alimento. Julius sentou-se à grande mesa de carvalho ao lado do prelado Ambrósio, junto a outros tantos, e aguardou ansioso o terminar dos agradecimentos a Deus pelos alimentos de cada dia. Findo os encômios, começaram a comer os pingues assados sem nenhuma sombra de moderação, e em breve tempo saciaram a fome. Depois um refeitoreiro levou dali para a cozinha os talheres sujos e em seguida trouxe algumas garrafas de excelente vinho, que era o regalo daquele mosteiro, para regar a conversação que duraria até não mais que meia noite.
Ao redor de uma das mesas estava acomodado o monge Reginaldo, o qual havia anteriormente aplicado a paga das ofensas ao bardo, e de quando em quando lhe direcionava uns olhares tão ameaçadores, que Julius não teve que fazer senão sustentá-los e ainda mais lhe provocar a ira, embicando muito vinho que Ambrósio, a bem da verdade, muito a contragosto lhe ia servindo.
Sobre o que falavam não há que dizer nem é bem que se diga, pois toda sorte de assuntos entrava à roda e mudava tão rápido quanto começava. Assim passavam e passaram eles grande parte da noite, jogando as palavras fora, como diz o outro, até que, pouco antes da zero-hora, grande alarido surgia nos portões do mosteiro, o que os obrigou a se levantarem e irem ver o que acontecia tão a desoras. Ali chegando depararam-se com uma turbamulta de aldeões armados de forcados e tochas acesas, bradando não se sabe que nomes, como quem esconjura as ações maléficas de algum demônio. Os monges embriagados, espantados com aquela barulheira e agitação, imaginaram ou que o mundo acabava ou que uma hoste de seres saídos do inferno invadia a pacata aldeia.
O monge Ambrósio, sempre parcimonioso com o vinho, não estava tanto com a mente volteada que não entendesse o que aqueles rústicos queriam, que era simplesmente ajuda cristã para banir uns espíritos demoníacos que naquela noite estranhamente apareceram, causando sustos e algumas mortes, segundo eles. Um dos aldeões dizia:
— Monges, abram-nos os portões! Acolhem-nos nesse lugar sagrado, que já não podemos mais viver tranqüilos em nossas casas, que estão tomadas por horríveis demônios...
E tomando-lhe o exemplo outros aldeões falavam semelhantes razões, mas tudo tão misturado que já os monges não lhes podiam compreender, e o que ficou determinado era que todos os religiosos acompanhassem aqueles rústicos até as suas casas, munidos de crucifixos e demais objetos, com o fito de exorcismar quantos demônios fosse possível, até mesmo do inferno todo, como pareceu, porque foram pelas ruelas estreitas entoando rezas e esconjurando os malefícios do mal. A procissão que se formou não descansou até que visse finalmente o dia raiar, embora durante toda a noite nada se viu de espíritos e outros avantesmas, e então se inquietaram quando perceberam que na aldeia imperava novamente a tranqüilidade.
IV
O lendário ser vagueia
Esconso pela floresta
Escura e sombria,
Coberto duma manta
Preta, e, cheio de astúcia,
Sente, fareja e mata
O serôdio viajante,
Que não mais segue adiante.
Ao cair da noite os monges viram-se extenuados pelo trabalho de exorcismo que praticaram na madrugada anterior, e recolheram-se cedo, temendo que os aldeões voltassem com novos casos de espíritos malignos. Enquanto todos dormiam o monge Reginaldo maquinava em seu íntimo um modo de expulsar o bardo dali, pois nutria grande aversão a ele. Andava pelos escuros corredores com esse pensamento quando, ao passar pelo quarto do indesejado visitante, foi atraído por uns sussurros e sons que lá de dentro saiam, e, curiosíssimo, colou a orelha à porta para melhor se inteirar do que se tratava. Assim pôde ele escutar nitidamente o que ali se cantava: reconheceu como sendo uma canção, a mesma que o bardo aprendeu inconsciente na sombria floresta, e a Reginaldo pareceu medonha, que, petrificado com o que ouvia, foi célere ao aposento de Ambrósio relatar-lhe sobre o que acabava de descobrir. Bateu rudemente à porta, até que o pobre Ambrósio a abriu, indagando-lhe severamente o porquê daquela perturbação no meio da noite.
— Entremos, que vos conto tudo, reverendíssimo... - e fecharam-se no aposento, com grande admiração e espanto de Ambrósio.
— Que há? - perguntou-lhe Ambrósio muito irritado.
— Perdoai-me vossa reverendíssima - volveu Reginaldo, perturbado -, mas andam acontecendo aqui debaixo do vosso nariz coisas de causar espanto.
— Que dizes aí, imbecil?
— Digo - tornou Reginaldo -, que o nosso bardo estava, e por força ainda há de estar, invocando o demônio em seu aposento, como pude ouvir, com uma canção que só nas trevas se pode inventar, de tão horrível que me pareceu.
— Não pode ser - disse Ambrósio -, vamos a ver!
E saíram muito silenciosamente a ouvir a tal canção, receando que os outros monges acordassem e viessem futricar no caso, que isso seria deitar lenha na fogueira. Mas ao chegarem à porta do bardo nada escutaram, com pasmo de Reginaldo, que disse não fazer dois minutos que tinha percebido aqueles sons. Convenceu mesmo a Ambrósio para que ali esperassem novos sinais, mas ao cabo de muito tempo tiveram de retirar-se, pois nada se ouviu de diferente.
Novamente em seu aposento, Ambrósio passou uma leve admoestação em Reginaldo por lhe ter acordado por um motivo que, analisando agora, era banal. Porque era natural que Julius, àquela solidão da noite, procurasse uma distração em seus versos que, para ele Ambrósio, não tinham nada de demoníacos, pois o bardo sempre se mostrou muito cristão e não andava por aí invocando o mal. Disse ainda a Reginaldo que esse erro de sua parte vinha-lhe por estar impressionado com a história passada dos aldeões, e que deixasse disso, senão era capaz de ver e ouvir a todo instante coisas que na verdade podiam ser diversas do que imaginasse, e mandou-lhe ir se deitar.
Reginaldo obedeceu e desculpou-se com o prelado, prometendo-lhe esquecer o bardo, e seguiu ao seu aposento, com infinitos pensamentos atormentando-lhe a cabeça, e em especial um que não lhe deixou pregar os olhos, porque teimava com ele, que era que algo de muito estranho acontecia, e o culpado não podia ser outro senão Julius.
E a teima de Reginaldo veio a engrossar-se ao outro dia, quando a noite ia alta trazendo consigo toda sorte de vultos endiabrados, causando furor nos corações de toda a aldeia e também ao mosteiro, onde os monges corriam com o coração para fora da boca, atemorizados com a invasão de infinitos monstros e espectros que lhes queriam a alma. Havia efetivamente uma legião de malignos seres por toda a parte, e dos terríveis sons que saiam de suas bocarras pareceu a Reginaldo distinguir algumas palavras, que eram: queremos o bardo!
Os monges, espavoridos, foram se juntar ao aglomerado de aldeões que se formou em frente ao mosteiro, que agora ardia em medonhas chamas, donde se vislumbraram formar feições monstruosas. O espetáculo causou ainda mais pavor em todos, mas logo o medo foi cedendo espaço à raiva, a que Reginaldo ia infundindo na cachola daqueles rústicos, porque lhes dizia que o causador de todo aquele tormento era o malicioso bardo, que estava aliado ao demônio. E exortava com tamanha força os aldeões e os monges a acreditarem nisso, que Julius quedou-se apalermado vendo-se no meio daquela turbamulta, e ficou ainda mais apavorado quando os aldeões passaram a bradar com violência estas palavras:
— Peguem o bardo! Atirem-no ao fogo, livremo-nos do mal!
Sem remissão o queriam condenar ao fogo. Julius, temendo o calor das chamas, não atinava meio de safar-se das garras dos seus algozes, o que lhe deixou desesperado. Estava perdido. Mas um fato veio-lhe abrir uma brecha, que foi ver ao longe, livre e desimpedido da turbamulta, o seu querido Murlão, que não parecia senão que o estava esperando para fugirem dali, e não se sabe com que manhas o bardo conseguiu chegar-se a ele, e sem perda de tempo puseram-se em fuga.
Não deixaram de notar isso os monges e os aldeões, os quais, irados e sedentos de vingança, seguiram ao encalço do bardo armados de tochas, lanças, forcados e varas de pau. Murlão sentiu o perigo que o ameaçava, e mais do que a sua natureza o permita, não digo que corria, mas que voava à frente dos aldeões. E estes não corriam pouco, tirando forças da gana que tinham em por as mãos em Julius: queriam-lhe a alma no inferno.
Durante muito tempo esteve fugindo o bardo, parecendo-lhe que lhe seguiriam até ao fim do mundo, pois sempre que olhava para trás via com espanto os seus perseguidores incansáveis, mas, ledo engano, já não eram os aldeões, eram seres ferozes cujos grandes olhos vermelhos e inflamados fizeram-no confundir com o fogo das tochas que, a grande distância dali, tinham-se perdido na escuridão da noite nas mãos dos aldeões, que voltavam para a aldeia, cansados da corrida.
Quando Julius reparou em seu engano, foi tal o pavor que dele se apoderou que não se deu conta do lugar onde agora se entranhava, que era naquela floresta que anteriormente lhe havia acontecido coisas estranhas. Então o lume dos seus olhos ameaçou extinguir-se, não havia modo de escapar, via-se cercado daqueles horríveis seres que bramiam assanhados contra ele. Era o seu fim.
Após esse desgraçado acontecimento, nunca mais se teve notícia do bardo Julius, tampouco de Murlão. Dizem, e dizem bem, que aquele que tocar a cantiga do mal se deve juntar às entidades malévolas da noite.
Re: Contos fantasticos !!!
O CONFESSIONÁRIO
Terror
- Spoiler:
- * * * * *
Tinha trinta e quatro anos na época, e era responsável pela igreja de Rosa Cruz fazia oito meses. Com apenas quatro mil habitantes, aquela era a típica cidadezinha do interior. Calma e sossegada, da forma que as pessoas da cidade grande ainda idealizam, sem saber que esse tipo de lugar já não existe mais. Meu rebanho era fiel, e a falta de distrações mantinha todos no caminho do Senhor. Para mim, isso era um problema. Afinal, eu havia cometido um grave erro em meu passado e, ansioso para compensar meus pecados de alguma forma, me sentia aflito por não estar fazendo muita diferença por ali.
E então, na madrugada de 19 de novembro de 1953, algo me acordou. Uma voz saída do nada, que sussurrou no meu ouvido: - Acorde José, e vá até a igreja. Você tem uma missão. Sabe, nunca fui dado a esse tipo de impressão, não tinha pretensões de ser chamado por Deus algum dia, para realizar uma de suas santificadas incumbências. Contudo, não podemos faltar com o Espírito Santo quando somos convocados e, na dúvida, não tive dúvidas: peguei a batina no armário e me preparei para sair. Talvez aquela fosse minha oportunidade de redenção, pela qual tanto havia orado.
Assim que cheguei na igrejinha, abri as portas da frente e as deixei escancaradas. Acendi todas as velas do recinto para conseguir alguma iluminação, depois fiquei sem saber o que fazer. Afinal, a voz não havia sido muito específica sobre meu próximo passo. Imóvel, observei as sombras bruxuleando entre bancos de madeira, crucifixos e santos com expressão sombria. Pedi orientação ao Senhor e, após alguns instantes, algo dentro da nave chamou minha atenção, como se estivesse destacado do resto do lugar.
O confessionário.
Sei que os confessionários caíram em desuso, hoje em dia vocês preferem levar os fiéis até alguma sala, para uma conversa mais informal. Mas naquela época as pessoas ficavam mais envergonhadas por seus pecados, e encarar o padre de frente seria algo impensável. Aquele confessionário era do tipo mais comum, dividido em dois cubículos. Instalei-me no meu lugar e esperei, na certeza de que algo iria acontecer.
No entanto, a longa passagem dos minutos foi abalando minha confiança. Comecei a questionar se tudo não passara de um sonho, e a voz que pensei ter ouvido, mero fruto de uma mente que tanto ansiava por absolvição. A noite estava bastante quente, então você pode imaginar como estava abafado ali dentro. Além disso, a escuridão quase total abria espaço para sensações inquietantes.
Desolado, já estava quase indo embora quando ouvi os passos vindos da rua.
Sem hesitar, o visitante veio direto até o confessionário, abriu a porta do outro cubículo e ali se instalou. Homem ou mulher, eu ainda não podia saber. Se durante o dia já era difícil definir os contornos da outra pessoa pela tela, na madrugada era possível ver apenas um vulto escuro.
— Me perdoe, padre, pois eu pequei - disse uma voz feminina, esclarecendo o mistério. - E faz muito tempo que não me confesso, tanto que não me recordo da última vez.
— Tudo bem, minha filha - falei, sentindo-me tocado pela angústia em sua voz, encoberta por uma calma forçada que parecia prestes a desabar. - Não tenha medo, me diga o que te aflige.
Seguiram-se alguns segundos de silêncio, tão completo que eu poderia pensar que não havia ninguém ali comigo. A presença de duas pessoas naquele espaço fechado fazia a temperatura subir ainda mais, então era difícil ser paciente. Estava quase repetindo meu pedido quando ela começou:
— É... É muito complicado. Eu me apaixonei por uma pessoa, alguém que jamais poderia corresponder meu amor.
— Entendo, criança. Um homem comprometido?
— Sim, de certa forma. Mas mesmo sem poder compartilhar dos meus sentimentos, ele consentiu em aceitar meu corpo. Fiquei cega pela paixão, achei que conseguiria convencê-lo a ficar comigo! Como fui burra! Ele se arrependeu de tudo e me abandonou, levando consigo minha felicidade e deixando apenas culpa para trás...
Então é esse seu problema - pensei, sentindo uma certa identificação com sua amargura. - Arrependimento por ter levado outra pessoa ao mau caminho. No caso dela, um homem casado à infidelidade. O pesar que cresce cada vez mais, quando já não se tem a presença da pessoa amada para nos fazer esquecer do pecado.
— Minha querida, o adultério realmente...
— Ainda não terminei! - ela exclamou, num grito tão repentino que me fez dar um pulo. - Você está tirando conclusões precipitadas, minha culpa é muito maior do que uma simples traição! Se fosse apenas isso, eu seria uma pessoa feliz!
Fiquei sem fala ante tal afirmação, e também pela rudeza com que estava sendo tratado. Ela continuou:
— Perdão, reverendo. Estou sendo mal-educada, só que estou tão nervosa...
— Tudo bem, criança - falei de forma pausada, disposto a deixar passar. Limpei o suor da minha testa com um pano e pedi para que continuasse.
— Tá bom, mas... Será que antes, eu poderia fazer uma pergunta?
— Claro, minha filha, claro.
— Padre... Por que o suicídio é um pecado mortal?
Foi apenas nessa hora que compreendi a grandeza da minha missão: aquela moça pretendia tirar a própria vida naquela noite! Agradeci em silêncio ao Senhor, por ter me enviado aquela pobre coitada em seu momento de maior necessidade.
Falei que a vida era um dom dado por Deus, portanto nós não tínhamos o direito de dela dispor com liberdade. O quinto mandamento era bem claro a respeito disso, não matarás. valia em todos os casos. Quando a pessoa se matava, ela estava negando o dom supremo. Isso constituía um desrespeito ao Criador, o único que tinha direito de retomar nosso espírito, no momento que considerasse adequado. O suicida era aquele que pensava estar além de qualquer ajuda, mesmo a divina, e o ato de tirar a própria vida era a suprema negação à intervenção divina. Dessa forma, aquele que se matava estava condenando a própria alma ao inferno.
— Pois então é isso, minha filha. Como pode ver, essa não é a solução.
— Eu sei, reverendo, eu sei...
— Então, me prometa que não seguirá por esse caminho.
— É meio tarde pra me pedir isso.
— Por quê? Está assim tão decidida a se suicidar?
— Não, padre. Eu já me suicidei.
Um frio intenso desceu por minhas costas, contrastando com o calor crescente dentro do confessionário.
— Perdão minha filha? - questionei, embora tivesse ouvido com clareza. - Você quis dizer que já tentou o suicídio, é isso?
— Não, reverendo. Fui bastante competente em minha única tentativa.
Embora tenha ficado assustado em um primeiro momento, comecei a ficar nervoso no segundo. A igreja era um lugar sagrado, não de pilherias e desrespeito!
— Isso é algum tipo de brincadeira? - perguntei, tentando manter a calma.
— Não. Eu jamais teria lhe chamado até aqui, se o assunto não fosse sério.
— Como...?
— O senhor faz perguntas retóricas demais, padre. Você sabe muito bem do que estou falando: - Acorde José, e vá até a igreja. Você tem uma missão.
Ah, meu amigo, nessa hora eu devo ter ficado mais branco que a cera das velas que queimavam sobre o altar.
— Não foi fácil mandar essa mensagem de tão longe, mas eu consegui. - continuou aquela voz, que subitamente havia adquirido uma entonação rascante e sobrenatural - De fato, consegui fazer coisas que o próprio Satanás julgaria impossíveis.
— Saia da minha igreja! - falei com firmeza, a coragem de um animal que foi acuado e não tem mais para onde fugir.
— Sua igreja, padre? Você não mudou nada, meu anjo barroco. O mesmo egocêntrico de sempre.
Senti minha pouca visão se embaralhar quando ouvi essas palavras, e precisei segurar nas paredes do confessionário para não desmoronar. Apenas uma pessoa já havia me chamado daquela maneira.
— Laura? - sussurrei.
— Exato, meu querido - a mulher sibilou. - Sei que minha voz está diferente, é que já não tenho minhas antigas cordas vocais. De fato não tenho nenhuma, mas não vamos entrar em detalhes.
A voz realmente não era a mesma, só que o jeito de falar era igual. O mesmo desprendimento daquela moça de Laranjal do Norte, a cidade onde eu morara antes de ir para Rosa Cruz. Logo que me tornei responsável pela capela de Laranjal, percebi que Laura me olhava de uma maneira diferente das outras fiéis. Eu sabia lidar com mulheres que demonstravam um interesse indevido por mim, porém por algum motivo - talvez por ela ser a garota mais linda e inteligente que já havia conhecido - não consegui afastá-la completamente. Deixar essa brecha foi meu erro. Sabendo que não conseguiria acabar tudo enquanto continuasse por lá, pedi minha transferência.
— O senhor leu os jornais, não leu? Sabe muito bem o que fiz depois, umas três semanas após sua partida.
Sim, eu sabia. Ela havia se enforcado.
Segundo as manchetes, a razão do suicídio constituía um mistério. Embora tenha ficado arrasado com sua morte, tenho que admitir uma coisa: o fato dela não ter contado nada a ninguém me trouxe alívio, o quê, por sua vez, aumentou ainda mais meu remorso. Pensei nisso naquele momento, e então uma idéia veio à minha mente: e se na verdade, Laura tivesse sim contado tudo para alguém, e era essa pessoa que estava diante de mim agora? Uma amiga, uma prima, quiçá uma tia, qualquer mulher disposta a se vingar? E talvez, essa mulher tivesse sussurrado aquelas palavras na janela do meu quarto, dando a impressão que sua origem era celestial. Sim, só podia ser isso! Levantei num rompante, disposto a arrancar a moça do confessionário e tirar essa história a limpo.
Um braço ressequido atravessou a janelinha, envolvendo meu pulso com dedos retorcidos. Gritei de dor, não por causa da força sobre-humana que quase esmagava meus ossos, mas sim devido ao calor intenso que a mão da criatura emanava. Ela me puxou para baixo e - graças aos céus - soltou assim que sentei novamente.
— Eu não faria isso, reverendo - ela falou com tranqüilidade. - Não sou mais aquela mocinha bonita que você recebeu com tanto gosto em sua cama. Preciso da sua sanidade intacta para o que vou pedir, e não tenho certeza se o senhor suportaria olhar para mim sem enlouquecer.
Acho que ela não estava exagerando. A fraca visão de seu braço na penumbra já era perturbadora em excesso, mesmo sem poder definir como era a aparência de sua pele, pude perceber que não parecia humana. O lugar onde havia me agarrado ardia com intensidade. Comecei a rezar baixinho, enquanto aquele membro tenebroso retornava para o cubículo em frente. Uma vez que a tela havia sido rasgada, Laura se espremeu contra a parede oposta, seus contornos obscuros se misturando com a penumbra.
— Isso, fique bem quietinho enquanto termino minha confissão. O fato de você ter preferido a batina já era doloroso demais para mim, mas foi sua partida que me trouxe desespero. Pensei em vir atrás do senhor, mas pra quê? Eu sabia que não adiantaria. Sem remédio, acabei entrando em depressão. Precisando de apoio, contei tudo para minha avó, a pessoa que eu mais confiava nesse mundo. Sabe o que ela fez? Me esbofeteou, gritando como uma alucinada: -Menina que namora padre vira mula-sem-cabeça! Depois dessa inesperada aula de folclore, vovó virou as costas pra mim. Se ela soubesse que eu iria me transformar em algo ainda pior...
Eu continuava minha oração, a agonia em meu braço diminuindo aos poucos, enquanto a temperatura dentro da cabine seguia pelo caminho contrário.
— Foi no inferno que ganhei essa carcaça pavorosa. Sabe, a alma não sente dor, só a carne. Então, os demônios colocam nossos espíritos nestes... Receptáculos, feitos de algum tipo de matéria infernal, que de início são coisas amorfas e cascudas, porém se tornam maleáveis nas mãos de nossos carrascos. Eles nos moldam em uma tosca versão de nossa aparência em vida, apenas para aumentar nosso sofrimento, depois entram em nossas mentes e falam coisas... Esses corpos permitem nossa comunicação pela força do pensamento, entende? Isso não é uma dádiva, serve apenas para que os condenados possam berrar por misericórdia naquele limbo, onde o som de verdade não consegue atravessar.
Só nessa hora, reparei que a fala de Laura parecia vir do centro do meu cérebro, e não do cubículo em frente. Acho que é por isso que a voz dela estava diferente, afinal, o som dos nossos pensamentos não deve refletir o das nossas cordas vocais. Mas perdoe as conjecturas desse velho tolo. Ela continuou:
— Eles nos aplicam os mais terríveis suplícios, torturas que desintegrariam a carne humana em segundos, mas não o material desse corpo! Não, não, minha casca se fecha rápido, permitindo que eles possam continuar sempre e sempre, e eu grito mentalmente e eles riem e gargalham e continuam e não é sangue que escorre das minhas chagas antes delas cicatrizarem, padre! Não, negativo, o que sai de dentro de mim é fogo!
Passei a mão de leve sobre meu pulso ferido, imaginando que isso era fácil de acreditar. Sua -voz, ou fosse lá o que fosse, começou a ficar mais alta.
— Fogo puro e escaldante, que queima a pele e causa uma agonia intolerável! Consegue imaginar isso, padre José? Consegue imaginar o tormento ao qual me condenou, SEU MALDITO?!
Encolhi-me no canto, apavorado, pensando se teria alguma chance de fugir correndo e decidindo pelo contrário.
— De alguma forma que não consigo compreender, consegui escapar. Demorei semanas para atravessar todos os círculos infernais, o medo de ser descoberta era uma tortura tão grande quanto àquelas que já havia sofrido. Os demônios têm um senso de humor bastante perverso, como não poderia deixar de ser. Eu imaginava que eles haviam permitido minha fuga, apenas para me dar esperanças vãs e, no momento em que visse a luz do dia, seria capturada e arrastada novamente para o abismo!
O vulto amorfo se contraiu ainda mais, e não pude deixar de sentir piedade.
— Mas no final das contas, eu consegui enganar aquelas abominações asquerosas... Tudo que fiz para chegar até aqui era considerado impossível. Mesmo assim, foi mais fácil do que conquistar seu amor, meu anjo barroco. Mas não se preocupe, já desisti de você. Afinal, não poderíamos ficar juntos. Não, não, o que eu quero agora é seu perdão.
— Meu perdão...? - perguntei, sem compreender.
— Sim. Tive muito tempo para refletir sobre o assunto lá embaixo. Parece tão injusto, não parece? Tudo bem que eu não era uma santa, mas não merecia ser condenada por toda a eternidade, merecia? Em razão de um último ato de desespero? Remoí a idéia enquanto eles moíam meus membros, até que de repente, tive uma revelação! Desculpe-me discordar de você, mas há uma explicação mais simples para o fato do suicídio ser um pecado mortal: é porque ele não pode ser confessado! Por motivos óbvios, o suicida não tem tempo de se arrepender e pedir por absolvição. E como o senhor sempre disse, apenas o arrependimento sincero pode redimir nossos pecados, sejam eles quais forem!
Fazia sentido. Eu nunca havia pensando por esse ângulo e, mesmo naquele estado de pavor, fiquei impressionado com tal raciocínio.
— Bem, só que eu consegui contornar esse detalhezinho, não é verdade? Pois aqui estou, reverendo. Esse foi meu pecado, amarrei uma maldita corda em meu pescoço e pulei do banquinho, então me perdoe. Não precisa perguntar se estou arrependida, pode acreditar, nunca houve uma pessoa tão arrependida em toda a história da humanidade!
Ela soltou uma gargalhada insana, e fiquei sem reação ante aquele pedido blasfemo. Se Deus já havia condenado Laura, então não havia como mudar a sentença. Caso lhe concedesse o perdão, eu estaria afrontando uma decisão divina, cometendo um pecado tão mortal quanto o próprio suicídio!
— Eu sinto muito, minha filha, mas não posso...
A criatura se jogou para frente, arrebentando a divisória do confessionário. Fechei os olhos, evitando qualquer vislumbre de seu corpo repelente. No instante seguinte ela agarrou minha cabeça com suas mãos abrasadoras, e senti a pele queimar. Sua voz era um guincho insuportável dentro da minha cabeça, como o som de um giz arranhado o quadro negro.
— NÃO OUSE RECUSAR MEU PEDIDO, VERME! VOCÊ SABIA QUE EU ESTAVA APAIXONADA, MESMO ASSIM DORMIU COMIGO E DEPOIS FUGIU! NÃO NEGUE SUA PARCELA DE CULPA NO MEU SUICÍDIO! VAMOS, ME DÊ UMA PENITËNCIA E DEPOIS MEU PERDÃO! VOCÊ ME DEVE ISSO, SEU COVARDE! VOCË ME DEVE!
Sei que não deveria ter obedecido. Relembro aquele momento vergonhoso todos os dias, e fico fantasiando que consegui me manter firme, negando a ordem de Laura até o fim. Com certeza ela me mataria, mas eu não teria arriscado minha alma à perdição. É, é fácil pensar isso agora, quando aqueles dedos escaldantes não estão envolvendo meu crânio e formando bolhas.
Não hesitei um segundo antes de implorar:
— Tudo bem tudo bem mas me solte por favor me soooolte!!!
Ela largou, porém manteve as garras próximas de meu rosto, em suspenso. O cheiro nauseante de carne queimada só não era pior que a dor.
— Creio que essa seria a hora em que você me daria alguns conselhos - a aparição continuou. - Todavia, acho que podemos pular essa parte. Não vou me matar de novo, pode ter certeza. Então vamos, diga minha penitência.
— Sim, sim... Reze dez Ave-Marias e vinte Pai-Nosso...
— Não acha pouco? - ela questionou, e senti que aquelas mãos deformadas estavam se aproximando mais uma vez.
— Cinqüenta de cada então! Cinqüenta de cada!
— Tudo bem, meu anjo barroco. Mas pro seu próprio bem, espero que isso seja o suficiente para minha salvação. Caso contrário, eu juro que arrasto você comigo até o inferno, entendeu?!
— Entendi, entendi... Por favor, reze o ato de constrição agora.
— Tudo bem. Senhor meu Jes...
Nesse momento ouvi um estrondo altíssimo, e meu rosto foi envolto por um calor ainda mais intenso que as garras de Laura. Atordoado, corri para fora do cubículo, batendo as mãos em minha face e apagando o fogo nas sobrancelhas e cabelo. Pensei que ia perder os sentidos, porém o barulho da outra porta do confessionário me obrigou a continuar desperto.
O corpo sem cabeça de Laura caiu no assoalho, e as chamas que saíam de seu pescoço incendiavam os bancos de madeira mais próximos. De alguma forma, seu crânio havia estourado antes que ela pudesse completar a palavra -Jesus. Ainda não encontrei explicação pra isso. Talvez uma intervenção divina tivesse impedido que ela continuasse, ou quem sabe uma criatura infernal não pudesse pronunciar um nome santo, não sei... De qualquer forma, pensei que aquele pesadelo havia acabado.
Foi então que a coisa se colocou em pé num pulo, cambaleando em minha direção de forma obstinada. Tentei correr, mas as pernas não obedeciam. Paralisado pelo medo, vi a entidade de formato feminino esticar os braços, o brilho das labaredas reluzindo em sua pele rugosa e abjeta.
Ela estava quase me alcançando quando diversas mãos surgiram do nada e a agarraram, impedindo seu avanço. Mas não eram os anjos do Senhor me salvando.
Eram justamente o contrário.
Gargalhadas profanas tomaram conta da igreja. Os entes demoníacos moviam-se tão rápido que não pude identificar suas formas, e agradeço aos céus por isso. No entanto, eu conseguia ver o que eles estavam fazendo: imobilizaram a suicida, que se contorcia como uma serpente moribunda, depois começaram a modelar seu corpo, quebrando-o e esticando-o. Laura não havia mentido, os demônios tinham mesmo um senso de humor bastante doentio. Cascos surgiram na ponta de seus membros, o ventre se expandindo enquanto pêlos negros brotavam por toda sua carcaça, que ficava com uma aparência cada vez mais eqüina. A abertura no pescoço decapitado começou a fechar, mas os diabretes não permitiram. Seguraram as bordas e moldaram um buraco permanente, para que o jorro flamejante nunca parasse de irromper por ali. As palavras de Laura voltaram a minha mente:
— Menina que namora padre vira mula-sem-cabeça!
Corri antes de ver terminada a horrenda metamorfose, pois sabia que Laura viria atrás de mim para cumprir sua promessa. Esgueirei-me pelas sombras, vendo as pessoas correndo na direção da igreja que incendiava. Peguei meu cavalinho no estábulo ali perto e fugi pela estrada escura. Só parei no dia seguinte, quando alcancei a cidade mais distante possível. Procurei ajuda de um médico amigo meu, que cuidou das minhas feridas e concordou em me esconder na sua casa, sem fazer muitas perguntas. Permaneci ali durante alguns dias, mas logo os rumores chegaram aos meus ouvidos.
Diziam que alguns moradores de Rosa Cruz haviam visto uma mula-sem-cabeça saltar para fora da capela incendiada, cavalgando veloz em direção à floresta. Aqueles que a viram não tinham conservado o juízo perfeito.
Na mesma noite em que ouvi isso, senti que Laura estava se aproximando.
Desde então, virei um fugitivo. Não podia me instalar em um mesmo lugar por muito tempo, pois logo sentia sua amaldiçoada aproximação. Fui morar na Europa e depois Austrália, descobrindo que os oceanos não constituem impedimento para uma entidade infernal. De alguma forma ela me seguiu até lá, mas como sempre, consegui ir embora antes dela chegar perto demais. Às vezes, penso que ela me deixava escapar, apenas para aumentar meu tormento.
Acabei voltando ao Brasil. Com o passar das décadas, todo o meu dinheiro acabou, resultando na minha atual situação de miséria. A parte boa é que aquela sensação de proximidade foi ficando cada vez mais esparsa, e já faz cinco anos que não sinto qualquer sinal de Laura. Não creio que ela desistiria, mas acho que consegui despistá-la quando vim pra São Paulo. O medo de ser encontrado era a única coisa que me mantinha vivo, então aqui estou agora, no fim da minha jornada de pavor e remorso. Outra irá se iniciar, e temo que será longe dos braços do Criador.
Entende agora porque não posso aceitar a Extrema-unção, reverendo? Ela é destinada àqueles que possuem ao menos uma pequena chance, e talvez eu não tenha nem isso. Se eu aceitasse, o senhor também estaria se arriscando ao suplício eterno, algo que não quero adicionar à minha lista de culpas. Preciso enfrentar meu destino sozinho, e qualquer chance de misericórdia - sim, ainda tenho esperança - cabe unicamente a Ele. Então por favor, não insista.
Eu não pretendia falar por tanto tempo, agora estou exausto. Importa-se de deixar este velho decrépito dormir um pouco, padre Thiago? Caso eu não passe dessa noite, sinta-se à vontade para rezar por mim. Ah, e se não for incômodo, o senhor poderia verificar se minha janela está bem fechada? Obrigado meu amigo, e adeus por hora.
* * * * *
Padre Thiago permaneceu imóvel durante muito tempo, olhando para o ancião que começava a adormecer. Com relutância, chamou uma das freiras para permanecer ao lado do moribundo. Sua paróquia prestava auxílio no abrigo para indigentes, e sempre havia muito a ser feito por ali.
Dirigiu-se até o refeitório para conversar com os mendigos. Mesmo após terminada a janta, muitos permaneciam por ali para aproveitar o calor humano. Depois, foi ajudar o cozinheiro a lavar a louça, mas não conseguiu esquecer a história de José. O velho havia chegado ali há menos de dois meses, conquistando a todos com sua inteligência e simpatia.
Seu relato era absurdo demais para ser verdade. A explicação mais coerente era que tinha sido vítima de uma brincadeira de mau gosto e, influenciado pelo medo, havia visto coisas que não existiam. Na fuga, devia ter derrubado algum castiçal, iniciando o incêndio que destruiu a igreja e provocou aquelas marcas de queimadura em sua face. Pobre homem, fugindo a vida inteira de uma ilusão. E agora estava realmente arriscando sua alma, ao recusar a última chance de absolvição.O vigário esperava que o velho sobrevivesse àquela noite, para tentar mais uma vez convencê-lo. Já estava planejando os argumentos que ia usar, quando escutou algo que o fez derrubar uma das bandejas no chão.
Da rua em frente, vinha o som de cascos.
Deve ser algum carroceiro coletando o lixo... - pensou envergonhado, recolhendo a louça. No entanto, o barulho estava ficando cada vez mais próximo. O cozinheiro parou o que estava fazendo, também prestando atenção. Abriu a boca para perguntar:
— O quê...?
Ouviram um grande estrondo na porta da frente, seguido de um galope.
Não é possível! - pensou o padre, andando rápido em direção à entrada e vendo a porta caída, em chamas. Uma intensa claridade vinha da sala de jantar, junto com um pandemônio de mesas derrubadas e gritos histéricos. Quando ele entrou correndo no refeitório, aquilo não parecia mais um abrigo para indigentes, mas sim um hospício.
— UM CAVALO! UM CAVALO SEM CABEÇA! - berrou um dos maltrapilhos, tentando agarrar o braço do vigário.
Não exatamente - o reverendo pensou enquanto se desvencilhava, já sabendo para onde a criatura havia ido. Virou no corredor dos dormitórios, em tempo de ver apenas a cauda eqüina entrando no quarto de José. O que veio em seguida foi seu grito, o brado de horror e revolta de alguém que tinha perdido todas as esperanças.
Fazendo o sinal da cruz, padre Thiago continuou correndo e entrou no aposento, abaixando a cabeça para evitar as labaredas que se alastravam pelo batente da porta. A freira estava encolhida no canto. Seu rosto retorcido mostrava uma expressão de completa demência, embora ainda restasse energia para um último ato de sanidade.
Apontava o dedo trêmulo para a cama vazia.
Re: Contos fantasticos !!!
O CONTO DA RAINHA DE INVERNO
- Spoiler:
- Nesse momento, nobres cavalheiros e alegres comensais, peço humildemente vosso perdão para me desviar um pouco de nosso conto principal e esclarecer, àqueles que não são da região, é claro, quem seria esta a quem todos chamam tão temerosamente de Rainha de Inverno.
Nestas paragens, e por todo o norte de Árhia, existe uma lenda sobre uma criatura que beira a divindade e se aproxima assustadoramente da própria morte. Alguns a descrevem como uma mulher, outros juram que Ela pertence à família das fadas, porém todos concordam que Ela é o ser mais belo que seus olhos já viram. E também o mais perigoso.
Sempre que o inverno ameaça se mostrar mais rigoroso, várias vozes clamam que Ela está por chegar. Sua aparição é sempre precedida do cantar de um anurião e nunca durante o dia. Não é conhecida Sua real motivação, nem Sua verdadeira natureza. Tudo que sabemos sobre Ela são relatos daqueles que a viram, mesmo que apenas de relance.
Agora, abram seus ouvidos e suas mentes, pois vos lerei um trecho de um diário encontrado em um campo devastado de um posto avançado trevano. Essas palavras estavam presas nas mãos congeladas de um rapaz, possivelmente um escravo e, a julgar pelo linguajar, com certeza um filho da gloriosa nação de Árhia.
“Por seis vezes os sinos do acampamento bateram abafando o cantar dos anuriões. Por seis vezes o chicote do vigia dos escravos cortou o ar e as costas daqueles que lhe estavam mais próximos. O choro e o sangue se misturavam na areia vermelha enquanto o dia se esvaia junto com a esperança. Nossos captores sorriam zombeteiros e já olhavam com lascívia para as mulheres quando os últimos raios do sol desapareceram por trás do Monte Thor. Foi quando Ela apareceu.
Ela desceu do céu com asas feitas de cristais de gelo e quando seus pés tocaram o chão uma fina camada branca se formou na relva queimada. Suas asas se desfizeram numa pequena explosão de luzes brancas e prateadas que cintilaram como estrelas antes de sumir por completo.
Ela era branca como um anjo e Seus cabelos pareciam de uma cor diferente a cada vez que os olhávamos. Loiros como o ouro branco, prateados como a neve tardia, translúcidos como a superfície de um lago congelado. Seu corpo era delgado e desenhado como se houvesse saído de um sonho, Sua pele tocava com leveza Suas vestes quase etéreas. Tinha os pés descalços e os olhos do azul mais profundo e vazio que poderia existir. Ela era um anjo e Ela matou a todos.
Certamente os trevanos a confundiram com uma feiticeira de nosso povo, pois, sem qualquer aviso, invocaram suas sombras e avançaram com suas espadas curvas em punho berrando os horrendos brados de guerra de Treva. Metade deles já estava morto antes mesmo de alcançá-la, a outra metade sucumbiu ao tocá-la.
Ao Seu comando, o ar tornou-se gélido como o hálito da morte e lâminas finas de gelo puro cortaram o ar e ceifaram a vida dos quase trinta trevanos. Nós sorriamos e gritávamos vivas à nossa libertadora quando seus ventos de morte tocaram nosso povo. Um a um, vi meus irmãos e companheiros caírem congelados por uma bruma invernal que nascia dos Seus pés.
Por que ela me poupou, e apenas a mim, eu não sei. Tudo que sei é que já faz quase seis anos desde este fatídico dia e que, desde então, eu retorno todo inverno ao mesmo local. Não sei se o faço para honrar meus amigos e familiares perdidos naquele crepúsculo ou se alimento a infeliz esperança de ver mais uma vez aqueles olhos tão azuis e mortais...”
Pelo estado em que foram encontrados os restos mortais deste jovem, completamente congelados, dos ossos até a última gota de sangue, dos fios de cabelo até a mais fina camada de sua verde retina, meus camaradas, eu vos digo que ele conseguiu rever a sua musa e algoz.
Esta meus senhores é a Rainha de Inverno, misteriosa e mortal, poderosa e enigmática, uma entidade singular que assombra nossas pradarias nos invernos mais rigorosos. É por isso então que nas noites frias em que os anuriões cantam ao entardecer nós nos trancamos em nossas casas e tavernas e nos esquentamos com vinho e velhas estórias.
O senhor, que rir-se, com certeza é do sul e ignora a força destas lendas e tradições aqui no norte, não é mesmo? Certamente nos julga crédulos e supersticiosos. Pois eu vos digo que esta noite é a mais fria dos últimos seis anos e que, antes de adentrar nesta nobre casa de diversão, eu ouvi o silvo triste de um anurião.
O campo da estória fica a apenas duas ou três centenas de metros bosque a dentro, o senhor não estaria interessado em conferir a veracidade do conto? Eu, meu senhor, não deixo o calor desta lareira nem a segurança destes muros essa noite por nada neste mundo e, humildemente, vos aconselho que faça o mesmo.
Eu conheço algumas canções do sul que certamente aquecerão os nossos corações e o fará lembrar-se de seu lar. Canções sobre batalhas contra os trevanos e sobre os heróis de Árhia. Canções sobre esperança que nos farão esquecer do vento frio que, do nada surgido, bate em nossa porta e do faiscar de pequenas luzes brancas e prateadas que assombram agora nossa janela.
Re: Contos fantasticos !!!
QUANDO A FLORESTA NÃO DORME
Alta Fantasia
- Spoiler:
- Dentre as sombras da floresta de Nuvermolls assomam as maiores árvores de que já se ouviu falar. Há sempre o rumor do vento e as vozes dos entes do mundo inanimado parecem se misturar aos murmúrios dos pequenos animais e aos pios dos pássaros. Há o vento que traz as mensagens do povo Elemental e os pingos das chuvas são carregados de imagens de outras paragens. A neve cai mais suavemente, mais devagar nesta floresta. Sabe-se que nos bosques que a circundam, o chão é muito menos maculado pelos passos dos seres de duas pernas. Os grandes olmos formam espessos tapetes amarelados no outono, e os carvalhos estalam quando as lebres começam a se esconder e mais dos lobos já antevêem a chegada do inverno. É nessa época que a fome se abate nas alcatéias dos hiurglans, como o povo de belo rosto os conhece.
A dor no flanco é muito forte. Duas ou três costelas quebradas e as botas não pisam as folhas com a mesma leveza de sempre. Ele troca a aljava quase vazia de um ombro para outro mais uma vez e respira como dá. Tenta inflar o peito com o ar seco mais fresco, mas este se recusa a entrar, e seus pulmões gritam e sua garganta já parece ressecada pelo esforço. Ele passa uma mão pelo lado esquerdo da túnica que parece quente, mas é a pele que está febril e inchada. Desequilibra-se, segura-se num tronco fino de bétula só para poder deixar-se cair com mais suavidade. As pernas lhe faltam, mas há muito ainda a percorrer até Foreinl. O braço esquerdo parece amortecido e a dor já lhe sobe pela nuca. Uma nova dor já se alastra pelas costas, indo até o couro cabeludo amortecendo-lhe os nervos da base das costas e fazendo sua cabeça parecer coberta por uma touca de gelo, como se o crânio pudesse se mover por baixo de uma pele solta. Mas é só na dor que não deve pensar, senão não haverá esperanças.
Recosta então a cabeça num tronco enquanto desce a aljava ao lado de uma raiz alta, nodosa como a cara enrugada de um ente, como um grande nariz bulboso cheio de rugas. Só então vislumbra o telhado coberto de turfa no final da ravina. Seus olhos se estreitam. Parecem cobertos por uma névoa aquosa que lhe turva a visada, como se olhasse para uma paisagem no fundo de um lago onde se derramara um jarro de leite. É a dor! É o aspecto que o mundo toma quando os sentidos se confundem e pela mente começam a passar imagens irreais que não se pode mais distinguir do vento, do cheiro e da luz real.
Uma cabana simples...
É uma morada de humanos.
Ele abre a sacola presa ao cinto e retira um pequeno saco de saidrin. Há pouco ali que possa mascar para aliviar a aflição. Decide guardar para quando não puder mais suportá-la, embora já não consiga saber se ainda vai estar lúcido para discernir a fronteira entre estes momentos. Só sabe que a dor ainda vai apertar. Não fora a primeira vez que recebera um ferimento em batalha, mas talvez nunca tivesse sido tão grave. Certamente doera antes e sabe que será muito pior desta vez. Talvez se mascar só uma pequena raiz... Não! Deve deixar para depois.
Água. Ainda tem alguns goles de água chocalhando dentro do cantil, um resto que persistia desde que deixara às proximidades do rio. Mas já é pouco. Ele encosta o cantil ao ouvido e por um momento conforta-se escutando a voz do Astaern, cujas águas secretas provém das profundas gretas onde os espíritos das pedras são antigos como o mundo e a Senhora das Águas chama o belo povo pelo nome que os Antigos lhes deram no passado.
Seus lábios então se encostam na boca do odre, bebem um pequeno gole e seu peito agradece. Há dois dias não come. Não há mais pão, nem castanhas. Precisa a todo custo ainda acreditar que há esperanças! “Fadas! Oh, fadas, filhas de Qwanda, onde estão?”
Ele se levanta. Esta ofegando de novo. Não sente gosto de sangue na garganta. Disseram-lhe que quando isto acontece não há mais esperanças. Então ainda há! Cada inspiração é um tormento, contudo. Talvez os ossos quebrados tenham perfurado um pulmão. Se assim for, morrerá sem dúvida. Não... Não há gosto de sangue, não há! Deve ainda ter esperanças, não é?
A casa. Uma voz lhe diz... É a voz que sempre lhe diz no ouvido, como um sussurro melodioso, que deve ter esperanças. São as fadas, de volta, imagina. Por que não lhe dão mais de comer? Seu coração está triste. Não deve se permitir ficar assim tão abatido, não deve!
Levanta-se. Caminha dois passos cautelosos esforçando-se para voltar a pisar o ar, tornando-se tão silencioso como o lince, irmanando-se às sombras, mas isso é tão difícil agora. A cabana de lenhador é pequena e frágil, mas bem calafetada contra o frio. Possui uma chaminé, mas dela não vem qualquer sinal de fogo recente, o que é muito estranho para os homens, que usam o fogo para cozinhar a carne de animais. A sua forma de agir, de misturar o mundo ao seu corpo. Não tem o direito de sentir asco disso. Não deve. Não sente...
A idéia parece indecorosa demais, mas até mesmo seu povo se alimenta de carne quando necessário. Quando os animais a dão a eles, por saberem que precisam dela. Sacrificam-se perante a sua amada mãe das matas e ela lhes oferece de bom grado o sacrifício de seus filhos e estes não se importam. Ela deixa que os seus se sacrifiquem para que o belo povo viva, e a idéia é tocante demais para que lágrimas não venham aos olhos. Mas não agora... Não é ocasião para alcançar toda a imensidão do ato das fadas, neste pequeno universo.
Uma coruja pia. “Alerte-se!”, ela diz. Nota então que não está numa posição boa para sentir os cheiros. Resolve contornar a crista coberta de folhas e deixa o arco junto da aljava, escondido dentro de um tronco de sabugueiro rachado por um raio. Caminha curvado para frente, sem tirar os olhos de baixo, na depressão da colina; os ouvidos ouvem também o lado do rio, de onde veio. É de lá que teme inimigos terríveis. É para lá que tem que voltar, se quiser retornar para casa, para alertar o belo povo da chegada dos ogros cinzentos. Felmath cruzara enfim o limiar das rochas do Eglaez. Talvez já estivesse entediado de manter as tripas dentro do ventre pálido. Quando os ogros parecem perder a cautela é porque não prezavam mais viver.
A cabana. Sim, ele sente cheiros e se pergunta se não há mais pessoas vivas lá dentro, pois fareja sangue no ar. Se havia pessoas, elas já devem ter esfriado pois o sangue não é fresco, mas não tem absoluta certeza. Não está acostumado com o cheiro dos humanos. O sangue... Já está estagnando e as moscas voejam e certamente já cobrem o chão daquele lugar. Os vermes delas comerão tudo. Devorarão a carne dos cadáveres. É a vez dos homens darem de volta a carne de que se alimentam à natureza.
Deve haver comida lá dentro. Talvez algumas raízes que possa consumir para amenizar seu próprio mal. “Há sálvias no campo próximo” diz a voz do vento oeste. “Venha ver quão belas elas são” convida o vento. “Não, Ser Elemental! Não posso agora. Tenho que cuidar de um assunto primeiro, mas obrigado!” responde ele ao vento. “Há romãs maduras no sul. Venha então para se alimentar e descansar.” convida de novo. “Sei o que quer fazer, Ser Elemental, mas não se preocupe. Não vou me descuidar”. “Então cuidado, belo ser”. “Vou me cuidar, Elemental do Ar”.
Romãs! A esse pensamento seu estômago ronca alto. Se os ogros passaram por aqui é provável que tenham se alimentado da carne dos habitantes da cabana. Deveria se arriscar? Ele passa a mão na adaga longa que traz no cinto e a presença dela o conforta. Fora seu pai quem entalhara o cabo de nogueira e o feiticeiro quem gravara runas de estrelas na lâmina, dando-lhe poder.
Deu então mais alguns passos em direção a morada dos filhos de homens, e as borboletas azuis debaixo de um caramanchão de primaveras voejam para longe pousando num cabo de uma ferramenta de arar a terra. Além dos arados há enxadas, enxós e rastelos. Só então ele vê a lavoura adiante, verdejante e bem cuidada. Não é trabalho para poucos humanos. Uma família grande certamente. Seis ou sete adultos, deduz, e abre os ouvidos para ouvir o bater das asas das borboletas mas elas não lhe revelam mais nada.
Fome.
Já experimentou uma vez o pão dos homens e não é ruim. E eles também se alimentam de raízes e castanhas. Alguns cultivam a terra e é só por isso que muitas famílias dos homens começaram a ficar e lutar pelo lugar onde habitam. As lavouras os fizeram perenes, ao contrário de quando apenas caçavam o que comiam, o que os levava a migrar sempre que a caça escasseava, quando o inverno os expulsava com açoites de gelo nos lombos cobertos de pêlos. Mas isso já passou há muito tempo. A cabana o levava a acreditar que os humanos começaram a se aproximar demais das terras do belo povo. Estão agora a, talvez, doze ou treze dias de caminhada das fronteiras. Certamente ainda não sabem disso, mas estão perto demais... Logo saberão.
Os humanos, ao adentrar terras perigosas, tinham o costume de lutar pouco. A perda de alguns dos seus os fazia recuar apavorados e ir embora para outras pradarias e campos. Bastava ver um gamo e seus estômagos os faziam esquecer de tudo que haviam deixado, contudo. Foi uma época de fome e ao olharem uma criancinha esquelética se condoíam e tornavam-se fortes para continuar procurando e procurando por mais comida, sempre e sempre. E isso os fez desenvolver um cérebro poderoso, formado essencialmente pelo tutano de ossos de bichos, e sua espinha foi ficando cada vez mais ereta, para que pudessem olhar mais alto, por cima do capim alto. O cérebro maior os fez raciocinar melhor, pois deviam calcular melhor o rumo das manadas, a direção do vento para poderem melhor lançar as setas; providenciar tocas mais quentes e elaborar armadilhas para direcionar os maiores mamutes para os pontos certos de abate. Tornaram-se muito espertos! Quando começaram a fabricar ferramentas adquiriram a prática de armas melhores. Dizem que foram os roags que um dia lhes ensinaram a forjar o aço. Quem sabe?
Com as lavouras, eles começaram a ficar mais teimosos, e ao descobrirem como empunhar machados de guerra... Ah!, os perigos passaram a não ser tão temíveis. Por isso vieram a avançar onde não deveriam ser bem-vindos. Vendo por este ângulo é bom que os perigos por aqui sejam tantos. Não gostaria de ter filhos de homens empunhando machados e lanças contra ele.
Resolveu descer a ravina. Tomando todo o cuidado que pode. Nunca se expusera tanto antes. Um ilarin deve ter as sombras como irmãs, a tarde caía e elas o acompanham sorrateiras. “Romãs!” “Não voz! Não posso agora!” “Cuidado!”.
As tábuas estão bem firmes. O telhado bem feito deve oferecer proteção contra a chuva, talvez já tenha pensado nisso antes, nos poucos instantes desde que vira a cabana pela primeira vez, mas não consegue se lembrar direito. “Enquanto estiver junto a humanos não poderá ouvir a voz dos elementos! É a lei. Já aprenderam magia antes e isso não lhes podia ter sido ensinado. Precisa ter cuidado para não lhes ensinar, por um descuido, a escutar os elementos”.
A voz acaba de dizer que há homens vivos na cabana. Caminha devagar e instintivamente retira a adaga da bainha. A prata de Ishbarr rebrilha sua luz na escuridão onde a lua não está. Ishbarr matará se o dono assim lhe ordenar e pouco importa se ainda não há lua no céu. Se vai roubar comida, deve parecer um ladrão.
De perto já que a porta está escancarada. As janelas arrombadas. Moscas... E o fedor. Algo não está certo! Na verdade, se fossem ogros, tudo estaria em escombros, sob carvões já mornos. Apóia-se num pilar de madeira toscamente aparelhada. Respirar... Precisa respirar, mas a fedentina... A dor dobra-lhe o corpo de novo. Então pensa que com alguma comida poderá recobrar forças. Talvez possa dormir por uma noite para caminhar por mais um dia.
Seu corpo enfim toma a frente da porta e o chão está escuro, coberto por sangue. Nem que aquelas tábuas fossem lixadas por um bom mestre marceneiro seria possível retirar todo aquele sangue que deixou uma camada grossa e melada. As varejeiras... Ao primeiro passo naquele assoalho maculado, o som de suas botas ecoa no pequeno aposento, e ouve o som de metal.
Não tem como se atirar porta afora. Abaixa-se surpreso pelo brilho de uma espada, mas ela está próxima ao chão. A dor precisa ser esquecida num instante em que põe-se preparado para o combate. Mas ele não vem. Como deve estar doente para não ter percebido antes, surpreende-se!
Aquele que estava caído no chão esforça-se por manter os olhos abertos e então fica de pé, e o que vê é a silhueta metida em uma capa negra defronte aos últimos raios de sol. Ele tem uma cabeça coberta por um capuz escuro, e longos fios dourados descem defronte ao seu peito.
– Um... elfo!
A voz que vem da boca do humano é áspera. Ele parece tê-lo identificado como sendo do belo povo e usa a palavra que eles escolheram para denominar os que vieram antes deles. Seu rosto é coberto de pêlos em profusão. Usam roupas tecidas e não só peles dos animais que devoram, para se proteger do frio. Ele ainda diz outras coisas, mas o elfo não entende o resto de sua fala. Sabe por seus olhos que o humano nunca vira uma pessoa como ele na vida. Os homens não têm boa visão e nunca se aproximam de elfos com a mesma suavidade com que os elfos espreitam os caminhos da floresta.
Então o homem se levanta. Empunha sua espada com dificuldade. Parte do sangue que está no chão deve ser dele, pois a perna esquerda se arrasta, e seu pescoço está arranhado profundamente. É grande e tem ombros largos. Seus braços são como troncos e seus punhos parecem martelos de guerra. Mas a espada parece pesar demais para ser sustentada. Ele cai pesadamente e fica inerte. Parece estar inconsciente, agora.
O elfo guarda a faca. Ela estaria atravessada na garganta do humano em menos tempo que ele poderia dizer seu estranho nome, por mais curto que fosse. Por um momento estica os olhos para o que resta da mobília pobre e dos sacos que deveriam guardar alimento. Há grãos misturados ao sangue no chão, mas não se pode agora comê-los. Houve luta. Há água num pote de barro, mas o elfo, ao chegar perto sente o estômago embrulhar. Os humanos guardam a água por vários dias e os elfos gostam da água livre dos rios. Quanto mais tempo ela permanece guardada mais intragável fica. Há uma caneca e ele bebe a água mesmo assim, tentando economizar o pouca que ainda lhe restava no odre. Ela cai como se fosse lama por sua garganta mas ainda é água.
Ele se deixa escorregar de novo até o chão enquanto olha o grande humano debruçado sobre sua espada. Ele olha as panelas. Utensílios demais para um homem só, como já havia adivinhado. E há vassouras. Há um vaso caído com algumas flores murchas saindo de sua boca lascada. Era um lar feliz. Havia uma fêmea ali. E detrás de um cesto revirado e parcialmente destruído, uma bonequinha de palha de rosto pintado de carvão. Havia uma criança; uma menininha, e parte de seu vestido pode ser visto preso nas bordas de uma janela e há sangue nele, como em tudo mais. Algo morto está prostrado junto da lenha de um fogão de barro rústico. O que está ali não era para ser comido, ao contrário, certamente era um dos que vieram para devorar. O elfo se senta vendo o pêlo avermelhado. Novamente posiciona a mão no flanco. Um uivo, o primeiro da noite ecoa na floresta lá fora.
O que matou a família daquele homem não foi um bando de ogros. Foram lobos!
O homem se vira no chão. Ele está vivo, mas só por pouco que não se juntou à sina de sua esposa, filhos e filha. Talvez não seja um bom humano, senão seus deuses o deixariam morrer junto com os que amava. Ele está ali, parado. O elfo o vê sobre a borda de sua bota enquanto uma mosca senta no bico. Ele abre de novo sua bolsa. Retira raízes de orsidalle de dentro dela. Arranja um vasilha caída e despeja um pouco da água com gosto de barro que eles tomam. Esmaga as raízes com o cabo da adaga enquanto, enfim, mastiga o saidrin. O gosto é tão amargo que espanta a dor. Pede para a mãe Qwanda, dos elemetais, libertar os efeitos da mistura. Aliviará a dor dele e a do humano também.
Chega então próximo ao homem caído, que respira com força. Ali dentro bate um coração que quer viver e ele tenta entender porquê. Humanos tem vidas curtas e apegam-se a ela com uma energia que elfo nenhum entenderia. Eles são chamas breves, mas que queimam com intensidade. Por isso resolve postergar um instante a mais que seja sua missão. E os olhos dele estão abertos. O elfo se assusta. Ele está ali, deitado. A mão na espada, mas ela não se move. Ele olha o teto, mas não enxerga as traves baixas cobertas por turfa. Olha com olhos penetrantes, com olhos de morte.
Talvez um elfo também não entenda o efeito que o ódio exerce no coração de um humano, criaturas bizarras, mas ele vê que a vingança está dentro do corpo alquebrado daquele lavrador. Ele vê que ele morrerá com mais honra se puder menear sua espada uma última vez. Por isso lhe ministra o ungüento na ferida do pescoço. A pomada limpará o ferimento, diminuirá muito da dor, e cicatrizará a carne dilacerada em pouco tempo. Só não reporá o sangue que ele perdeu, nem retirará a bola de espinhos que ele tem dentro do peito. Ela permanecerá lá enquanto se lembrar da perda de sua família. Enquanto se lembrar do gosto de um beijo amoroso e do som de risinhos agudos.
O toque do elfo é, por alguma razão, reconfortante para o homem. Não há medo em seus olhos que não piscam nunca. O elfo canta aos elementos e imagina se ele teme fechar as pálpebras e perder a última imagem que teima por mantê-lo vivo. Uma imagem que talvez incluísse amor, risinhos e mãozinhas fofas.
Então, um som do lado do beliche de madeira tosca. Um rapazote que parece assustado demais para ser perigoso. Estivera escondido até aquele momento. Bom trabalho!
O elfo se levanta e põe os sentidos em alerta. Mas não há mais ninguém. O homem quase morto parece pedir calma ao outro, mais novo. Ele parece querer protegê-lo. Como um pai protege um filhote que treme segurando um machado de lenhador. Seus olhos são confusos. Não parece que as grotescas imagens que viram possam deixar de se repetir diante deles até o fim de seus dias. Devem ter visto mortes demais. Mortes muito doloridas para manter a sanidade dentro dos miolos.
E é olhando aquele grande humano prostrado no chão que o elfo observa, por um longo momento, a brevidade da existência e a vontade de persistir, quando ouve que muitos outros uivos se juntam no entardecer para combinarem onde achar mais comida naquela noite de outono dentre as árvores de Nuvermolls.
Ele deixa a cabana, sobe a colina e procura na vegetação o arco e as flechas. Acha o tronco rachado com facilidade. Há na aljava um flecha especial, feita com pedra da lua, a prata-aço com que foi forjada Ishabarr. A flecha mata bruxas e demônios controlados por elas. Serve também contra outras coisas, e assim que se volta de novo para a cabana, vê um grande vulto peludo se aproximando da porta. Eles caminham em duas patas quando estão próximos da entrada. São enormes como ogros e, para um elfo, isso só significa que são alvos fáceis. Sim, a prata serve bem contra eles. Mas guarda a flecha na aljava. Não vê ainda necessidade de usá-la. Não é para os que já não tem salvação.
O elfo pensa se não deveria permitir que os lobos fizessem sua refeição. Afinal os homens estão perto demais. Perto demais das fronteiras de Foreinl! A faxina que fariam substituiria o bom-senso que os homens não tiveram de ir embora, de se manter longe, como deveriam fazer... Não!
E o grito que veio descendo a colina, veio com pontas afiadas da madeira reta do freixo, refletindo a decisão do elfo. Manter-se alheio àquela matança não era uma opção hoje. E o sibilar das penas brancas traçaram uma ponte firme entre o sentimento de justiça dos elfos e o desejo de vingança dos homens, e algo falava a língua dos seres escuros e suas bocas tinham dentes aguçados do tamanho de dedos. E as flechas penetraram o corpo coberto de pêlos espessos e os passos levaram o ilarin a estraçalhar três grandes peitos com a potência dos impactos das flechas élficas. E três grandes lobos caíram mortos tão rapidamente que só então houve alguma reação. E a escuridão não era mais inimiga dos homens quanto era dos elfos, e o sangue quente da floresta borbulhou no coração do ilarin enquanto atirava o arco de lado, quando os saltos dos lobisomens já os haviam trazido próximos demais para retesar a corda do arco.
O aço élfico de Ishbarr cortou uma cabeça enquanto mandíbulas agarravam seu braço, do lado machucado, e a dor fez com que as mãos do belo ser soltassem a faca. Ele foi atirado de encontro ao alpendre da cabana, e ali permaneceu até que um grande corpo peludo cobriu-lhe os olhos, garras segurando-lhe os braços, e o urro veio-lhe aos ouvidos num lancinante triturar de ossos. O lobo foi lançado para trás, e em seu peito havia uma espada, e o braço que agarrava seu cabo ainda tentou retirar o aço cravado no velo grosso do animal morto.
Um outro urro em meio a dentes escancarados voltou a subir do lado direito de suas orelhas, mas o elfo se levantou e achou um jovem segurado um machado de lenhador que cortou então uma perna de lobo de alguns dos que ainda não haviam percebido que o jantar de hoje ainda não estava posto. O machado voltou a comer o ar triturando um crânio que agonizava sobre a pequena escada de madeira que levava ao interior da moradia. Antes que o último atacante conseguisse dar o segundo salto da fuga que pretendia empreender, o machado foi atirado por um braço de homem com a maestria dos ilarins, cravando em suas costas curvadas de vértebras saltadas.
Silêncio.
O elfo viu que aquele que pretendia proteger tinha então se juntado à sua pequena família, finalmente. O grande homem, de rosto peludo.
Já era noite em Nuvermolls. O elfo achou que não poderia dormir ali. Com as sombras poderia se esgueirar pela margem do rio e passar pelos vigias dos ogros que ainda deveriam ter permanecido procurando alguma pobre vítima.
— Obrigado. – disse o jovem humano.
O elfo não respondeu e olhou para o homem velho. Ele agora tinha o peito aberto. Havia vértebras salientes com suas pontas brancas saindo para fora de sua túnica esfarrapada. E a luz parecia estar fazendo o rapaz crescer. Ele fora vítima do ataque anterior dos lobisomens e agora a lua redonda o banhava pela primeira vez, fazendo germinar o feitiço antigo dos homens-lobos. Se os outros integrantes da família humana tinham servido de alimento para os lobisomens, não parecia que eles tinham vindo aqui, nesta noite, para se alimentar, afinal. Tinham vinda para dar boas-vindas!
O humano caiu de joelhos e ele implorava algo que o elfo não precisava compreender através de sua língua para saber o significado.
— Não posso ajudá-lo dessa vez humano. Seu ferimento é grave demais. Poderá ver sua família em breve.
“Sim. A verei em breve.” – talvez o humano tenha dito.
“Qual é... seu nome, elfo?” a voz perguntou.
— Sou Gelfor*.
“A noite está boa.” E os pêlos já começavam a crescer pelo corpo do rapaz, que se recurvava em lancinantes dores, que se alongava sob o feitiço da lua.
— Sim, há uma grande lua lá em cima, e o cheiro do rio diz que logo vai haver chuva.
“A chuva é boa em Nuvermolls”.
— Sim. É boa.
“E a floresta não dorme”...
O homem não terminou o que dizia. Já não era mais um homem. Gelfor afrouxou a flecha de ponta de prata do cordame do arco. O antigo espírito do hiurglan era quem agora comandava a fera. “Sua família agora está lá. Eles correm na matilha, pelos caules grossos”. O lobisomem o olhou com olhos amarelos recém abertos para àquele mundo. E farejando o ar uivou ara seu novo povo, que respondeu ao longe, para além do rio, depois das colinas onde os ogros agora deveriam estar tendo problemas nesta noite. O lobo de pêlos negros saltou e desapareceu dali para juntar-se à alcatéia. Perderam muitos, mas ganharam um.
O elfo observou o vapor quente que emanava das feridas do cadáver do velho humano, por um tempo. Depois cavou um buraco e o enterrou, conforme o costume dos homens.
Eram tempos em que os espíritos estavam acordados como há muito não estiveram. Havia coisas ocultas aguardando sempre, em algum lugar esperando o tempo lhes dizer que já chegara o dia. Mas em cada árvore dormia uma amadríade que orava pelos seres de luz, e os elfos eram os guardiães desta luz. Ainda eram, pelo menos, mas talvez chegasse um dia em que outros tomariam esta tarefa para si. Até lá, a floresta não poderia dormir, e ogros ou os homens deveriam ser mantidos longe.
Re: Contos fantasticos !!!
A dama Noturna, O Oráculo Sombrio
Fantasia
- Spoiler:
- Meu fôlego já estava no fim quando nos afastamos pela terceira vez. A luta estava difícil e eu já não estava tão certo de minha vitória. Arrumei o elmo e chequei meu escudo prateado, aguardando pelo retorno do inimigo.
Estávamos no coração do Pântano Seco, local de terra argilosa, escorregadia, apenas umedecida com o que sobrara da água fétida que um dia o cercou. As árvores mortas nos cercavam agourentas, com seus troncos enegrecidos e raízes expostas. Não havia ninguém para testemunhar minha morte, mesmo ela representando o fim da esperança de muitos.
Era para ser assim, uma luta honrada entre homem e monstro. Uma luta solitária entre o Bem e o Mal.
Maherbal, meu inimigo, vertia fúria pelos olhos, fitando-me com intensidade suficiente para por a correr homens sem vontade, mesmo sendo seu porte, por si, suficiente para isso: um guerreiro centauro que, tocado por uma das maldições dos Vales dos Horrores, tornara-se uma espécie zumbi. Esta era sua casa, local para o qual retornava após caçar os homens das vilas próximas.
Eu cuspi sangue, sentindo o corpo reclamar das inúmeras pancadas que recebera da poderosa criatura. Meus cortes em seu corpo eram profundos, porém inúteis. Tudo indicava que a deusa dos mortos só o levaria para o descanso eterno quando sua cabeça fosse separada do corpo.
Então ele avançou com um brado feroz e preparei-me para o embate. O primeiro murro, repleto da força de sua investida, quase arrancou meu escudo. O segundo acertou-me no peito e não me derrubou por pouco. Recuei dois passos, procurando pela brecha que não existia, e encostei em uma das sinistras árvores. Maherbal empinou, urrando feroz, para atacar-me com os cascos dianteiros e punhos, certo de que me esmagaria contra a madeira escura. Mas minha espada avançou antes e não encontrou resistência na perna eqüina, acertando o joelho para separar a carne.
Joguei-me de lado e, quando ele pendeu sem equilíbrio, ergui minha lâmina reluzente para desferir minha fúria contra aquele ser.
O golpe cortou a escuridão, exatamente como estava escrito no livro chamado Destino, registrado pelas mãos do próprio Oráculo Sombrio, a Dama Noturna.
Eu jamais esquecerei o dia em que a visitei e tudo começou. O dia em que aprendi que o destino pertence aos deuses e que os homens não devem bisbilhotá-lo.
Vários corvos voaram em meio à gralhadas e bater de asas, espantados da velha árvore que vigiava a entrada de minha morada. O relinchar do cavalo ecoou quando o mesmo foi preso e as vozes dos heróis incautos fizeram-se notar. Nenhuma surpresa, pois eu sabia que viriam.
Naturalmente era noite, pois de outro modo seria impossível encontrar minha gruta. Tal proteção havia sido imposta desde a Era de Rashidi, quando me consultavam a cada dia, e este lugar era protegido por seus seres noturnos. Porém, nada mais havia: os guardas se foram, dispersados pela morte do mago tirano e as consultas deixaram de acontecer. Eu fui abandonada.
Mas estava escrito no livro chamado Destino que tolos viriam ao longo dos séculos seguintes. E vários foram eles, com diferentes perguntas e anseios.
E, naquela noite, mais dois atravessaram as estreitas paredes da gruta que me aprisiona, esgueirando-se entre pedras e terra úmida na incerteza de me encontrar. Não os culpo por duvidar. O Vale é amaldiçoado e muitas das suas lendas são irreais.
Mas, desde que fui aprisionada, tornei-me bem real para os vivos de Melkearis. Sou a antiga herdeira da noite eterna, de liberdade usurpada por um homem. E não duvidem, pois tendo o tirano Rashidi feito o mesmo com minha mãe Amupherus, deusa dos Mortos, não seria eu que resistiria ao seu poder.
A fraca luz da tocha logo surgiu, tímida, refletida na parede úmida. Eles estavam próximos. Abandonei meus devaneios e levantei-me, esticando o corpo ressecado, forçando as correntes mágicas que atravessavam meu peito e perpetuavam minha prisão. Com a luz fraca, pude rever os símbolos sob meus pés, feitos de esmeralda e rubi fundidos à placa de prata, abaixo de mim.
Os dois finalmente adentraram minha “cela”.
Primeiro Sir Sullivan, de espada prateada empunhada por músculos poderosos. Armadura suja, surrada, e barba por fazer. Seus olhos negros, de pupilas dilatadas, me encontraram rapidamente e tiveram a mesma reação de todos que haviam vindo antes dele: lacrimejaram.
Depois entrou o jovem Isao, de tocha na mão e corpo protegido por uma armadura de couro de segunda mão. Trazia um escudo de prata nas costas. A barba era tão escassa quanto sua idade. Seus olhos também verteram lágrimas, mas sua testa franziu e o maxilar travou, como se quisesse me atacar. Novamente, não o culpo. Sou um monstro cercado por ossos humanos.
— És a Dama Noturna, O Oráculo Sombrio? – perguntou o cavaleiro, o receio e dúvida recheavam sua voz.
Encarei-o, fitando-o além de seu corpo. Lia em sua mente a batalha que era travada: seu instinto ordenava que corresse, seu treinamento insistia em mantê-lo firme.
— És a Dama Noturna, O Oráculo Sombrio? – repetiu, desta vez estendendo a mão para que o jovem lhe entregasse o escudo.
Quando a prata refletiu-me, pude relembrar no que me tornara. Antes, como uma Guia dos Mortos, eu assumia diversas formas para agradar as almas que deviam me acompanhar. A mais comum era a bem quista pelos elfos: A bela mulher de longos cabelos negros e pele alva, a noite eterna para o dia que a vida representava.
Mas o cativeiro deturpou-me e minha aparência corrompeu-se junto de minha razão. De guia, fui feita oráculo, presa entre este mundo e o outro por um ritual profano que roubou minha liberdade, meus dons e, dizem, minha sanidade.
Permaneci subjugada, obrigada a cumprir uma maldição escrita com sangue de deuses por homens loucos.
E no reflexo do metal prateado, a verdade era inegável. Minhas asas, antes de penas negras, eram agora apenas estruturas ósseas. Meus cabelos emaranharam-se e meu corpo ressecou. Minha cabeça tornara-se um crânio desgastado, que pouco se assemelhava ao dos humanos, pois era alongado como de um felino e tinha três maxilares, encerrando-se cada um no queixo do de cima. Um resquício da loucura que fora marcada em minha essência por um dia longínquo.
— Sou a Filha da Morte, a Dama Noturna, o Oráculo Sombrio... Sim, possuo tais nomes, Sir Sullivan. – respondi com minhas três bocas babando um líquido escuro.
Eles recuaram.
— Eu vim consultá-la. – disse ele, como se eu não soubesse.
— Assim como muitos... Mas nenhum ouviu o que queria... Se acredita que será diferente dessa vez, é um tolo.
— As lendas dizem que tu conheces o destino, que sabes o momento do fim das coisas.
— As lendas estão certas... Mas isto não o faz menos tolo. Vê os ossos que nos cercam? São de ingênuos como você.
— Tu os mataste?
— Sim.
Silêncio. Tão profundo que eu pude escutar seus corações temerosos.
— Eu vim consultar-te. As lendas dizem que és obrigada a responder.
— Novamente, as lendas estão certas... – sussurrei ansiosa. Sabia o que iria acontecer e a maldição me impelia a desejar aquilo. – Mas existe um preço a se pagar...
— Eu aceito.
— Olhe em sua volta, cavaleiro. Tem certeza?
— Sim.
— Sir. Sullivan, talvez devêssemos retornar... – ao menos o escudeiro era sensato, ou somente desprovido de coragem.
— Quieto! – ordenou o cavaleiro e, voltando-se a mim, exigiu: – Responderás minha pergunta!
Inclinei a cabeça, abri os braços e fiz reverência. Só então respondi:
— Pergunte o que desejar, tolo. Sou conhecedora do que já foi e do que virá, não há pergunta sem resposta para o Oráculo Sombrio.
— Qual é o preço? – ele hesitou, o que me fez rir.
A arrogância se desfizera diante de minha aceitação. Talvez por medo de ouvir a verdade, ou por raciocinar sobre o preço a ser pago.
Estendi meu corpo para frente, esticando as correntes eternas, e sussurrei em meio à minha baba profana:
— A vida daquele que perguntar...
— A vida?
— Sim... Eu responderei sua pergunta e, depois, devorarei sua carne e beberei seu sangue. Este é o preço dos tolos. Esta é a moeda dos deuses.
— Vamos embora, Sir Sullivan.
— Precisamos da resposta! – gritou ele, fazendo sua voz irada ecoar por alguns segundos. – Maherbal precisa ser detido.
— Mas ela pede um sacrifício.
— Tu poderias oferecer-te a fazê-lo, escudeiro.Não pude conter o riso novamente. Ver a decadência humana, tola e covarde, me fazia rir. Teria o mundo todo se tornado assim após os séculos?
— E... Eu? – gaguejou o jovem.
— Quanta honra... – provoquei.
— Sim, tu! És jovem, sei bem, mas minha espada é necessária e não posso perecer aqui.
— Mas meu senhor...
— Nosso povo depende de ti. És mesmo tão egoísta? – o cavaleiro aproximou-se.
— Eu... Eu não... Eu não posso...
— Pode! Isto nos mostrará como matá-lo.
— Não meu senhor, por favor.
— Faça! Ou terei que obrigar-te. – disse, agarrando-o pela nuca e puxando o jovem trêmulo até minha frente.Permaneci imóvel, observando-os com minhas órbitas vazias.
— Faça! – repetiu Sullivan.
Silêncio. O escudeiro mantinha a cabeça baixa, envergonhado pela covardia. O cavaleiro, irritado por encontrar-se sem escolha, não via outra forma senão obrigar o amigo a ter coragem.
— Ordeno que faças! Pergunte sobre Maherbal.
— Eu não consigo. – já dizia em meio a soluços.
— Covarde!
— Desculpe...
— Pergunte! Como e quando Marhebal irá morrer? Diga ou juro que eu mesmo te mato.
— Em dois anos. Dentro do Pântano Seco, pela espada prateada do cavaleiro da Vila do Lago, o centauro imortal irá perecer, pois será decapitado. Seu reinado de terror irá então acabar. – respondi secamente.
— Então conseguirei matá-lo?
— Não... Você conseguiria matá-lo. – comentei, aguardando alguns segundos, para observar o semblante perplexo do cavaleiro. – Mas você não teve coragem de enfrentá-lo e veio a mim.
— Espere... – enfim ele percebeu. – Eu não fiz a pergunta.
— Eu a escutei claramente, tolo.
— Mas eu não aceitei... – disse, erguendo a espada, como se ela fosse defendê-lo.
— Sim, aceitou. Duas vezes.
Então abri minhas bocas e o envolvi com minhas línguas enegrecidas, arrastando-o até minhas mãos. Sua espada e escudo ficaram no caminho enquanto ele, apavorado, debatia-se para evitar o impossível. Tolo. Uma vez que temia a morte, não deveria ter vindo tratar com a filha da mesma. A Herdeira da Noite Eterna, a Dama Noturna.
Ao terminar meu banquete, observei o jovem que ali ficara, imóvel, temendo ser notado. Estava encostado contra a parede, com a espada e escudo de seu antigo senhor. Não nos movemos por um longo tempo, então, decidido, ele se foi. Partiu de volta para sua vila. Seria o arauto da “terrível” perda que sofreram.
O sangue banha meus pés e a cabeça de Maherbal rola pelo chão sujo. Seu corpo insiste em mover-se por mais alguns segundos e então tomba sem vida. O pesadelo acabou.
Observo a criatura por longos segundos. O silêncio de sua morada me acalma e este momento, previsto há dois anos, me faz pensar nos deuses e seus planos. Pergunto-me se estaria aqui caso Sir Sullivan não tivesse decidido ir até aquela gruta. Indago se a Filha da Morte, que tudo sabe, acertou sua profecia e este era meu destino ou se fui manipulado pela filha de um deus. Não importa. Não quero saber.
Levanto-me, seguro a cabeça do monstro pelos cabelos e inicio a caminhada de volta para casa.
A Vila do Lago não precisará mais temer seus raptos e, meu retorno com sua cabeça, será o marco de uma nova era. Um tempo em que um novo herói substituirá o corajoso Sir Sullivan, que deu sua vida para descobrir como matar o monstro e me ordenou cavaleiro protetor de meu povo. Conferindo-me suas posses, direitos e deveres.
Sim, tive que mentir. Caso contrário jamais me aceitariam de volta, isso se não fosse morto pela minha covardia, o que não me espantaria. Vivemos nos Vales dos Horrores, um local amaldiçoado em que as trevas dominam e as virtudes foram deturpadas.
Re: Contos fantasticos !!!
O arco e a pólvora
- Spoiler:
- Era uma noite boa para sentir a fúria da batalha e ouvir gritos de guerra enquanto o vento fresco era consumido no calor dos corpos em movimento. Pena que o silêncio fosse tudo o que permeasse as árvores frondosas do Sacro-Império Coranuano. Aquela nação guerreira era pura paz dentro de seus próprios domínios, levando as mazelas apenas para os vizinhos que não baixavam a cabeça para suas exigências. Esses poucos que não tremiam ao ouvir que as tropas disciplinadas dos coranuanos estavam movimentando-se para não serem esmagados e levar o contra-ataque para as bases mais próximas do inimigo.
Flenniap, elfo guerreiro do império Soluah, tinha pensamentos raivosos naquela noite. Estava furioso por causa da cautela que precisava seguir para tentar se infiltrar nas terras dos malditos humanos. Ele, nascido em família nobre, precisava se esgueirar e temer que fosse ouvido para atravessar a mata e chegar até a pequena vila mais adiante. Sua missão, assassinar o Magistrado coranuano que recentemente se instalara lá. Os elfos não sabiam o motivo daquela figura misteriosa ter chegado ao local, mas tão logo souberam das informações, decidiram que não era de se esperar nada de bom vindo da atitude inusitada.Resultado, enviaram Flenniap e outros quatro elfos para o assassinato.
O guerreiro escolhera bem a equipe. Havia dois arqueiros, um mago e um rastreador para guiá-los mata adentro. Os olhos adaptados à visão noturna facilitavam a movimentação dos elfos, mas, por duas vezes, eles quase esbarraram em vigias coranuanos que vasculhavam a floresta. O grupo manteve-se nervoso ao ver s armaduras dos guerreiros de elite do império inimigo. Flenniap sentiu-se envergonhado por eles. Um elfos com mais de cem anos de treinamento deveria ser melhor do que qualquer humano. Porém, era uma pena que as guerras provassem o contrário. Os coranuanos nasciam respirando a guerra. Qualquer vila tinha um campo de treinamento e até os camponeses conseguiam levantar uma espada, para o horror dos reinos de Rannian.
Flenniap avaliou a região mais uma vez. À frente, o rastreador apontava para a melhor trilha. O guerreiro observou as árvores de troncos largos escurecidas na noite. Não havia luar atravessando as folhas. Não havia delicadeza naquelas plantas robustas, crescidas para sobreviver. Tudo era forte e maciço naquele reino. não havia beleza fútil nem na natureza. Sem querer, o elfo pegou-se elogiando os coranuanos. Se seu povo fosse sempre assim, poderiam estar em expansão ao invés de lutando para se defender da ameaça.
— Falta pouco – disse o rastreador. Ele era uma figura pequena, de cabelos cor de cobre, vindo de uma família pouco conhecida em Soluah. Sua forma física equivalia a sua posição social. Flenniap, como nobre e líder, era o oposto. Tinha ombros largos, quase tão poderoso quanto os de um guerreiro humano. Os cabelos dourados combinavam perfeitamente com os olhos de diamante e ilustravam o rosto esbranquiçado. Poderia ser confundido com os deuses se não estivesse usando uma armadura com tão pouco glamour. Assim como o restante do grupo, tinha apenas uma cota de malha coberta por um tecido acinzentado por baixo das capas élficas.
Flenniap deu sinal para os dois arqueiros posicionarem-se mais à frente. Os dois se moveram rapidamente, desaparecendo no meio do mato. O rastreador fez sinal para que o guerreiro e o mago seguissem. Assim eles foram. Correram silenciosamente até pararem na borda da mata. Havia pelo menos duzentos metros de clareira separando as árvores das casas. uma única sentinela estava de vigia naquele lado. Todas as outras estavam embrenhadas na floresta, esperando atocaiar os inimigos que tentassem se aproximar da vila. “Idiotas, imaginam que podem pegar invasores elfos”, pensou Flenniap.
O guerreiro fez sinal para o processo se invasão se acelerar. Cada um sabia o que deveria fazer. O mago, um primo de Flenniap, invocou uma magia de invisibilidade sobre o arqueiro e o rastreador. Agora já tinham um batedor perfeito e um elfo para dar-lhe cobertura. Mesmo protegidos pela magia, rastejaram por metade do caminho, para depois se porem de pé e iniciarem a corrida até a sentinela. O rastreador chegou tão rápido que Flenniap sorriu ao ver a sentinela caindo com o pescoço cortado. Feito o trabalho, o restante do grupo iniciou a corrida. Agora era uma questão de tempo até que dessem por falta daquele soldado.
As botas dos elfos tocaram as pedras que pavimentavam as ruas pequenas da vila. Ficaram impressionados por achar um aglomerado humano tão pequeno coberto por ruas pavimentadas. Aquele império não era um inimigo normal ou... havia algo a mais naquela vila pacata. Flenniap percebeu a diferença quando dobraram a primeira esquina. Um dos arqueiros estava posicionado atrás para a defesa e o outro correu para a posição avançada ao lado do rastreador. Durante aqueles passos rápidos, o grupo viu a cabeça do colega se abrir pouco acima da orelha pontuda. O crânio aberto liberava uma corrente absurda de sangue enquanto o corpo cambaleava para o chão. O rastreador levantou as duas facas que usava como arma e começou a procurar por cobertura. Gritava desafios para algo que Flenniap ainda não via, quando parou de repente. O corpo tremeu no ar com os ombros indo e vindo à medida que furos enormes iam aparecendo no peito. Cada um deles liberava sangue élfico enquanto o rastreador caía de joelhos para se afogar no líquido vermelho que se misturava ao do colega.
— Por Helom! – disse o mago ao lado de Flenniap. Ele esperava pelas ordens enquanto o guerreiro concluía que recuar era um convite à humilhação eterna por não cumprir a missão. Olhou de lado e saltou para perto do corpo dos amigos, assumindo cobertura. O arqueiro e o mago fizeram o mesmo e em brvee uma flecha já voava contra o inimigo. Flenniap ergueu os olhospara ver os soldados coranuanos apontando canos para eles. a flecha acabava de derrubar um deles, por sinal um que tentava colocar alguma coisa dentro do cano. As narinas sensíveis do elfo sentiram o cheiro de enxofre no ar.
— Que magia é essa? – perguntou o mago, surpreso, enquanto procurava componentes para uma magia de ataque e o arqueiro derrubava outro inimigo.
Flenniap sabia que aquilo não era magia. olhou mais uma vez para ter certeza e notou o Magistrado de braços cruzados. Vestia uma armadura leve e portava dois aqueles canos curtos na cintura. Aquelas eram armadas de fogo, ferramentas covardes e que ofendiam os deuses. Eram parecidas com as que os primos élficos de Emeneluah utilizavam. Mas por que não faziam barulho? Magia de silêncio! Ele via os lábios dos soldados se movendo, mas não saía som algum. Era hora de seguir enquanto eles recarregavam.
— Preciso de cobertura para chegar a eles! – exigiu Flenniap, sacando as duas lâminas nobres, presentes do imperador. O arqueiro continuou com as flechadas enquanto o mago levantou-se sorridente.
— Pode ir primo...
Flenniap rolou pelos cantos da rua, passando próximo às casas. parou ao lado de uma pequena carroça enquanto contava o tempo e os inimigos. Eram cinco deles, mais três corpos já estendidos no chão. Errado, quatro, pois quatro setas douradas cintilaram pelo ar para explodirem no peito de mais um. O homem caiu com a pele queimada e ferimentos profundos que o matariam nos próximos minutos. O Magistrado pouco fez além de olhar para o soldado caído e os outros inimigos continuaram preparando as armas.
Os tiros recomeçaram. Flenniap contou sete e iniciou a corrida. Notou com o canto dos olhos que o primo mago tombava enquanto a energia mágica que estava para acumular era dissipada. Os ferimentos mortais impediram a concentração. Faria uma prece por ele depois, mas agora o coração de guerreiro apenas dizia que ele deveria continuar. Os coranuanos haviam perdido seus tiros.
— Fleneli Helom! – o guerreiro chamou, dando ordem para que o arqueiro atirasse tudo o que pudesse naquele meio tempo.
Os passos de Flenniap ficaram lentos de repente. Aqueles poucos metros aumentaram muito. E aquilo não era efeito de magia, mas da surpresa quando o guerreiro viu o magistrado levantado uma pistola e mirando. Um segundo soldado ao lado dele tinha um rifle encostado no ombro, também preparado. Não, eles não poderiam ter mais munição. Não havia tempo. Ele contara... um tiro para cada rifle e mais dois para as pistolas do Magistrado. Eles estavam blefando.
Foi uma pena para os elfos, porque os coranuanos não tinha o hábito de blefar em batalha. Flenniap não precisou se virar para saber que, quando o soldado atirou com o rifle, a cabeça do arqueiro explodiu. A bala passara pelo olho e destruíra globo, nervos e o cérebro, enquanto se alojava próxima ao crânio. O corpo mole que caiu era o mesmo destino de Flenniap.
— Chama-se pistola de repetição – disse o Magistrado, apertando o gatilho.
O elfo continuou correndo. Gritava todos os nomes do panteão da raça e avançava. A magia de silêncio dos coranuanos perdera o efeito e o estrondo da pólvora explodindo acordou morados e agrediu os ouvidos do elfo antes que a primeira bala fizesse seu estrago. Era um aviso do que estava por vir.
O projétil deixou a pistola quente como brasa sem perder o calor enquanto voava. O metal furou o tecido preto como pedra caindo no lado, tilintou por frações de segundos ao vencer a resistência metálica da cota de malha e nem precisou de esforço para romper rapidamente a pele, deixando uma ferida vermelha, redonda e sangrenta ao penetrar no corpo. Raspou de leve em uma costela, aumentando a sensação de ardência enquanto destruía artérias até finalmente experimentar ar de novo, agora o ar quente que enchia os pulmões de Flenniap. O elfo quase não sentiu os tiros seguintes. Contou sete enquanto corria. Um resvalou na cabeça, retirando um pouco o equilíbrio. Outros quatro furaram o peito, o penúltimo acertou o ombro e o último se perdeu na noite.
A corrida perdeu fôlego tão rapidamente quanto o sangue que se esvaia com facilidade do corpo do elfo. Os coranuanos não se mexeram enquanto viam o inimigo se aproximar. Não dariam um passo mesmo que um elefante estivesse em carga rumo a eles. O Magistrado adiantou-se e esperou pelas espadas do elfo. Elas vieram com movimentos fracos e programados pelo cérebro que se desesperava por oxigênio. O coranuano desviou-se do primeiro e segurou o braço que tentava o segundo golpe. por fim, enfiou uma lâmina na garganta do elfo.
— Chama-se baioneta – disse, enquanto via o sangue escorrer pela lâmina e descer pelo cano quente da arma. Esperou que as reações do corpo acabassem antes de liberá-lo para a queda dos cadáveres. – Limpem tudo e queimem os corpos. Preparem-se para mais treinamentos amanhã. Vamos investir nessas armas de repetição. Elas serão úteis.
O teste dera certo. Os arcos élficos podiam ser rápidos, porém não tinham o poder de uma pistola de repetição. Os coranuanos haviam trabalhado anos naquelas armas. Alquimistas e pesquisadores da guerra investiram suas vidas para criar aquilo. Naquela noite, soldados morreram para provar na prática o benefício que as armas poderiam trazer nas situações mais inusitadas de batalha. Agora, com os últimos testes quase no fim, os coranuanos preparavam-se para um golpe final. Era hora de fazer os elfos engolirem seu orgulho.
Re: Contos fantasticos !!!
Algozes
- Spoiler:
- Quando subo esta colina, onde descansa o túmulo que deveria ser meu, sempre tenho a mente invadida pelas lembranças do passado.
Uma época onde Crown orgulhava-se das riquezas e poder que ostentava. Atributos estes, conquistados com muito sacrifício pela minha linhagem. Sempre que visito este jazigo, meus pensamentos agitam-se e não consigo deixar de pensar em como aquele dia sangrento mudou minha vida.
A manhã de outono em que conheci meu algoz ficaria selada também como o dia em que descobri do que era capaz.
O vento podava as árvores naquele início de outono, estendendo um belo tapete de folhas marrons sobre a praça central. O olhar das crianças transmitia alegria enquanto corriam em volta do monumento em memória ao fundador destas terras. Nossas belas mulheres ainda sorriam e o povo se animava em vista do crescente comércio com as terras de Oberil.
Lembro-me de estar apanhando ameixas para as crianças quando a primeira bola de fogo cruzou os céus. Vários olhares pasmos acompanharam aquele sinal de morte, que voou por nossas cabeças até chocar-se contra uma casa, explodindo em chamas para consumir tudo em sua volta.
Mas foi ao procurar sua origem que meus joelhos tremeram. Ao fitar o céu azul e ver, com olhos de um guerreiro que desconhecia a guerra, mais uma dezena daquelas esferas flamejantes, arautas da destruição.
Segurei as crianças e as arrastei para casa, deixando-as com seus pais. Desembainhei minha espada por reflexo, deixando-a preparada para o desconhecido. Saí pelas ruas, observando o caos. Os soldados ordenavam que eu procurasse abrigo e eu os ignorava, procurando por um inimigo ou por uma chance de ajudar na defesa da cidade. Eu andava em círculos, assim como nossas defesas, que não entendiam o que acontecia.
— Rodall! – veio a voz conhecida ao mesmo tempo em que a mão forte tocou meu ombro. – Me siga.
Não ousei desobedecer. Jamais o fizera. Não com o Lorde de Guerra Callian, conselheiro de meu pai e meu tutor desde a infância. Seguimos pelas ruas da cidade em chamas, rumo ao castelo. Aquela chuva de fogo espalhara caos e morte, liberando o medo de cada súdito de Crown.
Então portais abriram-se, círculos vermelhos emitindo luz em direção aos céus. E vieram os inimigos. Alguns de nossos soldados mais ousados atravessavam o círculo, sumindo na luz, para lutar no campo inimigo. Enquanto outros cercavam as passagens mágicas, para confrontar a horda que saía do desconhecido.
Continuamos nossa corrida até chegar às muralhas do castelo. Os portões de madeira e aço mantinham-se firmes, mesmo sendo forçados por um aríete inimigo. Uma criança chorava ao longe e uma mulher chamava por seu marido. Gritos de desespero fundidos ao som do aço e fogo podiam ser ouvidos. Por todos os lados encontrava-se apenas o caos.
— Galio! – chamou meu tutor, logo que nos aproximamos da torre leste de vigia.
O grito chamou a atenção de alguns invasores. Minha espada mantinha-se firme, ainda virgem de qualquer sangue inimigo, mas treinada por anos de dedicação e vontade de proteger meu povo. Mais invasores vieram, alertados pelos primeiros.
Teriam chego a nós e o combate aconteceria, mas uma voz conhecida entoou palavras antigas, preenchendo o ar com seu poder. O chão então tremeu e as rochas ganharam vida, empilhando e juntando-se até erguer do solo uma forma humanóide de pedra e terra. Gigantesco, o guardião elemental rugiu e socou o chão de modo intimidador, desafiando o inimigo a avançar. E eles aceitaram o desafio, somente para serem esmagados pelos poderosos punhos e pés do guardião.
Só então Gálio, o mago de guerra, surgiu dos céus, montado em seu corcel das nuvens, um animal encantado capaz de cavalgar os ventos. Em sua mão direita, o cajado de Mali, herança dos arcanos que ocuparam sua posição nas eras passadas.
— Meu pai, como está? – perguntei, sem pensar em ocultar o medo e a vontade de estar em segurança.
— O rei está a salvo. – respondeu o arcano. – Eu o transportarei até ele.- Os soldados já estão reagindo, mande-me também, pois iremos juntar o conselho e preparar nossa retaliação. – bravejou o Lorde de Guerra.
— Não comece o conselho sem mim, eu quero participar. – afirmou o mago, erguendo o cajado, fazendo-o brilhar como o sol.
Meu corpo tornou-se leve, a visão escureceu e me senti em queda, mas meus pés tocaram o solo novamente, formigando levemente, e minha visão voltou.
Meu pai abraçou-me antes que pudesse dizer qualquer coisa. Um abraço forte e rápido. Minha mãe veio em seguida, aos prantos, revirando minhas roupas e apalpando minha pele à procura de ferimentos, como se eu ainda fosse uma criança. Meu pai então urrou de dor, repentino e inesperado. Gritos e o som do aço sendo desembainhado invadiram o local sem aviso, desrespeitando as tapeçarias com imagens sagradas da deusa da Justiça, Rauny. Minha mãe soltou-me e, levando as mãos à boca, ajoelhou-se descrente, paralisada em meio ao desespero. Só então vi o que acontecia. O momento derradeiro, cujos detalhes em sons, cores e cheiros, não me abandonam jamais.
Meu pai, estendido no chão, erguia a mão em sinal de misericórdia. A garganta vertia sangue, enquanto a espada de Callian, meu tutor, desferia mais um golpe sobre o corpo já condenado. Da dezena de soldados que nos protegiam, somente cinco atacaram seu líder, ainda assim, hesitantes. E cada um encontrou sua morte, rápida, em golpes certeiros ou lenta, em membros decepados. O Lorde de Guerra era o ícone para nossos guerreiros e sua traição era a ruína de nosso mundo.
Lembro-me dos olhos castanhos de meu pai, abertos em expressão inconformada. De sua boca rasgada, que deixara de mover-se tentando nos dizer algo. E lembro-me de minha mãe, tão indefesa quanto um bebê, segurando sua mão contra o peito, na esperança de que o marido amado voltasse à vida. Lá fora, o povo chorava e clamava por misericórdia. Por isso, eu ataquei.
Minha espada avançou antes de meu pensamento, colidindo-se contra a lâmina de meu tutor. E o aço inimigo reagiu, vindo contra meu peito. Movimentos conhecidos. Defesas esperadas. Éramos irmãos. Mas ele sempre seria melhor. Callian girou a espada tirando minha defesa e atacou visando meu pescoço. Joguei o corpo para trás, mas não o suficiente. O aço acertou próximo à minha orelha, rasgando minha bochecha e arrancando alguns dentes.
E quando resisti à dor, deixando de chorar, sem importar-me com mais nada, eu soube quem eu era. E revidei, sem opção alguma, eu lutei como nunca. Sentindo o aço vibrar a cada golpe rechaçado. Engolindo meu próprio sangue, sem tempo para respirar, eu desferi tantos golpes quantos pude. E ele recuou.
Um passo. Dois. E no terceiro, desequilibrou-se, tropeçando em meu pai e tombando. E eu pulei sobre ele, um animal encurralado e furioso. Não me lembro da sensação de ter atravessado a espada em seu coração. Ou mesmo de ter percebido quando o combate no restante da cidade cessou. Sequer do toque de minha mãe, que disse ter tentado me tirar de cima do traidor.
Mas eu ainda vejo seus olhos abertos. Eu ainda sinto seu cheiro e lembro da espada vibrando com sua última batida de coração. Não há como esquecer daquele dia, quando a vítima tornou-se algoz. E o algoz, mesmo vítima, matou o filho inexperiente do rei que residia dentro de mim.
Nós o enterramos como herói. E seu feito foi condenado ao esquecimento, pois nenhuma invasão nos arruinaria mais que esta amarga verdade. Eu jamais soube porque fomos traídos. Prefiro acreditar na mentira que contamos. Uma história na qual lutamos lado a lado, onde nosso Lorde de Guerra sacrificou-se para proteger a família real. Uma bela história contada pelos bardos, que inspira o povo e me anima a continuar.
A cada aniversário eu rezo à Rauny pela sua alma. E agradeço, pois ele matou minha inocência e meu medo, criando o rei e herói que o reino precisava para enfrentar a difícil guerra que viria. Meu povo resistiu àquele ataque e aos muitos outros que viriam.
Hoje, subo aqui pela última vez, meu amigo. Irei guiar nossa gente para as terras de Oberil, fugindo do exército de Rashidi. Não me orgulho disto, mas eles tornaram-se tão numerosos que não podem mais usar portais e agora marcham para terminar o que começaram vinte anos atrás. Eu sou o último dos Naskell e minha linhagem precisa continuar.
Espero um dia poder vingá-lo, meu tutor, meu irmão, meu algoz.
Re: Contos fantasticos !!!
Nas Costas do Leviatã
Ficção Científica
- Spoiler:
- Existem milhares de coisas surpreendentes no universo. Planetas, quasares, cometas, luas, buracos negros, nebulosas, tempestades magnéticas, poeira cósmica ou vales dimensionais. Existem ainda milhões de outras manifestações naturais que vão se estendendo ao longo do infinito caminho obscuro que é o universo. Aproximadamente há trezentos anos luz após o Farol de Almas de Aldebaran, existe uma trilha de planetas jovens que indicam o caminho natural ao Oásis de Tritão.
O Oásis de Tritão é uma das mais belas maravilhas do universo. É um imenso lago de águas cristalinas do tamanho da Via Láctea. Ele dança sozinho azul e brilhante em meio à escuridão do universo. Dentro dele a flora e a fauna é muito diversificada. Muitos estudiosos afirmam que no fundo do oásis deve repousar milhares de segredos com relação à origem do universo. Todos escondidos em meio ao lodo ancestral e a vegetação submarina.
O sol universal aquecia as águas do oásis em seu lado leste. Flores pareciam brotar às margens apenas para sentir os raios solares. Criaturas reptilianas subiam à superfície procurando também aquecer suas grossas peles e escamas. Ao longe, quase no centro do oásis, um leviatã parecia dormir. Estava tão imóvel que dava a impressão de ser uma estátua, ou um pequeno planeta. Seus olhos estavam cerrados e quase todo seu corpo encontrava-se imerso nas águas, apenas parte de suas costas estava exposta ao sol, sendo aquecida e vulnerável. Bem no topo das costas do leviatã, iluminada pelo sol, uma imensa civilização crescia como um fungo, uma peste ou uma doença. Prédios, torres, ruas, árvores, jardins, animais, homens, mulheres, veículos puxados por animais, castelos... Uma imensa cidade medieval-avançada.
Um grande e onipotente castelo repousava na parte alta da cidade. Muralhas de pedra e ferro circundavam-no e um imenso portão adornado abria-se nesse exato momento. Um exército com milhares de soldados começou a marchar para fora do castelo. Os soldados vestiam armaduras de metal e plástico resistente. Empunhavam espadas de luz e pistolas lazer. Cavalos mecânicos e soldados andróides também marchavam no mesmo compasso. Liderando tal exército estava um belo rapaz louro. Era jovem e bonito. Seus olhos emanavam vida e energia. Acenava constantemente para a multidão que começava a se aglomerar ao redor do caminho, mas seus olhos não saiam da torre mais alta do castelo.
Na mais alta torre do castelo, uma bela jovem de pele morena e cabelos negros acenava de volta e derramava lágrimas de medo e incerteza. Isso era tudo que ela podia fazer.
Nas ruas, as pessoas falavam, choravam e sorriam. A guerra era iminente e apesar do apoio e dos protestos, havia de se concretizar. Muitos alegravam-se e bradavam pela liberdade. Outros diziam que a real opressão começaria agora. Muitos choravam pelos soldados que jamais voltariam, outros pelas crianças que não mereciam vivenciar tais fatos, porém, também havia aqueles que achavam muito justo o sacrifício. O fato era que a guerra afetava a todos de muitas maneiras.
O exército marchou até a parte mais baixa da cidade, quase em seu limite. As naves voavam baixo. Os andróides de guerra rangiam seus motores a espera do inimigo. A espera havia chegado ao fim, outro exército com milhares de soldados de espada e pistolas na mão rugia bem ao lado. Mais naves e tanques apareceram. Outras centenas de dróides de guerra fumaçavam ansiosos.
Os líderes trocaram poucas palavras antes da carnificina eclodir. Bombas de plasma estouravam constantemente. Canhões lazer varriam as trincheiras. As espadas de luz lazer cortavam as armaduras e a carne dos guerreiros no combate corpo a corpo. As pistolas não paravam de ser descarregadas. O céu não parava de piscar com a eclosão das bombas. O solo ou explodia cuspindo terra para o alto ou era manchado de sangue e óleo. A guerra começava a rumar em direção à cidade. Prédios, escolas, parques começavam a ser destruídos. Pessoas inocentes e indefesas começavam a morrer. O jovem rapaz louro que liderava o exército da cidade começava a sentir suas forças se esvaírem. Pensava em sua amada e em seu peito mil angústias começavam a surgir. Tinha medo de morrer ali e nunca mais poder voltar aos braços da moça. Ao longe, na torre do castelo, a pobre moça podia ver as explosões, ouvindo os gritos de desespero. Seu coração cobria-se de sombras e o medo da viuvez a acompanhava. Não queria que seu amor estivesse sofrendo tais agruras. Temia nunca mais vê-lo.
A guerra crescia, as pessoas morriam, os corações sentiam. Tudo parecia apenas um mar de tristeza e sofrimento.
Imerso nas águas do Oásis de Tritão, o adormecido Leviatã vagarosamente abre os olhos. Pisca-os num sinal de sonolência latente. Seu corpo estremece, ele abre a boca num bocejo matinal. Sacode o corpo como se espreguiçasse. Levanta-se nos próprios membros. Mergulha nas águas do Oásis de Tritão. Após uns cinco minutos volta à superfície totalmente limpo e refrescado. Sacode as escamas e cerra os olhos mais uma vez, iniciando outro sono milenar.
Em suas costas pequenos musgos crescem como se fossem florestas virgens. Pequenas larvas rastejam em meio à jovem vegetação. Elas comem crescem e parecem procriar rapidamente. Em pouco tempo há centenas de vermes parasitando o Leviatã que dorme pesadamente. Se continuarem a crescer nesse ritmo acelerado, talvez daqui a alguns milhões de anos será preciso que o Leviatã acorde para poder limpar as suas costas novamente.
Re: Contos fantasticos !!!
ONDE HABITAM AS SOMBRAS
Terror
- Spoiler:
- Na mais completa e profunda escuridão, o velho Jerônimo contou ao visitante que mostraria o lugar onde as sombras habitavam, em sua residência. Ainda contaminado por um descrédito imensurável, Olavo soltou o ar pelas narinas, demonstrando impaciência, e comunicou que já havia esperado a última hora inteira no mais escuro dos breus, porém o anfitrião ainda não havia revelado o local onde as ditas sombras viviam. O visitante havia sido conduzido àquela pequena sala por Jerônimo, o cego, que residia sozinho naquela pobre vivenda há muitos anos. O mais velho avisou:
— Olavo, você bem sabe que prezo muito sua amizade. E ratifico meu agradecimento a você por atender meu chamado.
Subitamente, após uma pausa, o idoso declarou:
— Meu fim está perto. Este fraco coração que bate em meu peito e minha idade avançada me derrubarão em pouco tempo.
— Pare com isso, Jerônimo - interveio o convidado. - Você não vai morrer agora. O doutor Eliseu está lhe assistindo. Ele é um ótimo médico e lhe visita aqui em sua residência há muitos anos...
— Não há muito o quê fazer - o velho interrompeu, bruscamente. - Atualmente a medicina é tão incipiente que ainda recorre às ervas medicinais. Temo que por toda essa década de setenta nada poderá ser feito. E meu fatigado corpo não suportará mais quatro anos, isto é, não conseguirei atingir a próxima década. Mesmo assim serei feliz quando morrer.
— Não diga isso, caro amigo. Lute pela vida.
— Nobre amigo, eu já tentei essa alternativa. No meu atual estado, é somente uma ilusão. Um perverso delírio inalcançável. Por agora, só preciso que você veja as sombras e passe a acreditar em suas existências. Elas ditarão os caminhos, a partir desta data. E se você ousar combatê-las, seus olhos serão cingidos e inominável dor tomará conta de suas órbitas.
A conversa prosseguia na escuridão.
— Podem até existir, afinal, ao se fazer um jogo de luz, elas surgirão. Mas não creio deste ponto em diante. Não creio que elas possuam vida própria. Não creio que elas são más. Não creio que elas se destacarão das paredes e virão ao nosso encontro. Não creio em nada disso. Para mim, são somente meras acompanhantes.
— Ouço o timbre de sua voz, amigo. Está insuflado por um sentimento que tive há anos, quando as conheci. O medo! Mas, em parte, você tem razão. Elas nunca se destacarão das paredes - Olavo riu nervosamente. Era seu único recurso contra a certeira afirmação do outro. O velho Jerônimo continuou:
— Vou acender a vela - o velho, mesmo cego, teve certa agilidade para encontrar a vela que jazia sobre o antigo candelabro, na mesa.
— Peço ao amigo que me perdoe. Rogo que não guarde rancor deste velho que não enxerga.
— Acenda! - a voz de Olavo vacilou de medo.
Jerônimo riscou o fósforo e Olavo viu os olhos, cujas escleróticas tendiam para um matiz amarronzado, e as íris, coloridas com um triste azul opaco, do ancião. Do antigo e pálido rosto, depreendia-se que havia passado por anos e anos de sofrimento e clausura. Então, algo chamou a atenção do visitante. Um reflexo enegrecido passara - tão rápido como um piscar de olhos - da íris direita para a esquerda, do velho Jerônimo. Instantaneamente, Olavo empertigou-se na deletéria cadeira, fazendo-a arrastar-se um pouco no chão empoeirado.
— O que foi isso nos seus olhos? - o visitante sussurrou, fazendo a chama tremeluzir com o ar expelido por sua fala.
Enquanto Jerônimo fazia a chama do palito arder o barbante crestado da vela, emitiu um sorriso que mostrou a gengiva desprovida de dentes e logo em seguida revelou:
— São elas. Como disse, em parte você estava com a razão. Imaginou que estavam na sala? Chegou a ponderar que elas poderiam utilizar as paredes e o chão para se locomoverem? Achou que viviam ao meu derredor? Enganou-se, estimado amigo. São parte de mim há décadas. Obumbraram-me a visão por anos e anos. E com o fim, abençoadamente próximo, desse corpo senil, é imperioso - para o bem de minha alma - que as entregue a outro, digamos... guardião. Perdão, nobre amigo, mas é assustadoramente necessário. Elas querem. E quando elas querem e não são atendidas... a dor se avizinha.
No segundo seguinte, um feixe tão escuro quanto a noite saltou dos olhos do velho Jerônimo em direção as íris castanhas de Olavo. Este nada fez, apenas permaneceu entorpecido com o bailar ondeado e nefando que lhe toldava a visão. A cabeça do visitante continuou ereta, mas a pele certamente envelheceu alguns bons anos após a transposição das forças sobrenaturais. Os olhos do novo mantenedor do mal ficaram iguais aos de Jerônimo. Com o rosto encovado, Olavo não conseguiu ver, pois já estava cego, mas o cadáver de Jerônimo, num movimento espasmódico, caíra da cadeira e começara a enroscar-se em si mesmo, como se estivesse sendo revirado para dentro de si, qual um pedaço de plástico se comporta ao ser atirado ao fogo. Os ossos quebraram paulatinamente, o cadáver encolheu rapidamente até que sumiu. A tudo o novo guardião ouviu com atenção e horror.
Para Olavo só restaria esperar o momento em que as sombras desejariam deixá-lo e ingressar em novo corpo. Com sorte e com o passar dos anos, ele poderia convidar o doutor Eliseu e apresentar aquele antigo mal que naquele maquiavélico momento maculava seus olhos e administrava suas ações.
Re: Contos fantasticos !!!
A ENCANTADORA
Insólito
- Spoiler:
- Naquela noite, quando ele pediu abrigo na casa de meu pai, eu olhei em seus olhos e soube que deveria ser sua até meu último alento. Por isso, não hesitei em levá-lo pela mão ao velho celeiro, onde nos entrelaçamos como serpentes sobre a palha e uivamos como lobos até o amanhecer.
Eu já não era uma donzela então, mas meu conhecimento do corpo do homem deu-lhe prazer repetidas vezes e ele nunca me perguntou quem haviam sido os outros. Isso não importava. Foi assim ao longo de todo um ano. Ele vinha da fazenda onde trabalhava para o celeiro. Lá, eu o esperava como a terra espera a chuva, e nós ríamos, nus, comendo as amoras que eu trazia do bosque.
No inverno seguinte, meu velho pai faleceu da tosse sanguinolenta que eu pudera apenas tratar com meus elixires e vapores, mas nunca curar. Fiquei sozinha. Então, disse ao meu amante que ele deveria ser o novo homem da casa.Sei que me aceitaria prontamente como sua mulher, mas ele morava ainda com a mãe, alma triste que não queria ver seu menino tornar-se um varão. Ela me chamou de messalina e encantadora de homens e disse que ele seria infeliz ao meu lado, pois eu me deitaria em outras camas e ele teria de alimentar os filhos de outros homens. Ela não abençoou nossa união.
Mas um corvo se sentou no meu portão e me disse que eu devia orar para a deusa esquecida, senhora da vida e da morte, adorada por minha avó e pela avó de minha avó. Assim, entrei no bosque, procurei a erva que mata e dela extraí o veneno verde.No mercado, furtei o lenço que a mãe de meu amado levava nos cabelos e o levei para o meu local secreto, na mata, onde o mergulhei na vasilha de veneno e rezei três vezes por meu sucesso.
À noite, aquela que me negara o que eu mais queria fechou os olhos num sono profundo e não os abriu mais. Eu também gostaria de partir assim, um dia, sem sofrimento.Seu filho buscou conforto em meu regaço e não mais deixou minha casa.
Levamos uma boa vida. Plantei flores para a deusa sob a janela, em agradecimento, e meu homem gostava do perfume que enchia a casa. Ele tosava os cordeiros e eu fiava a lã. Ele cortava a lenha e eu preparava seu banho quente e esfregava suas costas e recebia sua semente em meu corpo.Tinha seus companheiros na cidade. Quando chegava tarde da noite, bêbado, trocando as palavras e as pernas, eu o despia e o punha na cama como a um bebê.
Eu era sua fêmea, sua amiga e sua mãe. Ninguém poderia amá-lo como eu o amava.Em algum momento, porém, ele duvidou disso. Eu soube quando chegou com um olhar diferente. Estava sóbrio e não procurou por meu abraço.
De manhã, cheirei sua camisa. Perguntei-lhe quem era ela. Ele disse que não havia ninguém.Era mentira. Achei três fios de cabelos presos ao colarinho de sua camisa. Longos e louros. Nem meus, nem dele.
Eu a encontrei na praça da igreja, voltando da missa, na manhã de domingo. Era pouco mais do que uma menina, esguia e branca, a cabeleira dourada presa num toucado simples, os seios atrevidos espetando o vestido. Mais moça do que eu. Certamente era leviana como todas as jovens formosas.Toquei em seu ombro e ordenei que não tornasse a ver aquele homem. Que nunca mais se aproximasse dele.
Ela se voltou, mas saí com pressa e não deixei que conhecesse meu rosto.Meu marido descascava uma maçã na soleira de nossa porta quando cheguei. Ajoelhei-me por trás dele e o envolvi em meus braços. Admiti que ela era bela e cheia de vida, mas não o amaria para sempre. Não como eu. Que não voltasse a procurá-la.
Mas ele não seguiu meu conselho. Por mais de uma vez eu o vi retornar com o raiar do dia às suas costas e o cheiro da amante em suas roupas. A menina também ignorara meu aviso.Por isso, esperei o início do novo ciclo da Lua, tomei os três fios de cabelo e os meti no barro. Do barro, fiz uma boneca. Sobre ela, joguei urina e excremento de cão doente durante todas as quatro fases.
Foi assim que meu marido voltou a passar suas noites em casa e a pedir minhas carícias. Não visitou mais a amante. Os cabelos dela haviam se tornado cinzentos, seu rosto se desfigurara com vincos e furúnculos e seus seios, outrora viçosos, caíram como os peitos muito sugados de uma velha ama-de-leite. Sei disso porque fui ao milharal do vizinho e os corvos me contaram. Nada disse a meu amado. Acreditava que ele tivesse aprendido sua lição.
Nossa vida voltou a ter luz. Foi quando a deusa decidiu nos abençoar com um filho. Quando eu disse a ele que minhas regras já não vinham, ele sorriu e chorou e me beijou no umbigo.Mas a dádiva tinha uma dupla face e eu padeci das dores que acompanham certas mães antes de se tornarem mães. A expectativa fez de mim uma mulher ansiosa que já comia por dois. Minha barriga ainda não crescera quando meu corpo se tornou grande e pesado e irritado ao toque, e meu marido deixou de me procurar.
Não podia culpá-lo, pois sua natureza masculina mandava que fecundasse todas fêmeas no grande pasto da Criação. Mas eu precisava dele ao meu lado naquele momento como jamais precisara antes. Devia mostrar-lhe o tamanho do meu amor, fazer com que compreendesse que era maior do que a desonra da esposa traída, o sofrimento da mulher desprezada ou o encanto das moças que se debruçavam noutras janelas.Naquela noite eu fui à cidade, seguindo meu homem a distância, para testemunhar seu encontro adúltero. Essa amante não era tão jovem. Era uma viúva já madura, forte, com cabelos cor de avelã.
Voltei à sua casa pela manhã, bem cedo. No varal dos fundos havia uma anágua branca recém-lavada. Serviria. Levei-a comigo.À tarde, mandei matar um cordeiro e guardei seu bucho.
À noite, ceamos sua carne e depois, com a Lua alta, eu meti a anágua no estômago do animal e o deixei em meu local secreto para que apodrecesse.No dia seguinte, a doença começou a consumir devagar o corpo da mulher. Quando o último pedaço de entranha do animal se desfez sob as formigas e os besouros, ela faleceu.
Destruir as amantes de meu marido poderia tomar anos de minha vida. Ele sempre encontraria outra que o agradasse e eu seria sempre grande e desajeitada, carregando e parindo sua prole. Eu sabia que o novo castigo precisaria ser maior, por muito que me doesse executá-lo.Por isso, entrei no bosque e colhi as ervas proibidas. Orei por toda uma manhã e toda uma tarde, pedindo perdão pelo que já fizera e pelo que ia fazer. Depois, fervi água do poço, preparei uma forte infusão e a bebi, pedindo à deusa que aceitasse de volta a criança que dormia em meu ventre.
A dor me despertou de madrugada e eu gritei por longas horas, vendo meu corpo verter um sangue cheio de nódoas negras. Meu marido chorou até o amanhecer, ora ajoelhado aos meus pés, ora lavando meu corpo com água fervida. Ele foi o melhor dos homens nesse momento e mandou que o criado fosse à cidade chamar a parteira para cuidar de mim.Logo que chegou, a mulher disse que não havia nada a ser feito, pois eu não desejava aquela criança e por isso a estava expulsando do meu corpo. Se ele queria que eu sobrevivesse, disse ela, deveria deixar que eu repousasse até me recuperar e me servir fígado cozido e sopa de galinha. Também seria bom que tomasse chás calmantes e banhos quentes. Ela ofereceu a própria filha como enfermeira. Era boa no trato de moléstias, disse ela, e poderia ajudar no serviço da casa até que eu me curasse.
Quando ela nos deixou, meu marido perguntou por que eu tinha feito aquilo. Seus olhos estavam vermelhos. Respondi que ele precisava cuidar do que tinha em casa em lugar de procurar distração fora dela.No dia seguinte, a filha da parteira começou a trabalhar para mim. Era muito magra e tinha pescoço longo e olhos encovados, mas cumpria as tarefas da casa em silêncio, fazia boa comida e me ajudava a me lavar. Ela tornou minha aflição suportável.
Meu homem também era quieto agora e vagava pela casa como uma sombra. Eu sabia que estava infeliz porque seu filho não ia mais nascer, mas era nessa infelicidade que ele reaprenderia a zelar por sua família.Logo que me senti mais forte, procurei por seu corpo na noite e ele não me rejeitou. Nós nos amamos sem palavras e refizemos nos braços um do outro um pacto mudo de afeto e lealdade. Bastava de noites noutras camas e beijos noutras bocas. Senti que voltaríamos a ser felizes.
Naquela manhã, um corvo entrou no meu quarto e pousou na cabeceira da minha cama. Ele me contou que a deusa ia me mandar uma criança.Percebi que era verdade algumas semanas depois. Gritei de alegria. Meu marido voltou a sorrir. Apesar das minhas falhas, a divindade me amava, pensei.
A filha da parteira seria minha criada e enfermeira durante os nove meses e por quanto tempo eu necessitasse de seu auxílio depois disso. As dores e enjôos voltaram, mas ela cuidou de mim. Meu marido não saía mais à noite. Eu adormecia olhando para seu rosto e, quando despertava, ele ainda estava ao meu lado.Foi neste lar de ternura e harmonia que você nasceu, minha filha. Eu e seu pai já a amávamos quando a tomamos nos braços pela primeira vez. Nunca uma criança foi tão bem-vinda a este mundo.
Mas eu havia cometido muitos erros, minha menina querida, e a mesma dádiva que a trouxe para mim fez-se maldição quando levou minha saúde. Eu quase não tinha leite para você e nem sempre podia nutri-la. A parteira trouxe sua filha mais velha, que fora deixada por um marido cruel e dera à luz um menino morto. Tinha leite para mais de uma criança em seus seios.Ela foi a sua mãe mais do que eu, pois logo eu mal podia tê-la em meu colo. Vieram as febres freqüentes e as dores no abdome, nas costas, na garganta, na cabeça. Os abscessos por todo o corpo. A fraqueza. A comida regurgitada.
Meu marido não podia mais dormir ao meu lado. Eu cheirava mal e sujava a cama. Então, ele passava as noites no quarto menor. Num leito junto ao seu, menina querida. Para ficar perto de você e niná-la quando chorasse no meio da noite.
Num leito junto ao da sua ama-de-leite. Para ficar perto dela e... Meus ouvidos ainda eram bons, filha, e eu sabia o que seu pai estava fazendo. O que voltara a fazer. Seus lábios pequeninos de bebê não eram os únicos a se aconchegar naquele regaço e sugar aquelas mamas. De dia, a mulher sorria para mim, condoída; mas, à noite, comia no prato que era meu.
Para mim, foram meses de uma agonia que não se abrandava. Para eles, meses de uma espera jubilosa. Eles esperavam o meu fim.Eu só não sabia quem estava me trazendo, aos poucos, esse fim. Podiam ser as famílias das mulheres a quem eu prejudicara, a uma, destruindo a beleza, a outra, dando uma morte dolorosa. Podia ser alguém próximo a mim. Alguém que profanara meu lugar secreto no bosque e conhecia as artes da cura e da doença como eu e minha avó e a avó de minha avó. Alguém que era bom no trato das moléstias... alguém cuja irmã se deitava com o marido da mulher que matava suas amantes e não poderia ser detida senão pelos mesmos meios.
Eles estão me matando. Meu amado e as duas serpentes que eu acolhi em minha casa.Ontem, pela manhã, contei ao seu pai que você logo será órfã de mãe. Ele não me olhou nos olhos. Nada disse. Mas, à noite, respondeu que eu serei enterrada sob as árvores de que tanto gosto e que sua amásia ficará nesta casa e cuidará de você como se fosse sua própria filha.
Você deveria ser aquela a quem eu ensinaria tudo o que minha mãe me ensinou e que ela aprendeu com a mãe dela. Aquela que eu levaria ao meu local secreto e a quem mostraria meus segredos. A você, filha da minha carne, e a ninguém mais.Dói-me na alma e no corpo pensar em perdê-la para uma madrasta vulgar e um pai desleal. Eu ofereci a ele meu amor e minha vida e recebi apenas traição, desprezo e morte. Não posso partir sabendo que ele será feliz sem mim, filha querida, e que quando crescer você não saberá o nome de sua verdadeira mãe. Não depois de tudo o que ele fez. Não depois de tudo o que eu fiz.
Por isso é que, esta noite, esperei que todos se recolhessem, reuni as poucas forças que me restavam e fui para o bosque. Fiz minha última oração e minha última colheita. Soquei muitas folhas e as fervi na água. São as folhas do sono-que-não-termina. Folhas que matam.Faço dessa infusão minha libação derradeira.
Agora, enquanto eu a recolho de seu berço, querida, ela age em meu corpo, preparando-o para um fim sereno.Agora, enquanto eu a aconchego em meu seio e lhe ofereço o pouco leite que tenho, ela agirá no seu.
Eu a amo. Ninguém neste mundo poderá amá-la tanto assim.
Venha comigo, meu amor. Não vai doer.
Re: Contos fantasticos !!!
Amor Incondicional
- Spoiler:
- Desespero. Eu estava desesperado!
Minha esposa, apesar do que os outros diziam em contrário, amava-me. Tenho a mais absoluta certeza disso. Amava-me, sim, lá do seu jeito meio turrão de ser porque, a bem da verdade, ela não era muito dada a expressar os próprios sentimentos. Há pessoas assim em qualquer família normal que se preze. Há quem deteste discursos de aniversário, confraternizações de fim de ano, declarações de amor a qualquer hora e toda sorte de acontecimentos sociais. Elisa era assim, também. Nunca tive a oportunidade de ouvir dela o que ela sentia por mim, mas isso pouco me importava. O que se sente pelo outro, às vezes, não precisa ser traduzido em palavras, não é mesmo? Pode-se, muito bem, “sentir-se” na pele, no olhar, no abraço, no gestual de carinhos.
Elisa, minha adorada esposa, encontrava-se jogada no canto do quarto de dormir, o cômodo mais protegido de nossa casa. Queriam matá-la. A turba de desocupados, violentos, ensandecidos, insensíveis, havia tomado à frente do pequeno sobrado onde morávamos. Clamavam por vingança. A cidade achava-se em polvorosa no mais completo caos. Mas não fora só a nossa cidade que perdera-se na barbárie; a tragédia se propagara pelo país inteiro. O massacre da população que se devorava não tinha precedentes históricos conhecidos: “Zumbis”, “mortos-vivos”, “infectados”, ou sabia-se lá que nomes se atribuíam aquelas “coisas” destituídas de humanidade, vagavam sem rumo, matando e multiplicando a doença.
As pancadas na porta da frente, no intento de arrombá-la, ocorriam cadenciadas. As criaturas nojentas tinham tido a idéia de usar algum objeto pesado como aríete. Os móveis empilhados na entrada, a única entrada desimpedida por grades de ferro, cediam terreno a cada estocada. A invasão iminente me levava ao desespero, pois a preocupação não se dava por mim, mas se dava por ela: Elisa, minha adorada esposa. Não, eu não queria perdê-la. Prometera ao padre que a amaria e a respeitaria na alegria e na adversidade, conquanto tal compromisso, naquelas circunstâncias, pudesse me causar a morte. Quem ama sabe o quanto é doloroso não poder proteger a pessoa amada.
Quando os boatos chegaram a meu conhecimento de que a população, movida pelo instinto de autopreservação, estava conseguindo deter os mortos-vivos, aniquilando-os por meios que, naquele momento, pouco me interessavam, a nossa situação familiar se havia ruído irreversivelmente: Elisa fora atacada e infectada! E naquele momento terrível, digo-vos sinceramente, senhores, dilacerava-me o coração ver a pobre coitada lutando incansavelmente contra as correntes que a prendiam aos pés da pesada cama de estilo colonial, de que tanto gostava. Ela já não era a mesma pessoa. O corpo, mal coberto pelos trapos, carregado de enormes feridas abertas, o rosto esverdeado e indiferente, onde se projetavam os olhos esbranquiçados pela doença, afligiam violentamente os meus sentidos. Eu não sabia fazer outra coisa senão chorar e ficar sentado na frente dela implorando o seu retorno.
Minha Elisa, às vezes, aparecia angustiada naquele rosto transfigurado, como alguém que, se afogando num rio caudaloso, procurasse num impulso desesperado romper à superfície na busca da última golfada de ar. Estes breves momentos, não raros, levavam-me a um sentimento de aflição e impotência ainda maiores. Os olhos de minha amada surgiam nos globos esbranquiçados e conectavam-se com os meus, passando-me uma mensagem desesperadora: “me ajude, por favor.” E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa inteligível, minha esposa se afundava naquela criatura abjeta; o horror voltava-me em ondas sucessivas a cada tentativa que ela fazia para comunicar-se comigo.
O hall de entrada, após os sucessivos golpes da turba, cedera causando o enfraquecimento da improvisada barricada de móveis. Eu não tinha muito tempo! Fui até o corredor do segundo andar e olhei para baixo. No vão da porta entreaberta, algumas cabeças nervosas, com braços invasores, tentavam empurrar o amontoado de sofás, mesas, armários e cadeiras. Uma daquelas cabeças, das que forçavam à entrada, me percebeu no alto da escada.
— Parem. – Gritou Victor, meu melhor amigo. Ele fora testemunha de minha união matrimonial com Elisa e sabia o quanto ela me era preciosa.
Todos pararam.
— Amigo, meu irmão. – Disse ele, em voz alta e emocionada, dando início ao trabalho de me convencer o que todos na cidade consideravam como o melhor para mim. - Não adianta protegê-la. Não faça isso. Elisa já morreu há muito. Esta coisa que você diz ser a sua mulher, me perdoe o áspero das palavras, não passa de um animal doente infectado e contagioso. Ela precisa ser sacrificada! Não há cura, não há salvação, não há solução na terra que a traga de volta!
Olhei-os com nojo.
— Não! Nenhum de vocês há de encostar um dedo em minha esposa enquanto eu estiver vivo.
Minha decisão irrevogável, como sabia, provocou o ódio do grupo empedernido em dar cabo da única coisa de valor para mim no plano terreno. Eles voltaram-se a arremeter esforços no sentido de forçar a entrada e já não precisavam de muito para invadir a minha casa.
Voltei para Elisa, decidido, já sabendo o que iria fazer. Não me dei o menor trabalho de refletir sobre os meus atos porque já o fizera antes, nas incontáveis horas em que estive preso aquele quarto com ela. Fui até à janela, lancei um olhar já saudoso à pequena cidade que voltava a sua normalidade, despi-me, e num movimento rápido me joguei de costas na cama.
— Venha querida. – Mal cheguei a terminar o convite e ela me atacou esfomeada.
Num único pulo, Elisa me assaltou violenta; uma das mãos me foi ao rosto forçando minha cabeça para o fundo do colchão, a outra apertou uma de minhas pernas no intento de imobilizar-me e, sem a menor indecisão, sem o menor remorso, enterrou as mandíbulas animalescas em minha barriga. Se pensam vocês, meus amigos, a quem envio este relato psicografado após minha recente morte, que me arrependi ao sentir as primeiras mordidas. Não! A dor foi terrível, a dor foi indescritível porque não queiram sequer imaginar o que é ser devorado vivo. O sofrimento daí decorrente é algo que eu não desejaria nem para o meu pior inimigo.
Mas... no momento derradeiro, no estertor da morte, em meio àquela agonia, onde a percepção das coisas se confundem e nos enganam, pude ser agraciado na constatação de um fato que atormenta o imaginário das pessoas. Sempre me disseram que no momento final, quando o moribundo entrega-se à conformidade de seu destino, mesmo aquele que sofre a dor atroz e os delírios febris das doenças mais torturantes, um instante de lucidez lhe é dado como recompensa para despedir-se do mundo terreno. E assim o foi comigo!
Elisa devorava minhas entranhas, mastigava minha carne, quando o movimento parou de súbito! Meu corpo, torturado pela dor violenta, num repente, adormecera anestesiado e senti uma trégua no sofrimento. E a vi pela última vez. Sim, senhores, eu a vi! Ela apareceu lentamente no foco de minha visão. A fisionomia retorcida pela virulência da doença ainda lhe cobria o rosto pelo qual um dia me apaixonara. O meu sangue impregnado nela, respingava do nariz, dos longos cabelos, da boca cheia, de onde escorria a baba do que estivesse a mastigar e no conjunto estarrecedor apresentado a mim, consegui extrair “a mensagem” do esbranquiçado medonho de seus globos oculares. Foi através deles, dos olhos, que a alma de minha adorada esposa queria dizer-me o que, apesar de eu fingir não dar importância, sempre quis ouvir: “Eu te amo”.
Aquele instante mágico, efêmero, não passou mais do que três ou quatro segundos, porque em seguida ela enterrou o rosto novamente em minhas entranhas e continuou a me devorar. No entanto, afirmo sem medo de me julgarem louco: Todo o sofrimento valeu à pena, valeu sim! Sou sabedor de que causei traumas psicológicos, noites insones e a perda da fé no divino em muitas das pessoas que invadiram nosso quarto àquela noite. Não lhes peço desculpas, de modo algum, tampouco ei de perdoá-las!
Quero que todos eles, malditos sejam, fiquem a ruminar pensamentos, a vida inteira se preciso for, para entenderem o sorriso que perpassava minha fisionomia enquanto minha adorada Elisa saciava a sua fome!
Re: Contos fantasticos !!!
O Manuscrito encontrado num casebre abandonado
TERROR
- Spoiler:
- Enquanto escrevo nervosamente estas linhas, sinto que não sei precisar exatamente por quanto tempo fiquei dirigindo feito um louco pela estrada, antes de refugiar-me neste velho casebre abandonado, no sopé de uma das mais sinistras montanhas de Itiúba.
Muitas mentes tacanhas não acreditarão em nada do que eu aqui vou dizer, mas isto pouco importa, pois sempre haverá alguém de mente aberta e esclarecida, capaz de reconhecer que nossa consciência espiritual ainda é muito ínfima diante dos mistérios assustadores e negros do Cosmo e da vida.
Minha cabeça ainda está um pouco zonza, ainda estou um pouco confuso, estou meio aturdido mas...consigo lembrar-me dos momentos aterrorizantes e fantásticos pelos quais passei.
Neste momento começo a beliscar-me, para ter a certeza de que não estou dentro de um pesadelo horrendo, prisioneiro de um sonho sinistro e aflitivo que me causa uma opressão, arrastando-me em grilhões de uma sensação de angústia...que me tortura de medo, retalhando-me a mente e precipitando-a nos torvelinhos abissais e pandemoníacos de recordações tétricas que me levarão, certamente, à insanidade rematada dentro em breve.
Oh, meu Deus! Eu lembro! Eu lembro de tudo, agora!...Minutos atrás eu dirigia; e sobre mim, raios e relâmpagos coriscavam pelo céu enegrecido, como se fossem demônios lépidos foragidos do inferno, traçando no céu blasfêmias elétricas e sinistras, compondo poemas de fogo e luz pestilenta no poema escuro que é a noite.
A lama na estrada de chão batido era intensa, formava pequenos atoleiros, por isso tive que parar o carro e entrar na cabana antiga. Assim escaparia da intempérie e do horror. Ocultando-me neste casebre imundo e coberto de teias de aranhas e ratazanas detestáveis, haveria, sim, uma chance de escapar.
Este casebre está numa região muito estranha e afastada, um pedaço quase que desconhecido desta cidade antiga, próxima às Serras, um lugar vez por outra coberto de névoas. Fora habitada num passado remoto por estranhos índios sobre os quais pouco se sabe, disseram-me, certa vez, alguns moradores mais antigos. Outros ainda levantavam a tese de que houvera por ali uma comunidade exótica e nômade, semelhante a ciganos e dados a magia, e que vieram do distante Sul, terra do qual, aliás, sou oriundo.
Do porta-luvas do carro eu retirara o bloco de notas e a caneta, com os quais, agora, sob a luz da lanterna, escrevo estas linhas, relatando os fatos enlouquecedores que levaram ao ápice tétrico do pânico. Antes de morrer, levado pelas garras esqueléticas e aduncas daquela coisa...aquela coisa horrenda e sarcástica que não ouso dizer o nome. Pretendo esconder este manuscrito em alguma parte deste casebre, e assim, quem sabe, num futuro não muito distante, alguém o encontre e leia toda a verdade que aqui escrevo, como legado negro do meu terror.
Sei que muitos me chamarão de louco, mas isto pouco importa, afinal quem ousa atravessar as fronteiras da loucura acaba vendo coisas proibidas que uma pessoa dita normal não veria, salvo em raríssimas ocasiões.
Chamo-me Guto, Guto Russel, e dispus-me a vir até Itiúba a pedido de meu amigo, Ulisses Azeredo, um gênio da informática e da eletrônica, um excêntrico por natureza. Comigo eu trouxera do Sul, a pedido de Azeredo, um outro sujeito, não menos estranho e excêntrico, um certo professor Roger Silver, antropólogo de renome e também especialista em informática e eletrônica, além de estudioso de fenômenos parapsicológicos, escritor e pesquisador de obras de ciências ocultas, perito em transcomunicaçao instrumental e necromancia avançada.
Confesso que desde o primeiro instante que o vi, não gostei do enigmático professor Roger Silver. Notei uma certa empáfia e uma certa malevolência e ambição desmedida em seu olhar de demônio; sim, seus olhos tinham um brilho misterioso que eu compararia ao brilho das chamas nascidas do conúbio ilícito de anjos pérfidos e demônios angustiados na danação eterna. Todavia, tive que atender ao pedido de meu amigo Ulisses Azeredo, pois ele me contara, por telefone, que estavam num projeto secreto que poderia render fama, prestígio e fortuna. Eu, por meu turno, precisava quitar algumas dívidas e a hipoteca de minha casa em Curitiba, então aceitei o convite de trabalho, como motorista de ambos.
O professor Roger Silver era um devorador contumaz de tomos e compêndios raros e obscenos de ocultismo e magia negra, um buscador ávido e enfermiço do insólito e do sobrenatural, e seu vasto e inaudito conhecimento fora, em grande parte, adquirido de viagens aos confins de terras exóticas como Índia, Tibete, Hungria e Haiti. Era sua intenção aliar o conhecimento mágico ao conhecimento tecnológico, e assim levantar o véu que separa o mundo visível do invisível, abrindo portais interdimensionais.
E apesar de ser amigo de longa data de Ulisses Azeredo, temi por sua sorte quando soube que se envolvera em pesquisas com aquele pálido e magérrimo professor que se vestia todo de preto e tinha uma má reputação no mundo acadêmico, sendo quase expulso da Universidade onde lecionava, segundo pesquisas que fiz na Internet.
Foi com espanto desmedido que lhes ajudei a levar em minha caminhonete toda aquela estranha tralha ou parafernália até uma das montanhas das estranhas e majestosas Serras de Itiúba.
A parafernália a que me refiro era, segundo o professor Silver, o incrível Necrotron, um poderoso e fantástico aparelho eletrônico que revolucionaria a Ciência e a Religião, possibilitando o contato imediato dos humanos com regiões e habitantes de esferas interdimensionais proibidas, ou seja, contato com o próprio além-túmulo.
O Necrotron era uma mistura esdrúxula de rádio portátil, computador, ciclotron e canhão de prótons, colocado sobre um tripé que absorvia energia negativa da terra ou das pedras.
Levei a dupla de excêntricos pesquisadores, com suas teorias nebulosas, inauditas e bizarras que certamente seriam rechaçadas com sarcasmo pela nata dogmática e ortodoxa da comunidade cientifica, até o sopé da montanha, na caminhonete, depois saltamos juntos e subimos, a pé, por um caminho estreito. Levávamos mochilas e o próprio Necrotron, que foi desmontado em partes, para só ser remontado lá no alto, no cimo enevoado da montanha.
A subida foi íngreme, mas por fim, perto do anoitecer, chegamos numa espécie de pequeno planalto no topo da montanha, e pudemos notar que as névoas haviam se dissipado e agora ventava forte. Notei a grande quantidade de pequenas e estranhas flores esverdeadas que lembravam orquídeas entre algumas rochas de aspecto bizarro.
Ofegante, Ulisses falou:
— Ei-lo amigos, bem-vindos ao Jardim do Sussurro do Diabo!
O vento soprava estranhamente, e Ulisses explicou a razão de ter colocado tal alcunha assustadora naquele lugar, no alto da montanha. O vento passava por entre as formações rochosas que lembravam aquelas pedras de Stonehenge, de forma que o som lembrava um sussurro sinistro, e as pequenas flores bizarras traziam um quê de vergel do inferno ao lugar, daí o nome: Jardim do Sussurro do Diabo!
Em seu capote preto, o professor Roger Silver falou, eloqüente, grave e misterioso:
— Perfeito, Ulisses!... Aqui é o local exato onde forças telúricas e místicas, acumuladas desde eras imemoriais, aguardam a sua ativação negativa, como chaves hipergeométricas que abrirão o portal que separa os mundos. O Necrotron foi por nós construído conforme os escritos proibidos da Atlântida, o continente perdido de uma era esquecida, secretas fórmulas eletro-místicas que eu mesmo me encarreguei de roubar numa de minhas viagens a um mosteiro do Tibete. Na verdade, dentro de instantes abriremos a porta de um mundo que jaz aqui mesmo, interpenetrando-se com o nosso, na quarta vertical, e de dentro desta estranha montanha segredos milenares serão trazidos à tona, numa apoteose extraordinária de conhecimento oculto.
Claro que Silver e Ulisses escolheram o lugar porque sabiam da lenda. Havia em Itiúba uma antiga lenda que assustava criancinhas, servindo de base para contadores de “causos”. Porém os dois sabiam também que por trás de lendas há sempre um quê de verdade. Lembro que estremeci quando, na noite anterior, Ulisses me contara sobre os relatos de caboclos e matutos da região, que diziam terem visto uma estranha, macabra e grotesca criatura que descia a montanha em algumas noites de lua cheia. Sim, eles falavam com os olhos arregalados sobre uma criatura antropomórfica, esquelética, cadavérica que raptava crianças no meio da noite, levando-as para o topo da montanha, e que nunca mais eram vistas. Houvera o ataque dos céticos e zombeteiros de Itiúba, que colocaram uma alcunha na assombração: Caveirinha Sombrio, mas não foi suficiente para acabar com o mistério.
Se era um morto-vivo trajado com um antigo terno preto e uma cartola mais antiga ainda, ninguém poderia afirmar. O que se sabe é que de fato crianças passaram a sumir, e em madrugadas muitas pessoas, na cama, diziam ter acordado com gritos de meninos sendo arrastados a força para o cimo da montanha maldita. Sinto um calafrio na espinha ao escrever sobre isto, agora, embora eu confesse que sempre fora um grande cético e gozador do sobrenatural.
O Necrotron foi montado rapidamente. Trabalhamos ligeiro. O vento aumentou, não havia mais resquícios de névoa, agora. Enquanto isso, a noite trouxera sua amante, a lua, que como uma meretriz de luxo do céu, iluminava-nos com sua nudez de luz mortiça; e juntos, noite, céu, estrelas e lua fizeram uma orgia de sombras malditas e assustadoras. Então, sob o luar azulado e débil, parecíamos dementes num projeto espectral que causaria temores inimagináveis em qualquer mente sã , sensata e temente a Deus.
O Necrotron apontava para aquela laje que lembrava um altar ou a porta de entrada de uma cripta. Era uma das muitas rochas com aspecto bem singular, coberta de musgos fedorentos e podres, cheia de estranhos bolores verdes de um fedor insuportável e que formavam desenhos abstratos e grotescos.
— Ulisses, acione o estabilizador multi-sequencial e o gerador ultra-positrônico! – falou o professor Silver, entusiasmado, os olhos arregalados de expectativa, cintilando como os de um lunático.
O Necrotron começou a zumbir como um inseto eletrônico do inferno, depois lançou ruídos similares a uma estática ensurdecedora, e por fim começou a vibrar por inteiro, soando alto como uma turbina de energia nuclear, desprendendo de seu bojo ondas eletro-magnéticas de magnitudes desconhecidas.
No pequeno micro-teclado acoplado ao Necrotron, Ulisses digitava febrilmente, falando:
— Irei acionar o processador secundário e o feixe de laser da geratriz vibracional eletro-eletrônica!
O Necrotron começou a zunir alto, como um apito de um gigante louco ou como uma turbina colossal, e a laje fedorenta em forma de altar começou a assumir uma coloração esverdeada ao ser atingida pelo disparo do raio laser que liberava magnetismo e vibração ao atingir o alvo; a luminescência esmeralda emitia um ruído também, algo como um som emitido por um poderoso magneto.
— Senhores! – berrou o professor Roger Silver; estava começando a enlouquecer de vez, eu sabia, e a luz verde iluminando seu rosto dava-lhe realmente um ar fantástico e insano. – O que presenciarão aqui, nesta noite, será o marco de uma nova era. A era da tecnologia aliada a magia negra! Estamos prestes a levantar o véu ignoto dos grandes mistérios. Conheceremos segredos arcaicos que separam os mortais dos imortais, os vivos dos mortos, os humanos dos supra e infra-humanos, os sãos dos loucos! Contemplem, pois, a abertura total do portal da quarta dimensão e os segredos do céu e do inferno, aqui mesmo, na terra!
O firmamento havia enegrecido, grandes nuvens pardacentas, como um enxame de sombras, cobriram a lua e as estrelas, e agora raios, trovões e relâmpagos tinham tomado conta da noite, como que numa algazarra melódica de uma orquestra do inferno, e eu estremeci de pavor quando um raio atingiu em cheio a pedra semelhante a um altar, explodindo-a em mil pedaços. Tivemos que nos jogar ao chão, aos gritos, instintivamente, para nos salvar dos fragmentos que zuniram como balas mortais, ricocheteando nas demais rochas.
Quase que instantaneamente, um outro raio espatifou o Necrotron, que explodiu ruidosamente, incendiando completamente o sinistro aparelho.
Quando a fumaça baixou, revelou-se aos nossos olhos uma estranha abertura na laje estilhaçada.
O professor Roger Silver e Ulisses logo se debruçaram sobre a abertura no solo rochoso da montanha, iluminando as profundidades com a lanterna.
— Por Júpiter, professor! Há degraus logo ali embaixo!... E um cheiro de mofo que penetra forte nos pulmões. É, de fato, uma escada, e parece descer em espiral até as entranhas da terra!...
—...Ou do inferno, meu jovem! Ou do inferno! – completou o professor Roger Silver, sombrio e enigmático, pondo-se a descer.
— Você não vem conosco, Russel? – falou Ulisses, também começando a descer.
— Receio que não, amigo. Acho melhor ficar aqui em cima, no caso de algum problema. Estou com o telefone celular no bolso, e vocês têm os seus. Se tiverem problema, me liguem lá de baixo.
Já no primeiro degrau da escada, Silver falou:
— Russel, seu tolo! Perderás a oportunidade de ver o que poucos conseguem em vida, sem enlouquecer. No entanto, faça como lhe aprouver. Vamos descer, Ulisses!...Até breve, Guto Russel...espero reencontrá-lo em breve!...ESPERO!
Vi quando os dois sumiram nas trevas, e engoli em seco. Fiquei ali, durante meia hora, o cérebro picado pela serpente cruel da ansiedade, sob a chuva que agora desabava. Por fim a tempestade amainou e eu, preocupado, resolvi ligar para um dos dois.
Tocou por várias vezes, mas não atendeu. Então liguei para Silver. De imediato atendeu.
— Sim...
— Silver, é você? O que diabos houve?... O que está havendo aí?
— Nem imaginas, meu caro...é fantástico, é dantesco, é horripilante, Russel... não imaginas o que encontramos aqui...trata-se de um portento, creio eu...
— Maldito louco, fale de uma vez! E Ulisses, o que foi feito dele?
— Morto, Russel...Ulisses está morto – respondeu Silver, enquanto ao fundo pude ouvir o som de ossos chocalhando e depois uma risada sardônica, pueril, imbecil, num tom boçal. – Oh, agora estou vendo essa coisa melhor!...Oh, santo Deus!...Russel, caía fora do Jardim do Sussurro do Diabo! Fuja! Oh, é ele...a figura esquelética...é ele...uma caveira...a cartola, o terno escuro...os antigos e matutos tinham razão, ELE existe...nós encontramos o ... Fuja, Russel! TE ARRANCA DAÍ, SEU IMBECIL!...
— Silver, seu palhaço! Deve ser alucinação, algum fungo alucinógeno, aí dentro...
— Não! Eu vi o horror, Russel...e ele é pútrido e esquálido...chocalha os ossos e por vezes tem o andar trôpego... ele é como rezam as lendas...ele é... o...o ...
Novamente pude ouvir aquela risadinha diabólica, quase infantil, mas com uma virulência e sarcasmo demoníacos. Estremeci, depois, ao ouvir o grito medonho do professor Roger Silver. Depois, a ligação caiu.
Tentei criar coragem para descer a escadaria além do buraco, mas não consegui. Tentei ligar novamente, tanto para o telefone celular de Silver quanto para o de Ulisses. Mas nenhum deles atendia.
Fiquei sem saber o que fazer, até que o meu telefone celular tocou, quase me matando do coração.
— Alô, é você, Silver?... Fale seu maldito insano! – eu disse.
Então ouviu aquela voz medonha e sarcástica:
— Silver está morto, como o patético Ulisses... Agora chegou sua vez, Russel!
Com ira brotada do medo, lancei o telefone celular no buraco e escapei dali, aos tropeções, descendo e caindo e rolando pela encosta da montanha,até chegar ao carro e sair em disparada.
Agora estou aqui, neste casebre, escrevendo tudo para que um dia alguém saiba o que de fato aconteceu.
Estou tremendo de medo, suando em bicas. Tranquei a porta do casebre com a tranca, mas suponho que a madeira esteja apodrecida. Meu Deus, ouço passos secos lá fora, está no alpendre, seja lá o que for. E veio para me pegar, ele, aquilo...o dono daquela voz medonha...
Oh, meu Deus! Vou parar de escrever e guardar o manuscrito...Acho que vou gritar por socorro, embora saiba que será inútil...Está pressionando a porta... vai arrombar...já posso ouvir a risota, sua estúpida, sardônica e assustadora risadinha...vai entrar aqui dentro e...OH, SENHOR TODO-PODEROSO... ME SALVA DA MORTE E DAS TREVAS DO INFERNO! ME SALVA DO CAVEIRINHA SOMBRIO!...
Re: Contos fantasticos !!!
A Maldição das Borboletas Negras
Terror
- Spoiler:
- Jubelina veio ao lume vinte anos após a morte de Astroaldo.
Era prima-irmã deste, mas nunca o vira. Ouvira, sim, lá pelas tantas, suas histórias de terror, de como convidara o demônio em si para comer algumas castanhas em sua toca, no capinzal.
Era, como aquele, filha das criaturas do charco. Amiga das borboletas pretas, e comia grilos e joaninhas quando batia a fome. Mas andava querendo mais. Despiu-se de ninharias e passou a saborear coelhos e quero-queros desavisados. Logo viu-se a babar babas de fome por causa de cotias, caititus, veados campeiros de galhada já crescida e acostumou-se a refestelar-se.
Nunca se convencera de que poderia ser tão famosa quanto o primo, mas, por isso mesmo, abanou a poeira da crista peluda e decidiu deixar o fosso em que vivia e ganhar o mundo aspirando engrandecer seu nome.
Elevou primeiro o cocoruto por cima da terra. Olhou em volta procurando defuntos e não os viu, graças a Deus! Defuntos eram casas ocas que poderiam abrigar almas deturpadas. Cascas prontas a se elevar do chão para aprontar maledicências e magias. Vendo o campo santo, só as cruzes do cemitério a assustavam por lembrar das histórias dos caça-monstros que outrora existiram. Talvez ainda caminhassem por lá e por cá, pisando o pó dos ossos dos mortos de outrora; portanto não custava ter cuidado.
Sentia vontade de ver como era o céu, visto cá por baixo, que por cima nunca veria mesmo. Uma vez acendera uma lamparina e levantara o braço por debaixo da terra para ver se seus olhos poderiam se acostumar à luz e assim ver, além do chão de terra, o céu enegrecido lá de cima, mas que nada. Era criatura das amaldiçoadas, das que se contam em histórias agourentas. Dizem que matava criancinhas, embora sequer um dia tivesse visto alguma. Arre!
Cutucou uma cárie no dente comprido que se projetava bocarra afora e sibilou com a dorzinha. Precisava testar as armas. Piscou ao ver a cara do dia, que desconhecia por completo. Lamparina nunca chegaria ao fulgor, que até fazia doer o lado de trás da cabeça, vindo dentre os miolos. Matutou se deveria emergir toda do solo ou se cuidar para só se atirar ao tempo quando chegasse à noite, sua mãe. Içás passavam – houvera noite com chuva e o dia amanhecera quente. Comeu um só para não perder o apetite.
"Teria que matar algo vivo?", perguntou-se. "Sim, pois de que me adianta me retirar daqui se não puder fazer algum mal? Algum malzinho que um caboclo conte a outro, para dar algum valor à aparição. De que adianta sair para enfernar a vida dos viventes se não se puder usufruir da glória de ser temida?"
Resolveu então pôr-se à caça de algum gado. Algum cabrito que o fosse. Estripá-lo e deixá-lo na encruzilhada para dar valor à façanha!
Levantou então o corpanzil, o vento levando suas catingas para longe, assustando as varejeiras que nunca viram algo do tipo movendo-se por si só. Cavoucou com as patas o areião e atirou o pó para os lados do caminho, claudicando o chão fofo.
Grunhiu porque achava que seres de sua natureza deveriam emitir algum ruído assustador, mas não achou o resultado agradável e nem sentiu que o miado que fizera fosse assustar realmente. Deveria se aperfeiçoar na arte de amedrontar, se quisesse que seu nome estivesse ao lado dos seres mais tenebrosos e já com fama garantida. Teria tido um tio, se fosse gente. Seu nome teria sido Lovenácio, e teria sido um lobisomem, mas esse haveria de ter-se arriado com as quatro patas para o ar depois que um fazendeiro o atingisse com bala de prata no coração, que de tão negro quase nem haveria de bater. O mesmo nunca aconteceria com ela, é claro.
Com ela, não! Se levantava do túmulo para ser temida, e temida famosa, e temida famosa que não se deixava abater por artifício do homem, fosse de prata ou de mão santificada. Dos santos não temia nada, era filha da noite com o pai do escorpião. Era chamada de fera e sabia o valor da maldição. Comera já uns tantos e não era mole não! Neta de papa-defunto, vinda da aurora verdeamarela da nação.
Saiu pelo reto do caminho que seguia ao lado do córrego da Santa Luzia, fazenda próspera, cheia de holandês e produtora de leite branco-amarelinho, que todo dia era recolhido pelo caminhão que levava tudo pra o laticínio, deixando os bichinhos das vacas mortos de fome. Se havia gente ruim assim não precisavam dela para assustar lá por aquelas bandas. A fome era algo a ser respeitado, a ser temido. Ela mesma tinha muita fome e deveriam temê-la como o diabo. Decidiu procurar algo mais adiante, praqueles lados da fábrica de fécula, onde se erguiam os três pares de coqueiros altos na entrada.
Foi e no caminho fez sua primeira vítima. Um branquelo cujo nome lhe falhava, se é que algum dia o conhecera, mas que era filho de uma cozinheira, amancebada com o cobrador da estação.
Comera-lhe o fígado enquanto ainda gritava, mas não deixara vestígio de sua sapiência, pois morrera logo, de fato. Erro. Não poderia sair por aí contando sobre ela, o que diminuía a chance de ficar reconhecida. Contudo lhe achariam a carcaça mole ainda, com o sangue a alimentar os vermes da terra, que sempre cobraram dela mais alimento do que já fornecia, quando matava pequenos animaizinhos pelo restolho do capim.
Então, de noitinha apareceu um caipira que logo ativou o carro da polícia que de lá não arriou até tomar várias providências que Jubelina não sabia ou não entendia.
Eles foram embora levando o corpo, mas a coisa ainda estava com fome e decidiu matar outro, e agora, com a noite a lhe escoimar pelas costas, acharia um jeito mais fácil de tornar-se temida. O local predileto dos que contavam vantagens do homem sobre as feras da natureza antiga eram as igrejas que infestavam os sertões. Lá poderia achar uma ou duas das beatas faladeiras e botar-lhes os buchos em aberto para o ar ficar mais quente.
Caminhou se retorcendo pelo caminho pedregoso até chegar numa escolinha de crianças da ralé local. Lá havia milharais. De súbito sentiu um cheiro nauseabundo. Muito diferente, do seu próprio, mas advindo de uma coisa da qual não entendia a feitura. Havia mais criaturas escondidas perpetrando malvadezas por ali, apercebeu-se. Não gostava de concorrências, mas poderia ela é estar invadindo o território de outrem, o que não lhe agradava na idéia. Afinal, fora ela a engenhar sair das tumbas para maldiçoar a região onde nunca estivera antes. Deixaria aquele local, onde os meninos aprendiam sobre como ser melhor na vida. Nunca aprendiam nada!
A escolinha já tinha dono. Pediu desculpas às sombras que se sentavam sobre a cercania e se retirou de costas, numa reverência, que de bons modos não poderiam acusá-la de faltar. Ela era formada por muitas, e cada uma das que a compunham fez o sinal da cruz enquanto saia.
Partiu para os lados do riachão, cujas bordas estavam peludas de galhos e vegetação arrancada dos barrancos pela enchente da última chuva. Os nacos de barranco enlodavam a água, deixando-a mais turva do que de costume, com uma aparência inchada de cadáver afogado. Duas léguas depois ouviu certo ruído de falsete vindo detrás de uma moita. E não era que lá estavam dois marmanjos praticando safadezas! Um dizia vai e o outro ia. Que pouca vergonha que nem nos confins do universo jamais se vira! Foi lá a coisa braba e papou os dois malandros que nunca mais viram a luz do dia. Comera-lhes fígado e coração, que era para não haver jeito de alguma coisa macabra lhes restaurar os sentidos, por algum artifício do maligno.
Então sentiu a espinha doer. Era a tal coisa que lhe espreitava de longe; aquela lá do milharal da escolinha. Arriou os tentáculos, deixando à mostra a bocarra de dentes carcomidos. Miou mais uma vez antevendo um embate antológico, mas de nada adiantou. O bicho da escuridão não se atreveu a mostrar-se como manda as boas práticas. Rejeitando o desafio meteu-se com os rabos por entre as patas e não se dignou a dar-se anunciar.
Jubelina arregalou-se toda com o prenúncio do temor que já poderia estar desenvolvendo nos outros, mas eram os homens quem pretendia aporrinhar, pois eram eles os descendentes dos caça-monstros, que com suas bandeiras embrenhavam-se pelos sertões de São Paulo e Mato-Grosso, chegando muitas vezes lá pelos lados dos Goiás. Caçadores cruéis de assombrações e de pedras preciosas que praticavam vilanias; capturavam índios como se fossem eles também criaturas sem alma e vendiam-nos depois aos padres tonsurados da companhia de Jesus, que os pagavam com o dinheiro de óbolos.
Caminhou como sonâmbula, pois seus olhos tinham propensão para o sono que tinha desde jovem. Muitas almas atormentadas não se tornavam assombrações por decidir dormir o sono, ao invés de perambular sonolentas, sem descanso. Assim, só os tormentos mais profundos, dilacerantes, eram capazes de mover o sopro do espírito pelos charcos, interminavelmente; ou até que lhes dessem o descanso por lhes resolverem as pendências. Os lamentos mais terríveis ainda formavam criaturas diferentes de toda a natureza criada. Como Jubelina. Gostava tanto de dormir que sua mãe se fizera a noite era mesmo para espairecer e sorrir enquanto levava-se levitando em seus braços cor de mogno. Mesmo o interior das covas eram da cor de mamãe, para poder se ligar a ela onde quer que estivesse... Cheiro da terra fresca com minhocas gordas. Mas nem isso a mantivera dormindo para sempre.
Viu então a lua no céu de diamantes esplendidamente espalhados pelo lá e cá e ainda mais distante, onde nem olhos de assombração alcançavam. Era um não sei o que de pisca-pisca vagalumeante e as luzes todas pareciam se falar sobre Jubelina que saíra do lar de seus parentes mortos para assustar até não poder mais.
Foi-se então por mais léguas cheias de vento, margeando o caminho d'água.
Seria um garoto que naquela beira do riachão espetava uma minhoca num arame retorcido preso à linha de uma taquara? Sim, seria.
Jubelina não poderia lhe faltar, na qualidade de um ser tão especial que apreciava fígados frescos. Deveria lhe alcançar antes que fizesse algum mal aos peixes da água doce. Estirar-lhe-ia um tentáculo, agarrar-lhe-ia as canelas. Fá-lo-ia plantar uma bananeira sem que alcançasse o terreiro. Chacoalhá-lo-ia até as lágrimas molharem suas sobrancelhas tristonhas. E então deixaria que se fosse, todo cagado, avisar as redondezas. Sim, deixaria que se fosse.
Assim foi, e Felipe da Silva Assunção, filho de Zé Guilherme Assunção, pintor, se foi arrancando o mato da frente, aterrorizado para avisar sobre o pretume endemoninhado que parecera surgir do nada. Quase arrancara-lhe a cara de sobre os ossos da face, tal qual sua feiúra, e desejara chupar-lhe o sangue da medula... Coisa besta! Quem fazia isso era o velho Astroaldo, finado.
Ela ficou louca de excitarão. Saberiam sobre ela com todos os requintes de uma crueldade que nem chegara perto de praticar. Junto com os outros cadáveres que deixara, este que fugira, achando-se esperto, faria o trabalho para ela. Logo seria respeitada por gerações naqueles rincões de fim de mundo, onde as estradas cobertas de piche que levam aonde vivem as esperanças, nem longe passavam.
E assim se sucedeu desde então, pois naquela mesma noite, mal a Lua caminhara bom caminho, veio uma matilha de cães de caça, homens armados de porretes e enxadas de trabalho e, capitaneando a mal formada coluna, o tal fazendeiro matador de lobisomens de arma na mão, muitos anos mais velho do que Jubelina imaginava. "É boitatá" uns diziam. "É o chupa-cabras", outros. Mal puseram os olhos nela, veio-lhe três saraivadas de sal grosso no quengo. Aquilo doeu pra caramba e a luarada ouviu seu miado de longe! O lamento dos que se preparam para a morte. Quem se atreveria a lhe dar tiros de sal quando as balas de prata já haviam servido a outros?
Mas era só o sal que lhe afetava a escuridão do meio do corpo. Àquela que lhe animava as partes moventes, como a alma luminosa das pessoas faziam com seus fiapos de carne. Ela atirou-se longe, gemendo de dor e agonizando gritos monstruosos como ela mesma. O riachão abriu-se numa catarata de água dando-lhe passagem segura. Lá o sal não surtiria efeito e os cães não poderiam lhe rasgar com as dentadas. Ilusão. A água se misturava com a terra do qual era formada. Sentiu-se desmanchando sob o efeito da oscilação do lodo, o sal deixando-lhe as costas, mas envenenando tudo o mais. Sua lama misturando-se ao fundo de grama apodrecida. Traíras vieram lhe mordiscar e seus dentes eram mais numerosos do que os dos cães. Mas não sentia nada. E lá poderia deixar-se enredar, pois o sono lhe chamava de novo, e com mãos de veludo acariciava-lhe os cabelos empretecidos, pondo-lhe covinhas no rosto.
Por último, de esguelha, via de longe uma aparição luminosa que os homens, amedrontados e animados pela cachaça não repararam. Não é que uma das bruxas do convento havia invocado Santa Luzia, de pires na mão, onde repousavam seus olhos ainda vivos, para direcionar os tiros de sal? Os mortos precisavam mais de orações do que as súplicas de uma freira danada. Borboletas negras que eram. Haviam tantas almas penadas precisando de reza para arrefecer seus pecados e ainda assim essas irmãs se davam ao desplante de rogar aos vivos...
Então ela viu. Santa Luzia, que nada! Por detrás de um ingazeiro, lá estava o espectro do milharal. O homem de palha, que roubava as criancinhas que se atreviam a se distanciar demais de seus pais e nunca mais eram encontradas. Aquele que botara fogo no convento do capinzal, para apaziguar as sem-vergonhices. Não havia pedido desculpas quando se atrevera a perscrutar os arredores da escolinha? Não fora suficientemente educada afastando-se de lá? Ladrão safado! Havia lhe dedado para que os caçadores armassem seus mosquetes com a munição adequada. Talvez quisesse afastá-la por que via um perigo para si próprio, talvez imaginasse vir a ser deslindado à força de seu local de assombração. Ou talvez apenas se lembrasse... E Jubelina não sabia de quê... Ele queria mandar Jubelina de volta ao cemitério de onde germinara. Local que antes havia sido amaldiçoado pelas irmãzinhas. Antes da tragédia. Borboletas... Antes de virar cinzas sobre as quais foram erguidas as primeiras cruzes do campo santo.
Logo ela, cujo grão era grosso, fazedora de carpideiras. Não teve engodo. Morreu sem dar-se ao mundo como era. Não a reconheceriam pelo nome nem se dariam ao trabalho de averiguarem seu tormento; e sempre acharam que outro era aquele que matara o branquelo e os dois safados detrás da moita. Não que ela fosse outro, mas que um outro fosse. Logo Jubelina, que assumira a forma de Astroaldo, que não assumira a forma de ninguém, agora se lembrava! Vindo pelas frestas das tábuas nuas dos assoalhos das celas ornadas de crucifixos, invocado das profundezas. Para comer castanhas e fazer-lhes coisas libidinosas. Noivo de todas elas que o convidavam por espontânea vontade, animadas pela solidão e pela luxúria porque não deviam se dispor com os homens mortais. Vinte anos após a morte deste, amante de todas elas no convento do capinzal, como seria dali desde sempre, de novo, de vinte em vinte anos, quando a maldição do convento onde morreram queimadas as irmãzinhas pecadoras, dentro de sua clausura, a coisa emergiria para o mundo dos caça-monstros. Até que as orações dos vivos desapenassem todos os seus pecados.
Re: Contos fantasticos !!!
TIA MAUDE
Terror
- Spoiler:
- A última vez que eu vi tia Maude viva foi na mesma manhã em que a velha morreu.
O meu pai me chamara a um canto e me dera algumas instruções sobre como eu deveria me portar naquela despedida. Decididamente, não me agradava nem um pouco subir à mansarda do andar superior e me encontrar sozinho com aquela víbora moribunda, mas meu pai era um homem bom e não merecia aquela desfeita.
Desde o limiar da madrugada, tia Maude parara de gemer e aquilo foi um alívio para nós todos. Agora ela estava prostrada em seu pesado leito de dossel, imóvel, com os olhos fechados, exibindo uma face pálida e encovada, como uma múmia milenar. Eu tinha a impressão que a tia já havia nascido velha, mas agora ela parecia ainda mais revelha e assustadora. A disposição de seus cabelos brancos, extremados em grossos rolos de anéis ensebados, que serpenteavam em todas as direções, fazia-me recordar das górgonas da Antigüidade.
Tia Maude ressonava. Sua respiração era curta, rápida e superficial. A prostração viera com a madrugada e desde então a velha senhora não mais acordou. Agora a anciã descia vertiginosamente em seu poço escuro de morte, de onde eu esperava que jamais retornasse.
Eu me aproximei da velha moribunda e murmurei:
— Adeus, tia Maude.
Eu estava extremamente feliz com a morte iminente de tia Maude. Era uma velha avarenta e ignóbil. Muitas vezes, eu e a pequena Sylbie ouvíamos comentários reservados sobre a riqueza da tia do meu pai, que morava conosco desde que enviuvara – antes, portanto, de meu nascimento –, mas não havia qualquer indício de que isso fosse verdade, porque a tia Maude jamais nos socorrera nos momentos difíceis, que eram muitos. A tia Maude era má. E se tornou ainda mais amarga e cruel quando partira a perna em dois lugares. Sempre que eu estava só e me aproximava do leito, a velha cessava imediatamente os gemidos e – plena e subitamente saudável – me puxava pelo punho, cravando fundo as unhas longas e escuras, para me sussurrar palavras hediondas.
E, naquela manhã de sua morte, já ia eu me precipitando para longe do leito de dossel, quando uma mão me segurou. Era uma mão forte e fria, que me cingiu o pulso com a força de uma tenaz. Tia Maude puxou-me contra a sua horrenda boca, e me confidenciou bem próximo ao meu nariz:
— Tu não escapas de mim, menino tolo! Onde estiveres, eu te agarrarei! Olha bem, eu te agarrarei! E ficaremos juntinhos para sempre, eu e ti!
Quando disse isso – não com um sussurro, comum aos moribundos, mas com um brado cheio de ira – tia Maude arregalou os olhos e a boca, sorveu um punhado de ar e, depois, expirou. Morreu olhando nos meus olhos, para mais ainda fixar em minha alma juvenil aquela terrível ameaça.
O caixão de tia Maude fora estendido sobre a mesa da sala. Eu a contemplava de longe, mas o seu hálito de morte ainda recendia bem perto de meu nariz. No meu pulso, onde as suas garras mergulharam, eu sentia um desconforto, como se uma sombra negra, fria e pegajosa, ainda o cingisse.
Minha mãe saíra há pouco com Sylbie, minha pequena irmã. E meu pai – um bom e honesto amanuense do Rei – estava a providenciar a documentação para o sepultamento. Eu estava, portanto, só. Eu e tia Maude, sozinhos naquela casa triste e úmida, repleta de sombras ancestrais. Um grande candelabro funerário, com seis círios, ardia bem próximo a uma das extremidades do ataúde, junto à cabeça da defunta. Por isso custou-me, mais que o desejável, perceber que a noite havia caído. Sim, a noite havia caído e eu nem percebera!
Nada neste mundo me faria aproximar da megera defunta. Nada, a não ser o meu gato amarelo – um jovem gato soberbo e insolente –, que saltou do chão para a mesa e da mesa para o ataúde. E depois passou a lamber caprichosamente os beiços da minha tia-avó.
O que se passou por minha cabeça naquele instante? Eu não era um homenzinho? Eu não prometera à minha mãe que deixaria tudo em ordem? Pois bem. Eu já tinha treze anos e já era grande o suficiente para adivinhar as pretensões de meu gato amarelo, que viera da Abissínia. O hálito da velha cheirava a ratazanas, disso eu sabia muito bem. Pus-me a imaginar a admiração e o horror do meu pai ao ver os lábios mutilados de sua tia, porque o filho imbecil ou covarde não tomara as providências adequadas.
Assim, resolvi espantar o gato, antes que ele mergulhasse os dentes na boca de tia Maude e lhe arrancasse um naco generoso.
— Cai fora, bichano! Cai fora, gato ruim!
O gato, porém, me ignorou felinamente. Antes de desviar de mim os olhos frios, sinistros e categóricos, mergulhou num átimo os dentes afiados nos lábios da anciã. Apertou com força, sacudindo nervosa e rapidamente a cabeça, como a apressar a mutilação de uma presa inerte, mas susceptível de uma perda iminente. Não tive outra opção senão arrancar o gato à força do colo e da face de minha tia. Isto me valeu um arranhão profundo no dorso da mão esquerda, e ao gato, que gemeu sinistramente, a perda de uma refeição saborosa.
Foi aí que tudo escureceu, porque o gato, na fuga, derrubou o candelabro, apagando os círios. Apenas uma réstia de luz gasosa, que escapava da janela, incidia sobre a face do cadáver. Então veio o choque, que me fez regelar e paralisar, porque, de alguma forma, eu sabia, que isso ia acontecer.
Tia Maude se ergueu, puxou-me pelo pulso, e murmurou-me ao nariz, com o seu bafo quente e pútrido:
— Tu não escapas de mim, menino tolo! Onde estiveres, eu te agarrarei! Olha bem, eu te agarrarei! E ficaremos juntinhos para sempre, eu e ti!
Gritei, sem perceber que gritava, enquanto o meu corpo tremia sob o impacto de uma convulsão gelada. O chão escapava dos meus pés. Mas tive forças suficientes para puxar de volta o meu pulso, onde as unhas balouçantes de tia Maude afundavam e tremiam.
Tia Maude, que a muito custo deixou de escavar tenazmente em meu pulso, pousou a cabeça no travesseiro e juntou as mãos, à maneira solene dos mortos. Eu não via, mas sabia que em seu rosto de abutre morto havia um tênue sorriso de satisfação.
Enquanto o cadáver retomava o seu sono de morte, fugi em direção à porta, mas me choquei violentamente contra os umbrais. Depois, caí pesadamente sobre o assoalho. Ouvi o meu crânio se partindo e senti, em seguida, o calor viscoso descer pelo meu pescoço e pelas minhas costas. Era o meu sangue. Neste momento, ouvi alguns sons, a princípio indistintos. “Meu Deus, o que aconteceu por aqui?” – gritava a minha mãe, que chegava nesse momento. O meu pai veio logo em seguida, falando algo como chamar o médico. E Sylbie se punha a chorar. Depois tudo ficou silencioso e escuro. Agora era eu quem descia vertiginosamente em meu poço escuro de morte, de onde jamais retornarei.
Aqui, onde estou, é tudo escuridão. O lugar onde fico é escuro e úmido, escorregadio, cheio de emanações pestilentas, como o porão da casa onde morávamos. Às vezes fico sozinho, mas freqüentemente uma mão fria surge da escuridão e me cinge os pulsos. E então vem um hálito nauseante nas minhas narinas dizendo palavras terríveis e miasmáticas:
— Eu não te falei? Para sempre juntinhos, garoto mau! Para sempre juntinhos, eu e ti!
Re: Contos fantasticos !!!
O homem de olhos vermelhos
Terror
- Spoiler:
- Leitos de hospitais geralmente são lugares tristes durante o dia. A noite essa tristeza se intensifica, solidificando-se nas paredes recobertas de limo, no teto mal iluminado pelas lâmpadas fluorescentes, nas camas recobertas pelos lençóis esverdeados, abarrotados, encobrindo seus contornos metálicos. Na camada de tinta que escapa das paredes... Se durante o dia os leitos de hospitais são lugares tristes, durante a noite eles se tornam deprimentes. Fiz essa pequena constatação pessoal, quando passei três dias e três noites inteiras, devidamente hospitalizado, graças ao que meu tio Antonio chamava de “Pequeno espião birrento”. Um calculo renal, de aproximadamente dois milímetros, semelhante a um grão de arroz super desenvolvido, alojado em meus rins, mas movendo-se furtiva e dolorosamente em direção ao meu canal urinário. Dizem que a dor do parto é uma das maiores dores que o ser humano pode sentir. Besteira! Levando-se em consideração os fatos, excluindo-se os nove meses de incômodos enjôos, a dor do parto nem se compara a dor de uma cólica renal. Passei dois anos nutrindo esse “filho bastardo” em meu “ventre”, e no fim me vi obrigado a expulsa-lo já em fase adulta. Cinco dolorosos milímetros atravessando o canal urinário. Cinco milímetros em forma de uma pequena pedra pontuda, formada basicamente de oxalato de cálcio e acido úrico. Imagine um pequeno pedaço de gilete, escorregando devagar, abrindo caminho a força junto com a sua urina. Parto normal? Besteira... Pura e simples besteira! E ainda tenho a pedra para provar.
O fato é que durante aqueles três dias em que passei acordado, me virando interminavelmente sobre os lençóis novos, recém estirados (mas ainda assim com aquele cheiro e aspecto desagradável de leito de hospital) recebi basicamente duas visitas. Uma delas, é claro, era minha mãe. Chegava às dez e saia pontualmente às doze, quando terminava o horário matinal de visitas. Trazia meu almoço devidamente conservado em uma tigela de plástico, pois sabia da resistência exagerada que meu corpo insistia em nutrir, quando o assunto em questão era a higiene empregada nos refeitórios hospitalares. Pobre coitada! Enfrentava uma verdadeira via-crúcis só para satisfazer um pouco das necessidades infantis do filho. E enquanto eu me alimentava, seguindo suas instruções de comer devagar e mastigar bem os alimentos, ela checava com cuidado os curativos provocados em meu punho esquerdo, pela mão desajeitada de uma enfermeira descuidada, que perdera a veia no momento de introduzir o soro na corrente sanguínea.
Minha mãe era uma boa pessoa e agradeço a Deus por tê-la sempre ao meu lado. Não pensem, por favor, que fui do tipo mimado que não nutria o costume de sequer lavar as próprias roupas de baixo. Seria uma interpretação errônea dos fatos aqui apresentados, mas digamos que sempre fui um pouco dependente dela, quando na verdade deveria ocorrer ao contrário. Sempre tive medo do tempo e do que ele poderia fazer comigo. Mais ainda, do que ele poderia fazer com ela.
Fui testemunha ocular do quanto o tempo pode ser cruel, logo no primeiro dia de internação no hospital Santa Maria, naquele inverno de 1957. O homem era um senhor já de idade. Pude perceber isso logo que ele entrou. Tinha no rosto um aspecto cansado, com profundas olheiras marrons rodeando seus olhos. A pele flácida, repuxada drasticamente para baixo, formando uma papada enorme e disforme logo abaixo do queixo. As costas arqueadas e o andar lento, vagaroso, quase hipnótico. Estava acompanhado por uma garota extremamente bonita, que o ajudava a carregar o suporte metálico do soro. Era um pouco maior que ele (mais devido à curvatura do corpo do velho, do que a qualquer outra coisa), longos cabelos ruivos, caindo lisos por sobre os ombros ligeiramente arqueados, pele branca e olhos tão verdes e brilhantes quanto duas bolinhas de gude. Na ponta de seu queixo se destacava um pequeno orifício, quase imperceptível, mas ainda assim carregando sua inegável parcela de beleza.
— Por aqui senhor. – Disse educadamente a outra mulher, que entrou no quarto logo em seguida, tomando a frente e indicando uma das camas ao meu lado. Usava um grande jaleco verde, que descia pelos contornos magros de seu corpo, quase até os joelhos. Seu rosto parecia tão cansado quanto o do senhor de idade, mas ela conseguia (ou pensava que conseguia) esconder isso muito bem com o blush e o pó compacto, espalhado pelo rosto como massa corrida em uma parede esburacada.
— Tem certeza de que vai ficar bem vovô? - Perguntou a garota dos olhos de bolas de gude, ajudando o senhor a se acomodar lenta e dolorosamente na cama. O velho balbuciou algo inaudível e se deitou, cruzando as pernas e os braços, encolhendo o corpo de lado em posição fetal. A mulher de jaleco o ajudou a tirar os sapatos e as meias, largando-os ao pé da cama após notar com crescente interesse a camada marrom de sujeira, semelhante à marca deixada em suas roupas intimas após uma incursão mal sucedida ao mundo da higiene pessoal.
— O horário de visitas é das dez as doze, querida. – Disse a enfermeira, procurando ser o menos rude possível. – Visitas após esse horário só são aceitas mediante uma permissão especial. Mas levando-se em consideração o estado de saúde de seu avô, isso não será muito difícil de se arranjar. – Nesse ponto a voz da enfermeira oscilou, e por Deus... Que todos os santos me perdoem, mas eu juro que senti uma pontada de prazer despontar de seus lábios, quando ela disse aquelas palavras.
A garota corou e procurou, provavelmente nos recantos mais profundos de sua mente, se lembrar de como deveria ser um sorriso sincero. Tentou reproduzi-lo com o Maximo possível de fidelidade, mas o que conseguiu foi apenas um ligeiro entreabrir de lábios.
— Tudo bem. Só peço que cuide bem dele enquanto eu não estiver por perto. – Disse ela. Sua pele adquiriu um tom ligeiramente rosado, quando as palavras saíram de seus lábios ressecados. – Ele não dará muito trabalho. Sempre foi um homem quieto, do tipo que gosta de sofrer em solidão.
A enfermeira permanecia séria, mas a graças a uma habilidade que adquiri com o decorrer dos anos, convivendo em meio a uma sociedade hipócrita, que esconde seus mais secretos desejos sobre a camada superficial da pele, percebi que por dentro ela sorria. O tipo de riso sarcástico, capaz de fomentar os mais doces e delirantes desejos. A enfermeira de pele flácida e olhar triste parecia se comprazer com o sofrimento alheio, da mesma forma que um cientista metódico analisa um rato de laboratório, caminhando interminavelmente sobre o circulo metálico, fadado ao eterno enclausuramento de sua jaula... Sem escapatória.
— É como dizem... No fim as coisas sempre se ajeitam. – Disse a enfermeira, forçando um sorriso, que por fim se mostrou tão verdadeiro quanto uma moeda de dois reais. A garota dos olhos de bolas de gude não respondeu.
Alguns minutos depois a enfermeira saiu, deixando o senhor de idade aos cuidados da garota dos olhos de bolas de gude. Permaneceria por pouco tempo ali, já que o horário de visitas estava quase chegando ao fim. Sentou-se em um banquinho de madeira, com as bordas carcomidas pelas traças, e passou os minutos que lhe restavam acariciando os cabelos grisalhos do avô, que permanecia, por sua vez, inerte a tudo e a todos, mergulhado em seu próprio mundo imaginário, em um país distante, onde provavelmente doença alguma lhe acometera as entranhas.
— O que ele tem? – Perguntou minha mãe, rompendo o silêncio monótono do quarto. A fraca luz de uma manhã nublada atravessava as frestas das persianas, lançando sombras horizontais sobre os contornos de seu rosto jovial, mas também cansado.
Por um momento pensei que a garota dos olhos de bolas de gude não fosse responder a pergunta. Sua cabeça estava ligeiramente inclinada para frente, apoiada nas palmas das mãos, com seus dedos finos e delicados massageando a testa. A dor instalada em seu coração parecia se mover furtiva e delicadamente sobre o frio do quarto de hospital, de uma maneira triste e abrasadora. Se passaram apenas alguns segundos, mas que para mim pareceram intermináveis e angustiantes, até que ela resolveu responder.
— Alzheimer... – Disse ela. O tom parecia inarticulado, sussurrando as palavras, espalhando-as pelo quarto com o temor carregado na voz. – Se esqueceu das coisas boas da vida, e agora precisa de ajuda. O problema é que sou casada. Tenho dois filhos pequenos para cuidar e um marido que não move uma palha sequer... O ser humano às vezes pode ser muito egoísta não é?
— Na maioria delas, sim. – Respondeu minha mãe. Mas ambos sabíamos que a mulher não queria ouvir uma resposta. Fora uma pergunta retórica. Seu tom monótono de voz deixava isso definitivamente claro. – Mas vai ficar tudo bem. Ore... Peça por ajuda, e no final as coisas se ajeitam.
A garota riu. Não o tipo de sorriso sarcástico que a enfermeira havia insinuado e que interpretara tão convincentemente bem. Seu entreabrir de lábios era sofrível e real.
— Foi o que a enfermeira falou. – Disse ela, enxugando com as palmas das mãos as lagrimas que insistiam em deslizar dos seus olhos de bolas de gude. – E ele? O que têm?
— Pedra nos rins. – Respondeu minha mãe, sem fazer arrodeios. Geralmente agia assim com as pessoas. Aproximava-se delas muito facilmente, aproveitando-se dos não tão raros momentos de fragilidade emocional delas.
Não demorou muito para que surgisse uma solida amizade entre as duas. Com o passar do tempo, as visitas de ambas tornaram-se menos freqüentes. O leito do hospital tornou-se mais vazio, tendo sua solidão quebrada apenas nas poucas vezes em que a enfermeira de pele flácida e olhar torto aparecia para trocar as fraldas do senhor de idade. Fazia isso com o maior desprazer possível que uma pessoa poderia ter, e não foram poucas as vezes em que presenciei cenas de maus tratos. Prometi a mim mesmo que quando saísse dali tomaria as providencias necessárias para que aquele tipo de coisa jamais voltasse a acontecer. Mas, infelizmente, não foi necessário. Porque naquele mesmo dia, apenas algumas horas antes do médico finalmente me dar alta, durante uma madrugada frio e escura, o avô da garota dos olhos de bolas de gude e eu recebemos a segunda visita, da qual falei no inicio desse relato. Não citei nomes pois não me atrevi a nomeá-lo, tamanho fora o terror que se alojara em minha mente após aqueles fatos. Mas se for necessário fazê-lo, prefiro chamá-lo de “O homem dos olhos vermelhos”, mesmo sabendo, inconscientemente, que a criatura que nos visitara aquela noite era tudo, menos humana.
A lua cheia despontava no céu, grande e redonda, espalhando sua beleza para todos os lados, ofuscando parcialmente o brilho das estrelas. As persianas, como sempre, estavam abertas, e pequenas tiras de luminosidade se atreviam a invadir a escuridão parcial do quarto. Assim como nas outras noites, eu não conseguira pegar no sono. Contar carneirinhos já não adiantava muito na minha idade, de modo que sempre optava por permanecer de olhos fechados, me imaginando fora daquele lugar, de uma vez por todas, apesar dos braços inchados pelo soro sempre me lembrarem do contrário.
já passava das duas da madrugada, quando a porta do quarto foi aberta. Até onde eu sabia, não havia nenhuma dose de remédios cavalares programada para aquele horário, nem para mim e nem para o avô da garota dos olhos de bolas de gude. Um frio cortante pareceu inundar o quarto, de repente, antes que eu me desse conta de que o vulto parado em frente a porta não era o da enfermeira. Seus contornos eram másculos e bem definidos, do pescoço para cima. Do pescoço para baixo, usava um jaleco, obscurecido pelas sombras. Permaneci de olhos parcialmente fechados, fingindo estar mergulhado em um sono profundo, com o qual eu já não me familiarizava há muito tempo. O homem continuou durante um curto período de tempo parado a porta, provavelmente esperando alguma reação de minha parte. Creio que meu sono de mentira tenha sido suficientemente convincente, pois pouco tempo depois o homem que estava parado a porta moveu-se, caminhando devagar, contanto os passos, até a cama do senhor de idade. Virei-me um pouco sobre a cama, fingindo um sono perturbado, apenas para ter a oportunidade de enxergar o leito do avô da garota de bolas de gude de um ângulo melhor. Funcionou.
O homem de jaleco parou ao lado do leito do senhor de idade, checando com cuidado o soro preso ao suporte de metal, ao lado da cama. Deu três rápidas batidas sobre o plástico transparente e o soro no interior da bolsa começou a correr mais rápido. Sobre o leito, o velho gemeu, inconsciente, delirando enquanto dormia. O homem de jaleco moveu-se, sentando-se com cuidado no mesmo banco de madeira que a garota dos olhos de bolas de gude sentara apenas alguns dias atrás, deixando que um pequeno feixe de luminosidade que atravessara a persiana iluminasse parcialmente seu rosto. Fora apenas por uma fração de segundos, mas eu vi. O sangue de meu corpo gelou por completo, e um estranho frio sobrenatural pareceu invadir o quarto. O olhos do homem de jaleco eram vermelhos, como brasas retiradas das profundezas do inferno. Fitavam o velho com alucinado interesse, enquanto pareciam queimar viva e dolorosamente sobre seu rosto.
Pensei em levantar e fugir. Correr. Me esconder em qualquer lugar onde o homem dos olhos vermelhos jamais poderia me encontrar, mas o medo me paralisou. O senhor do destino, que no final sempre comanda nossas ações, me fez permanecer ali, de olhos arregalados, fitando os contornos demoníacos do homem dos olhos vermelhos, enquanto sua cabeça se inclinava ameaçadoramente em direção ao velho. E tudo acontecia como num filme, revelado aos poucos. Suas mãos de dedos finos e longos tinham garras nas pontas, ao invés das tradicionais e bem cuidadas unhas que um doutor teria. A pele dos dedos era flácida, enrugada e cinza. Parecia que poderia se desfazer a qualquer momento, semelhante a pele em decomposição de um cadáver. Abraçou o punho do velho com seus dedos mortos, e removeu com cuidado a agulha de um dos punhos. Elevou-o até a boca, envolvendo o pequeno orifício provocado pela agulha com seus lábios ressecados e cinzas. O que se seguiu posteriormente, fora um verdadeiro teatro de horrores. Eu podia ver o sangue fluindo nas veias do velho, indo de encontro aos lábios mortos do demônio de olhos vermelhos. Uma pequena poça de sangue se formou ao pé da cama, e quando pensei que o demônio dos olhos vermelhos havia terminado, algo mais aconteceu. Ele abaixou-se, inclinando seu corpo em um movimento humanamente impossível, sem dobrar os joelhos, até o chão. Uma enorme corcunda apareceu em suas costas, e o jaleco de doutor que usava tornou-se pequeno, revelando uma massa de ossos magros, visivelmente desproporcionais, grudados a pele morta, decompondo-se. Uma coisa grotesca e disforme, que jamais ousarei chamar de língua, saiu do interior de sua boca, contornando o ar em movimentos delicados e ao mesmo tempo horrorizantes, como uma cobra manipulada por um encantador de serpentes, e lambeu o chão. Seus olhos brilharam novamente, com o fogo oriundo das profundezas do inferno, e por um momento apenas me encararam, como se dissessem: “Você é o próximo, garoto.”
Mas eu não fui o próximo. Ao menos, não naquela noite. O demônio dos olhos vermelhos se levantou, satisfeito, e seus contornos, por incrível que pareça, voltaram a assumir a forma humana com a qual ele havia se apresentado, no momento em que entrou no quarto. Virou as costas e saiu, largando o velho morto atrás de si. Muitos anos se passaram, desde o acontecido. Perdi a maior parte dos meus cabelos, e os poucos que ainda restam são tão brancos quanto um céu repleto de nuvens. Na época tinha apenas dezoito anos e toda uma vida pela frente. Uma vida que ficaria marcada para sempre pela presença do demônio dos olhos vermelhos, durante uma noite escura, num leito frio e solitário de hospital. Hoje tenho noventa e dois anos, e me encontro deitado no mesmo leito. Esqueci-me do rosto de minha mãe, do rosto da garota, mas do rosto do demônio dos olhos vermelhos eu jamais me esqueceria.
É o mesmo que se encontra parado agora, na porta do quarto, me observando com curiosa atenção!
Re: Contos fantasticos !!!
QUANDO RETORNAM AS CRIATURAS
Terror
- Spoiler:
- As criaturas vieram do mar.
Selênius, o velho coveiro do cemitério católico, foi, mais embriagado do que nunca, o primeiro a avistá-las.
Naquela mesma manhã, como sempre, o coveiro entrara na taberna de Héracles para abastecer, com conhaque barato, o seu velho cantil. De tão encardido, e puído de cânceres e ulcerações, o fiel companheiro de Selênius não mais exibia, em sua superfície surrada, o brio verde-oliva dos tempos de campanha. Imaginávamos que o antigo alforje, que lhe ia sempre a tiracolo, era o único amigo com quem o coveiro contava neste mundo, eis que nunca se apartavam, pois que eram ambos repulsivos, detestáveis reminiscências da última guerra.
Rumaram os velhos amigos - foco natural de nosso desprezo - para o cemitério católico, transpondo a trilha que subia à colina, até esfumarem-se nas sombras turvas dos antigos salgueiros. Ia o homem resmungando os mesmos impropérios; seguia-lhe dócil o cantil, a bater-lhe amistosamente nos flancos, concordando-lhe mudamente em tudo, como um amigo de verdade – assim pensava Selênius – deve proceder.
Tardara menos que o de costume, e retornara Selênius à taberna. Tinha o rosto convulso e tremia. Ainda estava um tanto sóbrio e não trazia consigo o cantil. Ora, aquilo era mesmo um fato inusitado. Já tínhamos visto o coveiro, em seu cemitério, sem a pá; nunca, porém, em qualquer lugar do mundo, desacompanhado de seu alforje. Aquele homem, que balbuciava palavras desconexas, era, sem dúvidas, Selênius. Mas um Selênius modificado, estranho a si mesmo, descaracterizado em sua própria essência: faltava-lhe o cantil, o prolongamento de sua alma, a parte mais visível e palpável de seu ser. Por ele, Selênio mataria e morreria.
Podíamos formar, aos poucos, à medida que Selênius se acalmava, um quadro fidedigno do que acontecera. Recordemo-nos de que o Padre Pégasus e a sua sobrinha Galatéia sucumbiram ao mesmo infeliz incidente. Ambos, como todos sabem, foram sepultados lado a lado, há exatos três anos. Houve muita comoção na época e, até hoje, a tragédia é sempre relembrada pelos mais sensíveis e impressionáveis. Era, portanto, o dia da exumação. O coveiro seguiu os procedimentos de rotina. No dia anterior, intimara o único parente vivo dos defuntos para testemunhar a remoção das ossadas, mas este não comparecera, embora houvesse aquiescido ao convite com um sóbrio pesar. Assim, frustrada a formalidade legal – o que de ordinário acontecia –, Selênius tomou uma talagada do conhaque, depôs o alforje em uma lápide caída e pôs-se escavar ritmicamente, primeiro sobre o túmulo do sacerdote. Passou, contudo, do ponto em que – dizia-lhe a experiência – a pá deveria raspar a madeira do caixão, provocando um ruído áspero, com o qual, apesar dos longos anos de macabro ofício, jamais se acostumara, visto como lhe iam na alma também ásperas agonias. Selênius parou para descansar, maneando a cabeça, que a aura marinha refrescava. Tomou outro gole, mas o vigor esperado não veio. Havia algo de errado. O coveiro retomou a pá em movimentos cadenciados, acelerando o compasso. Nada. Cavou até convencer-se do que já lhe era perfeitamente evidente: o corpo do padre sumira juntamente com o caixão. O mesmo se sucedera com a sobrinha, pois, removida a terra que lhe servia de mortalha, dela não havia o menor vestígio. Isto me doeu na alma. Galatéia fora minha noiva. Não fosse a mão pesada e terrível do Ceifador, e estaríamos hoje casados e felizes.
— Roubaram-me os defuntos – disse o coveiro, perplexo e desolado, a entornar o conhaque no copo, algo que, há bem pouco, lhe pareceria impossível de acontecer. – Roubaram-me mesmo – concluiu, levando o copo aos lábios, com ambas as mãos e com a destreza de uma criança de dois anos.
Chamamos o intendente e seguimos, em comitiva, ao cemitério. Ficava ele no alto de uma colina, de onde se podia divisar o mar. O jovem pároco juntou-se a nós, pouco depois. Aproximamo-nos das covas abertas e surpreendemo-nos com o que vimos. Em locais como estes, a aridez da terra e a ausência de lençóis subterrâneos são uma necessidade irrefragável; mas, em cada um dos sepulcros abertos, minara a água salobra do mar, transformando em lodo a areia escura. E, aos nossos incrédulos olhos, um limo purpúreo proliferou, pondo-se a revestir toda a cova, do ponto mais fundo até as beiradas, como um veludo fúnebre em célere expansão, e prestes a despejar sua substância pegajosa sobre nossos pés. A este assédio, instintivamente recuamos, tomados de surpresa e asco. Mas, se tudo aquilo era extraordinário, causou maior comoção o incrível incidente que imediatamente seguiu. Como uma goela que se abre na carne do solo, um ralo negro surgiu lá no fundo, sugando vorazmente o lodo e o limo, que deslizaram e desceram às entranhas da terra num borbulhante e audível redemoinho. E, da terra, ergueu-se uma espécie de arroto, sonoro e vibrante, que nos engolfou numa nuvem de miasma. Um mal-cheiro insuportável, de matéria orgânica decomposta, nos expulsou dali num átimo. Corremos de volta à taberna, onde nos congregamos até quase o pôr do Sol. Nunca bebêramos tanto em tão pouco tempo.
Selênius, carcomido pelo remorso, repetia que não fora justo, e muito menos decente, abandonar o fiel amigo sobre a lápide caída. Sem nada murmurar, retirou-se, subindo a colina, para resgatar o cantil. Afinal, apenas as coisas depositadas no fundo da terra, como o lodo e os cadáveres, eram aspiradas e engolidas por aquele ralo estranho. O seu cantil deveria estar a salvo. Mas tinha a impressão – dissera ao menos duas horas antes de partir – que já não mais havia ninguém enterrado em seu cemitério. Teria muito menos trabalho doravante. A terra se encarregaria de sugar os túmulos até saciar-se de cadáveres, até rebentar-se em suas entranhas magmáticas.
— Sim – disse ele – isso é muito bom!
Voltou pouco depois, com o cantil na mão e a mente devastada.
— O mar já não é mais o mesmo – disse, ao retornar.
2
O que causou estranheza ao velho zelador de cadáveres foi o silêncio. Um silêncio imaterial provinha do mar, galgava as encostas do litoral, subindo-lhe as reentrâncias pedregosas. E, acima, derramando-se em torrentes pelas colinas tristonhas, o gélido silêncio dissolvia o vento, paralisava as sebes e os salgueiros para inundar o cemitério com sua mudez de morte.
No cemitério, as lápides, irmanadas, inclinavam-se umas contra as outras, como se murmurassem, entre si, em cochichos silenciosos, os segredos inconfessos que se ocultavam sob as suas inscrições. O solo estava revolvido; as covas, afundadas. Os velhos salgueiros recolhiam as suas garras, pendendo e deslizando para o chão, porque devastados em suas raízes.
Selênius recolheu o seu cantil. Dele extraiu, à guisa de beijo, um gole reconfortante. E o conduziu, comovido, ao peito, com o ardor e o respeito de quem abraça a mulher amada. Depois, caminhou até beira do precipício; lá embaixo, um mar fenecido, de águas estagnadas, jazia – enregelado e liso, qual uma pesada pedra tumular – sob uma fina neblina, que pairava no ar como um espectro desolado, a refletir-se no espelho fantasmagórico de um oceano absurdo.
Sim, era verdade. Já não era o mar o mesmo! O vento cessara. Não mais havia o rebentar das ondas nas pedras limosas. Uma imobilidade de morte enturvava as águas viscosas e densas, que se espraiavam silenciosas, perfeitamente planas, sem uma ruga ou uma espuma sequer, até as bordas do horizonte sangrento. Pairando sobre a superfície oleosa daquele mar inerte, aquela finíssima bruma refulgia a vermelhidão de um céu agônico e mudo. E, flanando entre as brumas, sobre as águas mortas e apodrecidas, assomaram as criaturas.
— Primeiro veio o Padre Pégasus. Depois, surgiu Galatéia. Eram eles mesmos, eu os vi.
À menção do nome de minha noiva, subiu-me à goela uma grande ira. Mas, consultando os olhos bêbados do coveiro, que acariciava nervosamente o seu cantil, intuí naquilo tudo um delírio. A ira dissipou-se tão rapidamente quanto viera.
O coveiro abriu a boca para falar. Todavia, a porta da taberna escancarou-se subitamente. Veio, então, um miasma tão pungente, tão atroz, que, queimando como brasa as nossas narinas, certamente nos levaria à vertigem, não fosse o sobressalto que então adveio. O padre Pégasus, morto de três anos, flanava entre os umbrais, e, englobado por uma neblina cintilante - um halo quase imaterial, que lhe agitava a batina carcomida pelos fungos e pelos vermes - deslizou no ar para encarar o coveiro. Tomou-lhe da mão o cantil, jogou-o ao chão e, com uma única pisada, inutilizou-o irremediavelmente. Depois, repentinamente, virou-se para o taberneiro. Antes que pudéssemos dar-nos conta da situação, vimos que o taberneiro ia ao chão, vertendo o sangue numa torrente, porque, onde deveria estar o seu coração, agora havia um buraco grotesco, cujas bordas, brancas e laceradas, estufavam-se para fora, como a copa de uma gigantesca flor salpicada de sangue. Os homens, petrificados, ainda puderam ver que o cadáver do Padre Pégasus levava o coração à boca descarnada para mastigá-lo com uma avidez de insano. Então todos fugiram.
Eu me deixei ficar. Minhas pernas chumbavam-se ao chão. Pude ver que o coração de Héracles surtia, no cadáver, um imediato efeito regenerativo.
Resolvi fugir.
Mas o padre Pégasus virou-se para mim. As órbitas dos olhos projetavam uma luz ruiva e fulgurante, como se no fundo do crânio, onde proliferava o limo purpúreo, lhe ardesse um lume incandescente. Uma miríade de vermes, finíssimos e opacos, grudava-se ao cimo de sua gólgota, contorcendo-se e agitando-se em ondulações descendentes. O Padre Pégasus moveu o maxilar e, por sobre sua língua túrgida e negra, rolaram sons articulados, que o crânio ampliava em volume, qual o bojo de um fúnebre alaúde. Ele disse:
— É na água do mar – para onde convergem os corpos dissolutos, conduzidos pelas torrentes das chuvas e pelos caudais não poucas vezes subterrâneos – que se recompõem os Justos. Eles herdarão a Terra! Não há para onde fugir. De onde houver uma praia, de onde descansar uma enseada, daí nós viremos. Ouve-me: agora nos chamamos legião. Porque somos muitos.
Quando terminou de falar, já não eram mais os vermes que orlavam o seu crânio. Eram cabelos negros, lânguidos e escorregadios. O lume do crânio cessara, porque os olhos voltaram a se engastar naquelas órbitas vazias, malignos e substanciosos. E, juntamente com eles, vieram os músculos e nervos, que um tecido gorduroso estofava, e que uma pele finíssima cuidava de revestir e amoldar.
Fugi para longe dali, mas fui apanhado. Agora, no escuro deste porão imundo, cumpro o meu destino. Ao meu lado está o coveiro. Ele lamenta a perda de seu melhor amigo e quase não fala. Diz, apenas, que estamos condenados aos infernos. Murmura que é tarde para conversões e arrependimento, porque chegara o dia do Juízo.
— É a ressurreição da carne. O que presenciamos é o renascer dos justos, que se alimentam das carnes dos ímpios para a regeneração do corpo. E, saciados, rumam céleres para a vida eterna. É somente isto e nada mais.
Eu sabia que ele tinha razão, mas não pensava em nada disso. Pensava em Galatéia. Lá em cima, vagava ela em meio uma profusão de cadáveres – os corpos decompostos de todos os quantos já haviam morrido no Senhor –, advindos do mar imóvel e oleoso. Mas Galatéia não se recompusera. Disso eu sabia. E sabia tanto que, quando o olor mefítico chegou-me ao nariz - um misto de miasma e o olor de algas marinhas apodrecidas -, compreendi que era ela quem descia as escadas do porão. Vinha buscar o meu coração, que um dia eu lhe dera.
— Josephus! Josephus! Eis-me aqui, meu doce amor.
O timbre de voz era compreensivelmente diferente, mas as inflexões – as modulações particulares, únicas como impressões digitais – eram típicas de Galatéia.
Então, Galatéia aproximou-se. Mirou-me com suas ígneas orbitas vazias, projetando na escuridão um duplo feixe de luz rubra e circular, que me iluminou inteiramente a face. E mergulhou em minha boca a sua língua negra, enquanto as mãos descarnadas buscavam sofregamente o meu coração.
Re: Contos fantasticos !!!
Morte Viva
- Spoiler:
- Eram quase 22:00, e a jovem estudante de arte azafamava-se no ato de polir com força o mármore negro sobre o qual estava ajoelhada. Os grumos de cera desfaziam-se aos poucos, sob a força e pressão a que eram submetidos, espalhando-se em caminhos e circunvoluções sobre a pedra. Uma gota caiu em meio à área polida, e a moça soergueu-se ligeiramente, passando as costas da mão que segurava o pano de polir pela testa suada. Segundos depois, eliminava com aquele mesmo pano a pequena quantidade de suor que comprometera a perfeição do polimento.
Ela estreitou os olhos, avaliando o próprio trabalho, e concluiu que podia quase se dar por satisfeita. Mais algumas esfregadelas junto ao pé da estátua, e pronto. Recuou com cuidado por sobre a pedra, procurando não riscar a planura impecavelmente brilhante, e recuperou o pote de cera que deixara no canto, ao começar a trabalhar. Levou o pote consigo ao avançar sobre o mármore, até alcançar o grande anjo negro. Os dedos do pé direito da estátua, que apareciam por sob a túnica drapeada, encontravam-se ainda opacos. Eram um contraste desagradável com o brilho do restante da estátua, e do túmulo.
Não agradava a ela estar ajoelhada em frente àquela estátua, como se já tivesse morrido, e se encontrasse na sessão de julgamento de sua alma. Não tinha medo da morte, e não acreditava realmente no Juízo Divino, mas... quem voltara para dizer o que realmente existia ou não, após deitar-se para sempre num lugar como aquele ?
O problema não era a morte. Não era o pós-morte, tampouco. Era, simplesmente, aquele anjo. Sentira-se incomodada ao limpar-lhe a face, minutos antes, intimidada pelo olhar vítreo mas estranhamente acusador talhado na pedra. Não era um doce anjo de catedral, ou uma daquelas belas imagens piedosas que eram as mais comuns em cemitérios, amortalhadas e chorando sobre os jazigos.
Aquele era um soldado de Deus, irado, impiedoso com os pecados dos homens, e... sabe-se lá porquê, mas ela tinha certeza daquilo... vingativo. Havia algo naquela expressão, algo que só se percebia após alguns minutos de contemplação e, uma vez visto, não mais esquecido: revolta. Mas por que um escultor faria um anjo tumular revoltado ? Por que dar ao morto tal acompanhante amedrontador ? Teria sido feito a pedido do próprio ocupante do jazigo ? Sua família ?
Na verdade não importava a ela. O que lhe interessava era dar aquele último polimento no dedão do pé do anjo, perceber feliz que, agora sim, deixara aquela sepultura inteira brilhando, e sair de cima dela. Beber um grande copo d’água na sede da Administração, lavar as mãos, relaxar um pouco, deixar a dor das costas abrandar, desacostumada que estava com aquele tipo de trabalho braçal... e partir para o serviço seguinte.
Ela moveu-se com um pouco de pressa demais, subjugada por seus próprios pensamentos fantasiosos. Escorregou na superfície polida da sepultura. Percebendo que ia deslizar até o outro lado, numa queda dolorosa ao chão, num reflexo procurou lugar onde se agarrar. A mão do anjo estava ali, ao alcance, e ela a pegou, de forma desajeitada.
— Ahhh merda !
Em sua mão, havia um dos dedos do anjo... quebrado na junta anular.
A jovem voltou os olhos para cima, para o rosto da estátua, e estremeceu. Aquela cabeça, sempre orgulhosamente voltada para o céu, em claro desprezo pelo que estava a seus pés, agora estava inclinada para baixo, e os olhos marmorizados a encaravam com raiva.
Ela ainda estava trêmula, mesmo na segurança do almoxarifado, dentro da Administração do Cemitério Coletor de Almas. Quem, em sã consciência, daria um nome assim a um cemitério, em detrimento dos nomes de santos ou títulos que evocavam paz e esperança ?
"Só os ricaços, para acharem graça num nome assim".
"Porque aquele era, em verdade, um local exclusivo dos muito abonados. Sua localização, em meio à zona residencial mais valorizada e chique da cidade, não causava estranheza aos futuros clientes. Na verdade, as proximidades do Coletor eram disputadíssimas, e vendidas, nas raras vezes em que aquelas mansões trocavam de mãos, a preços estratosféricos.
É claro que o cemitério fazia jus a essa fama. As criptas, jazigos familiares e túmulos individuais eram feitos dos materiais mais nobres: mármores raros, acabamentos em ouro e prata, detalhes em pedras preciosas. Existia desde o século XVI, e na verdade a cidade criara-se ao redor dele, como poderia tê-lo feito ao redor de uma igreja, se curvando orgulhosa frente ao mórbido fausto.
O fato estranho é que, apesar de toda aquela inacreditável e rica opulência, ela jamais havia ouvido falar no Cemitério Coletor de Almas, antes de vir a ser uma de suas funcionárias. Mais especificamente, a faxineira.
Como tal exibição de preciosidades não atraíra todos os ladrões do País era um mistério, mas assim sucedia. Aquele lugar antigo e especial permanecia intocado, em meio aos palacetes dos ricos, que ansiavam em ali deitar seus ossos.
A moça apertou as mãos junto ao avental, e sentiu a dureza do dedo da estátua, jogado apressadamente em um dos grandes bolsos. Olhando ao redor, localizando a vassoura de que precisaria para varrer as alamedas, ela procurou racionalizar.
"Foi só impressão minha, depois de ter pensado aquilo tudo sobre o anjo negro. É claro que estátuas não se movem, não têm expressão de zanga, não se vingam, assim como não falam, não..." – a mente da pobre paralisou-se por um segundo, lembrando-se da estranha entrevista para aquele emprego, dias atrás.
****************
— Será só a senhorita - a voz era rascante, um incômodo tom que lembrava areia. Ela mal o via, naquele aposento sombrio da Administração do cemitério, e ele ocupava o canto mais escuro, atrás da mesa. Vestia-se como um padre, com um capuz a velar-lhe as feições.
— Está bem.
— Os jardineiros trabalham pela manhã bem cedo, e os coveiros só aparecem quando há um sepultamento, e isso ocorre antes de seu turno, e após a família ter se despedido do morto.
— Meu turno, claro.
— O horário de trabalho é noturno.
— Estou ciente disso, senhor. – na verdade, o horário era ideal, apesar de bizarro, por não conflitar com suas horas de estudo.
— Isso a incomoda ? Preferimos esse horário, porque as pessoas visitam o cemitério durante o dia, e não gostam de ver os funcionários.
— Não gostam de ver os funcionários enquanto choram por seus entes queridos, não é ? Eu entendo, sentem-se constrangidos.
— Não.
— Perdão, senhor, mas disse... não ?
— Eles preferem não ver os funcionários para não se misturar a vocês, que consideram ralé.
Ela quase bufou de indignação, mas conseguiu controlar o impulso. Era faxineira de primeira viagem, mas não se considerava inferior a ninguém. Estava ali apenas para conseguir terminar de pagar a Escola de Arte, pois sua família, de classe média, não dispunha dos recursos necessários. Aulas durante o dia, limpeza e inspiração à noite. Mesmo sendo um cemitério seu local de trabalho, ela mostrara-se encantada de poder conviver com aquelas maravilhas em pedra e metais preciosos. Até agora. Não contava ver-se frente a frente com o preconceito dos ricaços 'clientes' do Cemitério Coletor de Almas. A estudante nada disse, observando fixamente o encapuzado.
Seu entrevistador olhou-a de volta, ou pelo menos ela achou que sim, com um jeito que a desafiava a expor os pensamentos. Ela permaneceu calada. Queria, precisava daquele trabalho.
— Cuidado com as estátuas. – disse o homem, de forma brusca.
— As estátuas ?
— Sim. Não as quebre. São obras de arte de valor incalculável.
— Percebi, senhor. Terei cuidado.
O capuz enorme que ocultava o rosto do provável padre abaixou-se ainda mais, e ele estendeu uma mão longilínea em sua direção.
— Está contratada.
— Obrigada, Sr... Frei... ahn... muito grata. Amanhã à noite estarei aqui. – disse ela, enquanto retribuía o cumprimento do homem. - O senhor deveria acender a lareira, sabia ? Sua mão está gelada, assim vai ter uma pneumonia.
— Agradeço sua delicadeza. Não preciso de calor.
***************
— Com o que será que se conserta mármore ? Cimento, alguma cola, o quê ? Meu Deus, que ninguém perceba o dedo quebrado pelo menos até amanhã... amanhã eu conserto aquele anjo horrível.
Ela não conseguiu evitar dizer essas palavras em voz alta. Tinha de ouvir alguma coisa, nem que fosse a própria voz, para esquecer a ventania assoviando lúgubres gemidos ao seu redor. Fazendo-a pensar em vozes sofredoras e agonizantes. Em... pedidos de socorro, avisos ? Súplicas para que fugisse dali ?
Nunca fora do tipo que acredita no sobrenatural, nunca fora medrosa. Mas aquele lugar a estava afetando. De princípio achara o cemitério lindíssimo, com todos aqueles belos túmulos, os metais e pedras preciosos. Uma aula de arte, um museu, uma Meca dos sonhos de qualquer artista. As estátuas, que estátuas ! Em enorme profusão, em todos os lugares, anjos na maioria, mas também figuras encapuzadas de ar severo mas sábio, que ela decidira serem santos. Algumas ajoelhadas, algumas brincando, algumas se consolando umas às outras, outras em êxtase celestial, abraçando o infinito com braços e asas abertos.
E uma... atrapalhando a limpeza. Postada no meio da alameda.
A jovem imobilizou-se, de olhos arregalados e boca aberta. Aquele santo não estivera ali mais cedo, tinha certeza disso. Ora, quem pusera aquela estátua tão pesada ali, sem que ela visse outros funcionários, e sem barulho ?
Deu a volta ao redor do monge encapuzado, curiosa para ver-lhe o rosto, identificar o santo. Mas por mais que tentasse, a cabeça permanecia num ângulo que lhe impossibilitava o exame, como que se furtando ao escrutínio. Uma Mona Lisa ao inverso. Evitando o olhar alheio.
Ela estremeceu e olhou ao redor, agora assustada, percebendo de canto de olho uma pequena mudança aqui, uma alteração lá. Estátuas que deveriam estar imóveis em seus nichos exibiam, a cada vez que as olhava diretamente, novas posições. Vivas. Brincando com ela de... estátua. Ela desistiu de se fazer de durona. Decidiu que não precisava mais daquele emprego. O Curso de Arte que se danasse. O cemitério de contos de fadas agora fazia parte dos Contos da Carochinha. Ela não quis saber qual deles. Correu.
A multidão de estátuas passara a ocupar as alamedas do cemitério. Os rostos antes pacíficos estavam contorcidos, as feições embrutecidas que não combinavam com as asas e trajes esvoaçantes. As belas mãos tornaram-se garras, procurando retardar o progresso da moça.
Os gemidos, que ela achara serem apenas o vento, tornaram-se guinchos. Saídos daquelas gargantas de pedra, lindamente esculpidas em mármores e granitos rosados, brancos, verdes, cinzas, azuis... o corredor formado por elas, para a danação de sua alma, era debochadamente multicolorido.
A pobre sequer procurava mais por uma saída. Apenas acompanhava o caminho petrificado formado pelos anjos e criaturas encapuzadas, aceitando em loucura aterrorizada o percurso determinado por eles. Seus braços estavam destruídos pelas garras de pedra, grandes retalhos de pele e músculos que pendiam e voavam, úmidos de sangue rubro, pintando guerreiras, as estátuas.
Após seus braços terem sido reduzidos a ossos e musculatura carcomida, também o corpo sofreu o mesmo ataque das garras de pedra. Ela gritava em agonia, com o peito e abdome dilacerados, pisando nos próprios intestinos, que se enovelavam viscosos pelo chão, numa corda patética de fezes, sendo arrastados atrás da moribunda. Um dos pulmões ficou preso na longa garra de um dos anjos que antes brincavam descontraídos, e a dor sentida quando os alvéolos foram esgarçados quase fez com que seu coração parasse. Mas haveria mais, antes que o martírio chegasse ao fim. O Coletor de Almas sempre exigia o sacrifício completo para se fartar.
As pernas cambaleantes foram rasgadas de cima a baixo, no mesmo padrão dos braços, e logo as tiras de músculos encheram-se de folhas e detritos das alamedas, que ela havia, ironicamente, acabado de juntar para levar ao lixo.
Finalmente a corrida chegou ao fim, na Administração do cemitério. Não havia mais uma mulher, mas um esqueleto cercado por uma ciranda cubista de vísceras e ossos, colorido por seus sumos e secreções, movido apenas por sua agonizante alma.
O anjo negro a aguardava na porta. Movendo-se muito lentamente ele recuperou o dedo quebrado, ainda no bolso do avental da jovem, um farrapo imundo de bile e excrementos. Encaixou o apêndice no lugar correto, e um segundo depois sua mão estava refeita. Ele deu um passo para o lado. Já nos portais da inconsciência eterna, a moça reconheceu o vulto que estava ao lado do anjo antes mutilado.
Era seu entrevistador. Não um padre. Sequer um homem. Uma estátua em tamanho natural, magistralmente esculpida em mármore branco, belas mãos longilíneas, representando a Morte.
— Eu lhe disse que deveria ser cuidadosa com as estátuas.
Re: Contos fantasticos !!!
JACK
Fantasia
- Spoiler:
- O céu estava enegrecido, sem lua, e mesmo as estrelas hesitavam em aparecer por entre as nuvens, como se temessem represálias pelo gesto de ousadia. O vento frio, que marcava a chegada do inverno rigoroso, lamentava em uivos, anunciando o império de Samhan, o Senhor dos Mortos.
A terra, que esteve fértil enquanto Brigith, Deusa da Cura, e Lugh, Deus do Sol, governaram, agora se recolhia ao frio toque de Samhan, cujo hálito enregelado ceifava a pouca vida que ainda teimava em resistir.
Seguindo pelas curvas do caminho ritual, que conduzia ao círculo menor de pedras no altiplano mais afastado da aldeia, um jovem, vestido em túnica negra com um capuz alaranjado, procurava vencer a barreira dos ventos. Os galhos dos arbustos ressequidos agarravam as dobras de suas roupas, como se fossem mãos cadavéricas fugidas de sepulturas antigas. Ouviu-se um ou dois rasgos no tecido antes que ele pudesse se livrar e continuar seu caminho.
O pio solitário de uma coruja causava arrepios, que ele tentava justificar como sendo um efeito do frio, e o coração parecia um tambor em meio à densa escuridão. Carregava uma lanterna nas mãos, mas estava apagada. Naquela noite, o Samhain, véspera do Ano Novo, noite em que a cortina de véus entre o mundo dos vivos e dos mortos era tênue e os espíritos lutavam para se apossar dos corpos dos homens, era proibido acender as luzes, pois elas tinham o poder de atrair os mortos na virada do ano. Para evitar que isso acontecesse, os sacerdotes da Mãe Deusa preparavam rituais e procissões; todos trajavam máscaras e roupas fantasmagóricas e assustadoras e saíam gritando pela aldeia, para afugentar as almas. Alimentos e bebidas eram oferecidos aos espíritos nas entradas da cidade para que os vivos fossem deixados em paz naquela noite.
O jovem havia participado de todas as danças, cânticos e procissões, cumprindo fielmente sua parte, sem levantar suspeitas. Esperara o ano todo por aquele dia e nada poderia dar errado. Quando a aldeia finalmente adormeceu, deixou o quarto que dividia com seu mestre sacerdote e, sorrateiro, abandonou a casa, levando a sacola onde escondera tudo o que precisaria, recolhendo pelo caminho o restante para suas necessidades.
Ao alcançar o círculo de pedras, menor do que o que vira na distante planície de Salisbury, mas que continha poder equivalente aquele, os arrepios se intensificaram e tremores pequenos sacudiram seus ossos, fazendo os dentes se chocarem uns contra os outros na boca. Sobrepujando o medo do que estaria para acontecer pela extrema vontade de realizar um desejo mais importante que tudo, obrigou as mãos e a mente a começarem o trabalho. Acendeu a lanterna, o brilho avermelhado atenuando o breu, e teve a impressão de que vozes e suspiros acorreram para a luz da chama. A incrível sensação de estar sendo acompanhado, olhado e vigiado corria por suas veias, e tentava engolir a saliva pela garganta contraída.
Começou desenhando símbolos no chão, na terra congelante, com o punhal curvo cerimonial que retirara, em segredo, da túnica de seu mestre adormecido. Quando o arranjo pictográfico estava concluído, espalhou os alimentos entre os grafismos. Amêndoas, tâmaras, soul cake - uma torta de pão com groselhas - frutas cristalizadas, peixe defumado, abóboras e vinho. Ajeitou bagas de rosas silvestres desidratadas ao centro, junto a uma gamela de cerâmica, e atirou lascas de casca de aveleira na chama da lanterna, que crepitou em tons azulados. O cheiro doce da madeira espalhou-se, suas notas provocando enjoo no estômago do rapaz.
Sentou-se, respirando profundamente, enfiando a mão dentro de um saco escuro, que se retorcia em movimentos leves. Olhou sem simpatia para o filhote de gato, o pelo felpudo e cinzento, que abria as pupilas para a luz da lanterna. Alisou seu couro, duas vezes, proferindo vocábulos que eram transmitidos de geração em geração através dos tempos. Um miado agudo brotou da garganta felina no momento em que a cortou com a adaga curva, silenciado depois enquanto o sangue escorria para a gamela diante dele. Quando o fluxo cessou, abandonou a carcaça e esperou, sentindo que o vento ficara preso do lado de fora do círculo místico de pedras.
Aos poucos, as vozes e sussurros que ouvira antes foram tomando corpo, crescendo e se intensificando. Vultos corriam entre as pedras, indo e vindo, saindo e entrando no círculo, subindo e descendo os monólitos, deslizando feito neblina com vontade própria, consciente; o ar, antes frio, tornou-se mais gelado.
Samhan… Samhan… Samhan…
Lamentos ecoados invocavam o nome do Senhor dos Mortos, e sentiu a alma acender-se em expectativa, enquanto os lábios espelhavam as vozes dos espíritos. Labaredas de fogo fátuo azulado espocaram nos espaços vazios entre as pedras, uma de cada vez, até que todo o círculo estava iluminado, banhado numa atmosfera etérea, bruxuleante. E então, dentre as luzes, uma forma envolta em manto e capuz negros assomou-se em meio a uma névoa cinzenta, densa. A figura bloqueava as chamas, criando uma auréola ao seu redor, o que ampliava a sensação de encantamento e poder. Deslizou sem dar nenhum passo, as dobras do manto flutuando numa gravidade própria, livre das leis que regem o mundo dos homens, chegando ao centro do círculo. Duas órbitas ocas, brilhantes, examinaram as oferendas; o resfolegar alto de uma respiração carregada escapava pela abertura do capuz, enquanto virava a cabeça de um lado para o outro. Satisfeito com o que via, concentrou sua atenção no pálido rapaz, que sentiu o tempo preso numa bolha impenetrável.
— S-Samhan…? — perguntou com um leve engasgar estrangulado de saliva.
— O Mestre não atende pessoalmente aos chamados dos homens. - a cabeça encapuzada moveu-se, e algo como centenas de vozes pareciam falar a mesma frase, ao mesmo tempo, em ecos que iam se sucedendo. A cadência melódica era nauseante.
Silêncio.
— E… Q-Quem é v-você…? - buscou manter a voz firme, falhando em sua tentativa, tremendo diante da presença real do mundo espiritual.
— O nome do mensageiro não é importante, apenas o conteúdo da mensagem. - os ecos sulcavam sua cabeça dolorida - O mortal clamou pelo auxílio do Mestre, invocando-o com as oferendas no Samhain. Como emissário Dele, confirmo seu chamado.
Novo silêncio. O rapaz sentia as veias pulsarem em seu corpo. Arriscou dizer algo, para fugir ao opressor oco sonoro.
— E-eu… Sim, eu chamei pelo Senhor dos Mortos… Eu… Queria… Quero dizer… Quero…
— Samhan sabe o que deseja, criatura de um dia. - uma voz mais fria que o inverno retrucou, calando-o - O Mestre tem ouvido seus lamentos, sabe da dor que guarda em seu coração, desde que sua alma companheira cruzou os batentes do Seu Reino.
Os olhos do rapaz encheram-se de lágrimas, que rolaram como pérolas fugidas do engaste de um colar que se arrebentou. Tocaram o solo, encharcando-o com a tristeza e a saudade que o tempo não conseguia curar. Buscou o ar rarefeito, preso na bolha, e encarou o emissário que se mantinha em indiferente silêncio eterno.
— Se sabe o que desejo, então, diga-me, o Senhor dos Mortos irá me atender? - falou com a ousadia dos que nada mais têm a perder - Ele me devolverá aquela que amo? Ou deixará que eu adentre os umbrais de Seu reino para encontrá-la?
Pairando a centímetros do chão, suspenso pela neblina fumarenta, a figura do emissário de Samhan contornou o corpo do rapaz, com a elegância que só a Morte poderia demonstrar. Em seu trajeto, as piras de chamas inflamavam-se com mais intensidade, para depois retrocederem ao estado anterior, e vultos escondiam-se nos monólitos à sua passagem, como se temessem encontrá-lo mais uma vez. Com a consciência alterada pela situação, podia ver olhos brilhantes que observavam a cena entre as sombras. Ao completar a volta, o emissário postou-se novamente diante dele e elevou um braço coberto pela comprida manga da túnica. Com esse gesto desvelou a mão, cujos dedos de ossos brancos assomaram à vista do rapaz.
— Quem atravessa os portais do reino do Mestre, em seu tempo pré-determinado pela Roda da Existência, não pode mais deixá-lo, não enquanto a volta da Roda não for completada e o fim ceder lugar, mais uma vez, ao início, ao qual todos os homens estão atrelados. - decretou sem compaixão - Sabe quais são as leis, jovem aprendiz dos Deuses, pois é um iniciado nos mistérios superiores. O caule que se rompe, nessa vida, não pode retornar para a mesma casca.
— Mas… Samhan mandou você… Apenas para me dizer isso? - a incompreensão vincava sua testa - E se Ele permitir que ela reencarne hoje, no dia dos mortos, no limite de toque dos véus, ainda nesse tempo? Ele deve ter esse poder, essa autoridade. - suplicou em prantos - Por favor… Você veio a mim, Ele me ouviu… Sabe que…
— A Roda gira, sempre. - cortou-o secamente - E não será a minha presença aqui, ordenada pelo Mestre, que mudará a verdade do Universo. - a figura cresceu, banhada por halos celestes - Vim para dizer-lhe que nem mesmo Samhan, em toda Sua onipresença, pode interferir na ordem estabelecida. O que está feito é imutável.
— Não! — berrou, de repente. O vento do lado de fora tentava romper as paredes invisíveis que aprisionavam a tensão da cena - Não… Não… Não… - sufocou em gemidos - Eu não fiz o que fiz hoje para voltar de mãos vazias. Por Brigith e por Lugh, não vou falhar! - o fogo cresceu à menção do nome dos Deuses, mas logo arrefeceu. Esse não era o tempo do reinado dos mestres da luz e da vida - Se Samhan não pode me devolver a mulher que amo, então que me dê uma forma de vê-la, estar com ela, de alguma maneira. Qualquer uma! - chorou, colocando os punhos sobre os olhos - Sei que se tirar minha própria vida para poder encontrá-la no Reino dos Mortos, incorrerei no castigo que afastará minha alma dela, pela eternidade da Roda. E se eu esperar pelo tempo correto e morrer sem que ela tenha renascido, nossos espíritos seguirão, vida após vida, nascendo e morrendo em tempos opostos, e nunca mais nos encontraremos em nenhuma existência… - ajoelhou-se, suplicante, encarando a Morte como quem vislumbra a única chance de viver — Eu… Simplesmente… Não posso suportar… - a voz era um fio seco e fino - Faço o que Samhan quiser… Qualquer coisa… Para vê-la, para estar com ela… - seus ombros caíram, derrotados, e cerrou os olhos, baixando a cabeça para o chão.
Sem saber o que dizer, ou como implorar mais, esperava pelo término do ritual. Seu pedido foi negado e quando abrisse os olhos estaria sozinho, se é que alguém pode sentir-se acompanhado na presença do emissário da Morte. Com o coração esmagado pela saudade, feito o solo amassado pelo peso das pedras do círculo, ele ergueu o rosto, aguardando pelo vazio.
O emissário de Samhan ainda estava lá, na mesma postura de antes, imperturbável como o tempo que não sente sua própria passagem. A mão ossuda alcançou o queixo do rapaz, sem que movesse o tronco, e o toque duro e frio provocou-lhe o tremor dos homens perante o divino.
— Você não tem apreço pelo mundo dos vivos, e por esse motivo meu Mestre lhe faz a proposta. - ofereceu com as vozes ecoantes. A luz da lanterna apagou-se, de súbito, a um gesto espalmado da mão ossuda, que se fechou em punho cerrado - Uma troca: assim como hoje, quando você trouxe a luz para o Samhain, guiando os mortos para o mundo dos homens pelo Umbral dos Véus, o Senhor dos Mortos pede que seja o guia da Noite do Ano Novo, de hoje em diante, pela eternidade. - a mão esquelética abriu-se e uma chama azulada brilhou na palma descarnada - Se aceitar, deverá cuidar para que o Fogo do Samhain nunca se apague, velando a chama que orientará os espíritos em sua jornada para esse mundo, ao qual se apegam tanto, e para o qual anseiam retornar a cada ano. Em troca, nessa mesma noite, poderá estar com aquela que deseja, em todas as vidas que ela tiver. - estendeu o braço em sua direção, oferecendo a luz - Agora, escolha!
Os olhos do rapaz brilharam mais que a chama espectral. Não via mais o fogo, nem sentia o frio ou mesmo ouvia o vento. O mundo dos homens não fazia nenhum sentido, nem possuía nada com o qual se importava. Isso era verdade.
O Senhor dos Mortos oferecia-lhe a eterna escravidão, mas sua alma apaixonada enxergava, ali, a liberdade.
Agarrou a mão do emissário. O fogo queimou-lhe a pele como um beijo de amor. Com esse contato, o servo de Samhan se foi, desfazendo-se em névoa fumarenta. Os fachos de luz azulada se apagaram de entre as pedras e a escuridão imperou soberana. O rapaz permaneceu paralisado por um momento, uma forte corrente de gelo e fogo percorrendo suas veias, numa alternância entre o frio e o calor. Toda sua pele parecia ter sido besuntada com bálsamo de cânfora, que pinicava.
Após um tempo incerto, abriu a mão cerrada. O Fogo do Samhain brilhou, bailando como dançarina que errava seus passos com o vento que soprava. Sem demora, desesperadamente, cobriu a chama com as mãos em concha e buscou sua lanterna. Mas todos os objetos da oferenda desapareceram com o emissário. Procurou com o olhar e encontrou sua bolsa. Dentro dela, restava uma pequena abóbora. Arrancou a tampa do fruto com os dentes, retirando a polpa e as sementes, e nele depositou a chama, com cuidado, protegendo-a. Pelos buracos nas laterais do fruto, a luminosidade fugia e a abóbora fez as vezes de uma lanterna.
Levantou-se, trêmulo por dentro, sentindo-se meio vivo e meio morto. Não mais um homem, mas alguém que vagava entre os reinos terrestres e divinos, sem pertencer a nenhum deles realmente. Tateou seu corpo, que aparentava normalidade, mas a certeza de um iniciado místico lhe dizia que, agora, era algo mais que apenas matéria.
Olhando para a chama refugiada na abóbora, as perguntas finalmente começaram a surgir. Samhan havia tido compaixão pelo seu sofrimento, ou já saberia de antemão o que oferecer? Teria sido planejado desde o início, quando recusou seu primeiro pedido? O desprezo que nutria pelo mundo dos vivos, motivado pela dor e a desesperança, faria dele alguém especial para o Senhor dos Mortos? Alguém capaz de fazer o que Seus outros emissários eram ineficientes, como conduzir o Fogo do Samhain? Ou seria insensato de sua parte questionar os desígnios dos Deuses?
— Jack?
Como quem acorda de um sonho, ou mergulha nele, virou-se com a lanterna para a entrada do círculo de pedras, buscando a origem da voz. Uma mulher o observava com a descrença marcando o belo rosto, que ia sendo substituída pela alegria desmedida. Vestida em mantos negros com um cinto laranja atado à cintura, pálida, olhos brilhantes, tinha a face daqueles que não pertenciam mais ao mundo que ele mesmo abandonara nessa noite. E para o qual, sem ela, não desejava voltar.
Correu, abraçando o corpo tantas vezes sonhado nos últimos meses. Ela também o abraçou, sem palavras. Não eram mais necessárias. Alguns instantes depois do sonhado reencontro, a chama da lanterna de abóbora brilhou mais forte, e Jack olhou ao redor. Dezenas de almas o encaravam, esperando, fitando-o com a esperança renovada. Olhou para a mulher amada, que sorria, e pegou sua mão, mais real do que poderia imaginar. O Senhor dos Mortos cumprira sua palavra e agora Jack, o Lanterneiro do Ano Novo, cumpriria a sua.
Caminharam de mãos dadas, Jack indicando o percurso para os outros no caminho ritual em direção da aldeia, orientando os espíritos.
Iluminando a noite do Samhain.
Re: Contos fantasticos !!!
FELIZ NATAL, MILDRED
Terror
- Spoiler:
- É, querida Mildred, a vida não vale realmente nada, ela é efêmera, fugaz, e no final, Mildred, no final só os vermes triunfam.
Somos torturados pela passagem dos anos, envelhecemos fisicamente, mas nossas almas continuam inquietas, jovens de tanto querer e sonhar.
E o amor, Mildred? Ah, o amor!...O amor é uma vala rasa onde depositamos nossos corações pútridos, o amor nos mata vagarosamente, como um veneno lento e de efeitos devastadores e mortíferos.
É Natal, Mildred. E agora eu sou um velho, apenas um velho.
O Natal pode ser uma data terrível para um homem velho e solitário como eu. É, minha querida Mildred, o amor e a solidão acabam enlouquecendo a mente de qualquer um, ainda mais a de um velho sonhador e louco como eu.
Eu não a tenho mais, Mildred, pois você se foi faz algum tempo, e me deixou aqui, com minha dor, com os achaques da velhice, na solidão fantasmagórica dos anos sombrios.
Parece que foi ontem quando nos conhecemos, em Olinda. Éramos turistas estrangeiros conhecendo as belezas de Pernambuco, no Brasil. Eu e você acabamos nos apaixonamos e por aqui ficamos.
Só que o tempo passou, Mildred. O tempo, o maldito tempo passou, acabando com tudo, acabando com nossos sonhos e esperanças. E veio então a velhice. Veio a doença. E veio a morte. E a morte levou você, Mildred. Para sempre, para sempre. Para bem longe de mim.
Recordações que me vem à mente. De um tempo de alegria a seu lado. De carinho. Compreensão. Um tempo que não volta mais, a não ser nos sonhos alucinados de um ancião enlouquecido como eu.
Sou um velho amargo que procura um sentido para a vida na morte. Um velho decrépito, bêbado. Um velho que não agüenta mais a solidão da velhice e da vida.
Daqui a pouco será Natal, Mildred. E o Natal é uma coisa horrível para quem vive só como eu.
Começa a chover. É uma garoa. O vento balança os salgueiros tristonhos. É quase meia-noite.
As pessoas estão em casa, reunidas. Mas eu, eu estou só. Um velho amargurado desprezado por todos. Um velho ranzinza e amargurado.
Preciso sair Mildred. Preciso ir vê-la, como venho fazendo há anos, desde que você se foi, Mildred.
A noite é escura. O cemitério fica perto de casa. Levarei a lanterna. E levarei outras coisas, também.
Ninguém me verá. Aqui é uma cidade pequena, que fica perto de Olinda, em Pernambuco. Foi aqui que viemos morar, depois que nos casamos. Ainda lembro sua frase, Mildred, sussurrada em meus ouvidos, “Eu te amo, Elliot! Viveremos felizes para sempre, aqui, neste paraíso do Brasil!”.
Nada é para sempre, Mildred. Nada.
Começo a tossir enquanto caminho rumo ao cemitério. Quando se é um velho acabado como eu, nada mais importa Mildred. Nada.
Preciso vê-la novamente, meu amor! Oh, Mildred! A vida tornou-se um fardo insuportável sem a sua presença física ao meu lado.
O peso dos anos acaba nos enlouquecendo. Um velho pode ser um louco fantasma vivo, na trilha tortuosa que o leva à morte.
Este Natal eu a reencontrarei, Mildred. Meu Papai Noel será a Morte. A Morte Noel! Mas antes eu a verei, eu a verei fisicamente, mais uma vez, Mildred. Eu a verei antes de morrer para este mundo insano.
Um velho como eu enlouquece aos poucos, na amargura de uma velhice solitária e rancorosa. Um velho como eu abraça o cadáver putrefato de sua amada retirado da tumba, na noite silenciosa e amarga. Um velho que antes de morrer, abraça a morta, Mildred, um corpo já em adiantado estado de decomposição, abraça-a como um velho necrófilo, no seu último gesto de paixão e loucura, no seu último desejo de amor, antes de morrer de velhice.
A chuva começa a aumentar. Começo a tossir enquanto começo a forçar o pé-de-cabra no jazigo. Estou doente e velho, mas ainda restam-me as derradeiras forças. E logo com a mesma ferramenta começo a abrir o túmulo. O túmulo de minha querida Mildred, morta a mais de vinte anos.
Antes de morrer para este mundo, eu a abraçarei novamente, o seu cadáver decomposto, o corpo pútrido, fétido e esquelético de meu amor, de minha querida e inesquecível Mildred, morta a mais de duas décadas!
Descansaremos em paz, Mildred! Em paz, com amor, juntos, na morte!
Re: Contos fantasticos !!!
O Pacto Macabro da Velha "Antonha"
- Spoiler:
- O caboclo Bentinho era homem de coragem. Ah, era sim! Não havia vivente neste mundão de meu Deus que botasse dúvida de sua macheza na frente das fuças dele. Não, senhor! E matador também! Sim! Pois não se criava encrenca braba com a qual o cabra da peste não resolvesse na ponta da faca. Nas suas costas já se botava por riba uma boa dezena de desafetos, que ele tinha mandado desta pra melhor. A fama do homem corria longe! Muito além das terras que faziam fronteira com a pequena cidade de Itaúba, onde ele morava, no meio do sertão agreste, contavam-se os causos de sua valentia. Era assim o caboclo Bentinho: não tinha medo nem de homem nem de bicho e, dizia-se inté, tampouco de assombração!
Bentinho e o folclore em torno de sua figura só tinham rival em outro sertanejo de igual fama, conhecido como “Tonhão dos Espíritos”. Deste, então, pouco se sabia, a não ser que tinha parte com o Demo, o Capeta, o Coisa Ruim! Vivia isolado numa casinha esturricada, feita de madeira velha e escura, sempre vestido de paletó e calça marrom, surrados pela poeira acachapante dos ventos que esmerilhavam os elementos naturais da caatinga. Mas não era Tonhão um capiau qualquer. Não, senhor! Era homem versado nas letras dos cafundós dos infernos porque a criatura falava com gente morta através dos papéis. Ô se isso lá era coisa de gente certa!
Um dia, diz que a mãe de Bentinho, de quem o marvado puxou a ruindade, bateu a caçuleta sem aviso, de supetão, coisa de coração cansado que pede sossego pelo avanço da idade! Da boca do povo corria o cochicho que a velha já ia tarde. Ninguém gostava dela porque a cobra coral carecia de freios na língua, falava mal de todo mundo. Ela derriçava o cacete nos animais e nos empregados da fazenda fácil, fácil, assim, sabe? Como quem joga lavagem pra porco. O baque da morte da santa mãezinha pro coitado do Bentinho foi grande. Ah, se foi! Ficou o homem inconformado de um tal jeito que, mal o corpo da defunta tomou gosto dos bichos da terra, veio ele ter comigo, antes da lua fazer assento naquela fatídica noite, cheia de acontecimentos sombrios que ainda me acompanham por onde vou neste sertão sem porteira.
— Vadico, quero que vosmecê me leve inté no cafua do Tonhão dos Espríto.
— Oxênte homi! Vosmecê tá de miolo mole, é? Abilolou de vez? Aquilo lá tem parte com o cão!
— Arre égua, deixe de sê abestado, homi! E eu lá tenho medo de lidá com criatura bisonha feito ele? Minha santa mãezinha finou-se num repente. Não deu tempo de nada, visse? Não chegou a dá o último suspiro, a pobre coitada! É capaz que ela teja percisada de alguma coisa lá do outro lado, né? Diz que o Tonhão é de falá com quem bate a caçuleta! Pois então?
— ô meu padim padi Ciço! Lá vou não! Cruz credo!
— Deixe de sê cagão homi! Diz que vosmecê é dos pouco que conhece o caminho inté lá. Se vosmecê não vai, vosmecê tá me fazendo uma desfeita! E homi, mesmo sendo amigo meu, que me faz uma desfeita, eu deito a faca no gorgomio sem dó nem piedade!
Pois, então, foi assim que Bentinho me deu o convencimento de ir ele mais eu, cada qual encarapitado no seu jegue pachorrento, pras profundas da caatinga, em noite escura que nem carvão. Bom... lá, depois de umas tantas horas, já de destino certo e enveredando por trilhas e atalhos, num sobe e desce da cachorra, calhou a gente de ver ao longe a morada do malacabado, filho do Tinhoso. A luz tremelicante de vela a mercê do vento, que se escapava das gretas das paredes pregueadas do casebre, batia nos olhos da gente como uma parecença de farol maligno dentro do negrume da noite! Eita visão dos infernos! A vontade que me deu era carcá dali rapidinho, feito calango que foge de caboclo morto de fome. Olhei pra peixeira escorrida ao lado do Bentinho e desisti do pensamento.
Mal invadimos a mangueira do casebre sombrio, Bentinho não contou passo. Desmontou do seu jumento raquítico e mandou pernas na direção da porta de entrada do cafua do Tonhão! Não chamou o vivente pelo nome, tampouco bateu palmas pra se fazer anunciar. Empurrou a entrada do batente e mergulhou lá dentro, emproado, que nem galo velho quando faz presença pra galinha nova! E eu, na cola dele, fui junto, não com a mesma empáfia porque sou criatura de paz, temente ao nosso senhor Jesus Cristo!
Lá estava o Tonhão bem do aboletado atrás da velha mesa de carvalho!
Cruz credo! Não conhecia o cabra de presença porque dele só ouvira falar estórias! E, de fato, como se dizia nas conversas, o homem mais parecia um cão chupando manga de tão feio. O ambiente funesto do cômodo escuro, a vela de chama tremeluzente próxima dele, mais as folhas de papéis em desalinho por todos os lados, não lhe faziam melhor a figura. De começo, após nossa entrada de supetão, ele não nos deu atenção, ou fez que não viu, não sei dizer. Bentinho tomou aquilo como uma afronta. O porquêra pigarreou forçando o barulho de engasgamento de quem puxa catarro pra limpar o gorgomio e cuspiu no chão de madeira tosca da sala. Os olhos negros da cara amassada e empalamada de Tonhão, estando de pouso nos papéis por cima da mesa, tomaram prumo e buscaram nossa direção. Só da mirada que o caboclo me deu veio um sopro de frio forte que me arrepiou todo o corpo, dos pés a cabeça! Bentinho não tomou tento de apresentar-se, foi logo intimando:
— Tonhão, comi muita poeira nestas estradas pra mode de vosmecê me dizê cumé que tá a minha santa mãezinha, que bateu a caçuleta não faz nem cinco dias! Quero sabê se a pobre tá percisada de alguma coisa?
A vosmecê que me ouve, não sei direito como explicar o acontecido. Tenho pra mim que Tonhão já devia de tá de conluio com o Sacripanta, em meio d'algum tipo de ritual, porque assim que Bentinho deu intimação, ele começou a rabiscar a folha de papel num apressamento desembestado, os olhos se fugiram pra não sei d'onde e, por pouco, não me borrei nas calças, quando ouvi a voz espremida e roufenha, da velha Antonha, mãe de Bentinho, saindo da boca da criatura molambenta!
— Fio... meu fio... Bentinho... meu menino... Eu já tava te esperando! Tô nas profunda dos inferno e não tô gostando nadica de nada desse diacho de lugar! Vosmecê tem que me tirá daqui, meu fio!
— Oxênte, mas como mãezinha?
— Meu fio, meu menino, já fiz um “combinado” aqui com o Belzebu, só que vosmecê tem que me ajudá!
Naquele exato momento, Tonhão dos Espíritos começou a se estrebuchar. Vixe Maria, mãe do céu! O homem ficou feio! As mãos que bolinavam o papel pareciam querer abandonar o serviço da escrita exigido pelo Capeta. Deu dentro das minhas idéias, assim, no meu jeito de pensar, que o traquinas malacabado tava num esforço pra mode de se livrar do encosto maligno... mas não tava conseguindo, não! Daí, vosmecê, caboclo atencioso nessa minha contação do fato assucedido, vai botá dúvida no que vou te contar agora. Mas te adianto que não sou cabra dado a mentiras e nem invencionices, não! Pode acreditar! Por riba da cabeça do Tonhão começou a se formar uma nuvem empanturrada, meio escurecente, tal qual se assucede no começo das tempestades brabas, quando no raro, desabam por aqui! E dentro da sala, veja vosmecê! É isso mesmo! Uma nuvem dentro da sala, homem do céu! Vosmecê acredita nisso? Mas espere que o pior mesmo vem por aí. De dentro da nuvem começou aparecer um mundaréu de criaturas medonhas que, decerto, vinham das profundas. Um arrepio me cutucou forte a espinha de baixo pra cima, que nem choque elétrico!
Nossa Senhora dos Desvalidos, Tonhão tinha aberto a porteira dos infernos!
As criaturas bisonhas se misturavam as carnes, ou estavam ligadas umas nas outras: homens, mulheres, morcegos, esqueletos humanos, bichos que não dei conta de atinar. Todos mal formados. Um por riba do outro, o outro por riba de um. Olha, era uma misturança que fazia inté mal pros olhos do vivente. Nunca vi daquilo, nem em pesadelo, se vosmecê quer saber. E no meio daquele mafua das profundas, entre almas e demônios, num é que apareceu as fuças da velha Antonha, estampada no bucho do Bode Preto. Vixe Maria, mãe do céu! Foi nessa hora que, por pouco, quase arriei os intestinos ali mesmo! Quis me escafeder dentro do pretume da noite, mas meus gambitos fizeram birra! De lá de riba a cobra coral mandou recado pra Bentinho botando minhoca na cachola dele.
— Fio, o Belzebu me aprometeu que se vosmecê sangrá, esfolá, matá de morte bem matada, pra mais de 30 cabras, ele vai me adevolvê pra vida de novo! Olhe só, meu fio! O gramuião me faz vivê de novo! Ele bota minha alma no corpo outra vez!
— Mãezinha, a senhora tem certeza?
— Oxênte, se não tenho! E tem de sê pra ontem, meu fio. Pode começá com o Tonhão aí, esse fio d’uma égua parideira, que não tá fazendo gosto d'eu proseá com vosmecê, fio. Mata ele! Mata! Cutuca a peixeira velha no bucho desse empalamado! Mata ele!
Não deu tempo de nada. Foi como o pensamento. Bentinho, esporeado que nem galo de briga, correu com a peixeira na mão mergulhando por riba da mesa e, num corte de banda, sangrou o gorgomio do Tonhão dos Espíritos, que emborcou de cabeça, virado de pernas pro ar, o desenfeliz. Bentinho não parou o serviço encomendado, não! O sangue velho espirrou pra tudo quanto foi canto. Eu vi! Vi sim! Vi com os olhos que esta terra há de comer! Enquanto Bentinho golpeava o corpo estrebuchado do outro estatelado no chão, lá de riba, dentro da nuvem, as criaturas dos infernos se agitavam, se moviam, parecendo um amontoado de cobras ao redor do Tinhoso, que levava a cara da velha Antonha pregueada no bucho. Ela se ria alto, feliz, feito passarinho preso que foge da gaiola, a maldita. E, de repente, os olhos negros dela caíram por riba de mim. Ai, ai, meu Senhor Jesus Cristo. Senti que a coisa ia ficar mais preta ainda! Um sorriso murcho da boca chupada da velha me estremeceu o prumo e quase desmaiei.
— Bentinho, meu fio! Esse aí já se foi. Larga dele! A alma já desencarnou e tá vindo pra cá! Agora, pega aquele estrupício lá, ó. Vadico é fuxiquero! Estripa esse disgramado, fio d'uma porca, tumém!
Daí pra diante pouca coisa posso dizer. Não sei o que foi que deu no meu amigo Bentinho, meu compadre, meu parceiro de traquinagens da infância. Ele se levantou num pulo e virou-se pra mim. Não disse palavra, mas os olhos dele diziam: vosmecê vai morrer cabra! Eu, que não sou bobo nem nada, não pedi explicação. Não, senhor! Tomei o vão da porta escancarada pra noite e deitei cabelo pra fora do casebre do Tonhão! Deixei o meu jegue na mangueira e “garrei” o mato da caatinga, sem olhar pra trás. Enquanto corria desesperado, caindo e levantando, ainda podia ouvir o riso da velha Antonha azucrinado os meus ouvidos.
Ninguém, que sobreviveu àquela noite, esquece da tragédia. Não se comenta, mas ninguém esquece. Corri até a cidade. Fiz o maior barulhão que já se tinha visto na história daquele povo. Eu berrava alucinado nas ruas empoeiradas de Itaúba, que Bentinho vinha estripá gente de bem pra resgatar a velha Antonha dos infernos. Muitos fugiram, outros não acreditaram, no entanto, um grupo se armou de facas e armas de fogo pra esperar o lazarento nos limites fronteiriços da cidade. Foi assim que vimos o Bentinho, acompanhado da velha Antonha, desenterrada, apodrecida e amarrada no meu jegue. Quando ele desmontou do seu jumento estropiado, a faca rombuda e os olhos do cabra tomaram brilho dentro da noite. Não fizemos muxoxo. Começamos a atirar! Os animais de carga, e a velha também, desempacotaram-se no chão, mas Bentinho, não! O homem tava de corpo fechado, pelas graças do Capeta, de uma tal maneira que nem bala entrava na carcaça do vivente! Ele berrou, correndo pra cima de “nóis”. Eita que foi um Deus nos acuda, um desespero sem tamanho! Era gente espalhada correndo pra tudo quanto era canto! Quem corresse mais, chorava menos, porque Bentinho ia passando a faca em todo mundo. Era no pescoço, nas costas, nos braços, nas pernas... vixe, foi uma gritaria que se ouviu de longe. Na confusão, o caboclo que Bentinho não lanhava uma boa ferida pro resto da vida, morria estrebuchado, segurando as tripas no meio da caatinga. Olha esta cicatriz aqui nas minhas fuças. Não nasci zarolho, não! Foi ele quem fez!
Bem... vou dar o “causo” por terminado porque não tenho mais o que dizer. Esta estória que eu te contei já vai há muito, sabe? Jamais voltei a botar os pés lá pras bandas de Itaúba, mas estou bem informado do que acontece naquele “eitão” de terra! É verdade! O Belzebu, o Demo, o Coisa Ruim, o Bode Preto, faz questão de me deixar inteirado a quantas anda o combinado dele com a cobra coral. Em algumas noites, escuras que nem carvão, me bate um encosto maligno, fico em transe, assustando os meus amigos, meus filhos e parentes. Nestas horas, sou tomado pelo sentimento de desespero de alguém, vítima de Bentinho, que não conhecendo a região acaba estripado e abandonado pra morrer sozinho dentro da noite, em meio a caatinga. Então, vejo claramente, pelos olhos do agonizado, esvaindo-se em sangue, o casebre isolado e lá no vão da porta, alumiada pelas velas tremeluzentes, alcanço com a vista boa, escorada no batente, a figura apodrecida da velha Antonha sorrindo seu sorriso mucho e me dizendo:
— Falta pouco, Vadico! Falta pouco
Re: Contos fantasticos !!!
A PONTE DO DIABO
Terror
- Spoiler:
- O medo é um sentimento de viva inquietação ante a noção de um perigo real ou imaginário. Ele tem seus próprios caminhos dentro da alma humana, e acampado diante daquela ponte, eu me perguntava o motivo do calafrio que sentia cada vez que olhava para ela. Era uma antiga ponte de pedra, com cerca de duzentos metros de vão sobre o penhasco. De onde estava podia avistar as horríveis esculturas de demônios alados entalhadas na rocha, a cada cinco metros. O problema é que essa ponte era vigiada por uma divisão do exército alemão. Durante dias estudamos a situação, embrenhados no mato. Sempre que tentávamos atravessá-la nos tornávamos alvos fáceis para a artilharia inimiga, pois ficávamos em campo aberto. Além disso, o tempo estava contra nós. Sabíamos que a intenção dos alemães era nos retardar ao máximo até a chegada de reforços, não podíamos nos demorar ali por mais tempo.
Fui incumbido por nosso comandante, o capitão Serrado, de encontrar uma alternativa para a travessia, antes que fosse tarde. Nos embrenhamos na mata, eu e dois soldados, e após meia hora de caminhada avistamos uma pequena cabana. Ela parecia deserta, mas logo que nos identificamos um homem saiu com os braços erguidos, seguido por duas mulheres. Ao constatar que éramos brasileiros, ele suspirou e nos recebeu alegremente. O soldado Afonso, paulista e descendente de italianos, entabulou uma conversa animada com ele, enquanto a mulher e sua filha nos serviram uma caneca de café.
— Pergunte a ele se existe outro caminho para Fornovo - pedi ao meu soldado.
Afonso fez a pergunta em italiano e pude perceber pela resposta que aquele era o único caminho num raio de cem quilômetros.
Fiquei desanimado com a notícia. Acabamos o café e nos colocamos de pé, quando o homem chamou Afonso e cochichou algo em seu ouvido.
— Sargento, ele contou uma história escabrosa: a ponte foi projetada na idade média a mando do homem mais poderoso da região. Diz a lenda que ela caiu três vezes, então o construtor foi chamado pelo proprietário e recebeu um ultimato, se a ponte tornasse a cair ele morreria. Desesperado, o homem fez um pacto com o demônio: sua alma em troca da ponte nunca mais cair.
— Bolas, isso é apenas uma lenda, Afonso - Interrompeu o soldado Ribeiro.
— Talvez, mas o fato é que a ponte está aí desde a idade média e isso não é pouco tempo...
Olhei para o homem, que aguardava em silêncio.
— Pergunte o que aconteceu ao construtor.
Afonso ouviu a resposta e traduziu:
— Pulou da ponte, certa noite. Nunca encontraram o corpo. Desde então as pessoas a chamam de A ponte do diabo e evitam o lugar. É uma espécie de maldição. Ele vive aqui há cinqüenta anos e já viu a ponte ser bombardeada várias vezes durante a primeira guerra e resistir a três terremotos.
O italiano disse mais alguma coisa no seu idioma.
— Segundo ele, nós podemos atravessá-la sem medo pois os alemães não conseguirão nos acertar.
— Esse sujeito é louco! - exclamou Ribeiro - Eles jamais errariam um tiro fácil como aquele, só se fossem cegos...
Entendi então o estranho sentimento de medo que me afligia! Desde o princípio notei que havia algo de apavorante com aquela ponte: um pacto fora firmado ali, o lugar era maldito.
Sempre tive o estranho poder de perceber o que ninguém mais percebia. Aquilo me assustava, mas em diversas ocasiões já me salvara a vida. O próprio capitão Serrado conhecia meu segredo, e respeitava minhas opiniões pois reconhecia em mim o dom da visão sobrenatural. Vez por outra conversava comigo acerca de desenvolver esse dom, mas sempre tive medo que pudesse tomar proporções inimagináveis dentro da minha vida, então preferia ignorar e deixar aquilo adormecido dentro de mim. Mas algumas vezes o dom era maior que o meu medo de manifestá-lo, e vinha à tona como uma espécie de premonição, algo tão forte que nem mesmo eu conseguia controlá-lo.
— Pergunte se há algo mais.
Afonso obedeceu. O homem olhou para a mulher, empalideceu ligeiramente e tornou a falar.
— Sargento, existe outra lenda a respeito da ponte: quem a atravessa durante a noite não deve olhar para trás ou jamais chegará ao outro lado.
O italiano parecia impressionado com a própria história.
— Mio bambino... - balbuciou.
— O filho dele, sargento... - explicou Afonso - Certa noite voltava do povoado. A família ouviu os gritos, mas quando chegou à ponte encontrou apenas sua bolsa no chão. Aconteceu há três anos e o corpo jamais foi encontrado. Acredita-se que tenha caído da ponte, como vários outros pelos séculos afora...
Fiz questão de apertar a mão do italiano ao me despedir. Ele não sabia, mas estava salvando a vida de centenas de homens.
Contei o que ouvimos ao capitão. Ele me olhou preocupado:
— O que você acha dessa história?
— Bem, capitão - ponderei - parece apenas uma lenda local... Mas creio que existe algo assustador neste lugar. Não gostaria de ficar aqui por muito tempo.
O capitão levantou-se e pôs-se a andar pelo barracão:
— É difícil crer que os alemães errarão um tiro fácil como esse. Estaremos desprotegidos, em campo aberto. Se eles derrubarem a ponte, dificilmente alguém escapará da queda livre...
— Eu sei, capitão.
— E mesmo assim acredita nessa história?
Tive medo de parecer ridículo.
— Sim, capitão, eu acredito.
Ele fez silêncio enquanto pensava, por fim disse-me:
— Convoque os homens. Partiremos antes do amanhecer. E que Deus nos proteja dos alemães... E do diabo.
Às duas da manhã começamos a desmontar o acampamento, tomando o cuidado de não nos expor aos alemães. Passei a tropa em revista e expliquei o que pretendíamos fazer. Percebi o medo estampado no rosto de cada um, mas eram valentes e sabiam que tínhamos que sair dali. Não escondi nada deles, mesmo porque meus companheiros de incursão já deviam ter-se encarregado de espalhar a lenda sobre a ponte do diabo para toda tropa. Ao ser indagado sobre os alemães, respondi para não se preocuparem com eles, apenas deviam lembrar-se de não olhar para trás em hipótese alguma.
— Haja o que houver, não esqueçam: jamais olhem para trás até atingirmos o outro lado, entenderam?
— Sim, senhor! - foi a resposta uníssona.
O final da madrugada veio nos encontrar frente a frente com a ponte. Parado adiante da tropa, observei a movimentação no lado alemão e percebi que eles já estavam à postos, aguardando nosso movimento, talvez não acreditando que estivéssemos dispostos a cometer tal loucura. Meus olhos se dirigiram então para a ponte, duzentos metros de rocha sobre o desfiladeiro. Parecia impossível que ela resistisse intacta ao ataque alemão. Estávamos desafiando uma lógica irrefutável baseados numa simples lenda sem nenhuma comprovação histórica.
— Loucos - sussurrei - Um bando de loucos, isso é o que somos!...
Mesmo assim, levantei meu braço direito e dei a ordem:
— Atenção pelotão... Avante!...
Alguns fizeram o sinal da cruz, outros apertaram seus amuletos, mas todos começaram a marchar cadenciadamente rumo à ponte. Quanto mais nos aproximávamos dela, mais meus pelos se eriçavam, até que meu coturno tocou sua borda e a primeira bala de canhão alemã passou apenas a cinco metros de nós. À partir daí, uma saraivada de balas de canhões começou a fustigar tudo ao nosso redor. Sentíamos vontade de correr até um abrigo que nos colocasse a salvo, mas continuávamos a nossa marcha inabalável rumo ao outro lado.
Os alemães se desesperaram ao perceber que não conseguiam atingir o alvo. Uma mão invisível parecia fazer com que as balas se perdessem desfiladeiro abaixo.
Eu suava frio. Com o canto dos olhos observava as estranhas criaturas de pedra que pareciam olhar diretamente para nós, talvez à espreita de algum vacilo...
De repente, como num pesadelo, vi uma das horrendas criaturas se desprender da ponte e voar para algum ponto atrás de mim. O meu coração pareceu saltar da boca: teria sido uma ilusão? Olhei para Afonso, que marchava ao meu lado:
— Você viu aquilo?...
Ele não entendeu, parecia mais preocupado com a artilharia pesada.
— Aquilo o quê?
Do lado direito, outra criatura se desprendeu da rocha e voou para o meio da tropa, seguida de uma terceira.
— Meu Deus, o que está acontecendo?...
Então começaram os gritos.
Meu sangue congelou nas veias. Eram gritos pavorosos, lançados por homens que estavam acostumados a enfrentar a morte, mas não conseguiam encarar a face do demônio. Eu tremia de medo e a cada passo que dávamos um novo grito se erguia na madrugada.
— Não parem de marchar - eu berrava - E não olhem para trás, não olhem para trás...
Com o canto dos olhos, vi mais e mais criaturas se desprenderem da maldita ponte e voarem para o meio da tropa, batendo as asas e grasnando como demônios. Um dos soldados passou por mim desesperado, tentando chegar ao outro lado, perseguido por uma das criaturas. Ele gritava como louco, sem acreditar no que via, até que ela o encurralou. O soldado subiu na mureta, deu dois passos num balé impreciso e se precipitou ponte abaixo com um grito horripilante.
Confesso que em minha vida nunca senti tanto medo quanto naquela noite! O caos tomou conta da tropa, homens se precipitavam no desfiladeiro enquanto balas de canhão passavam zunindo sobre nossas cabeças. Atirávamos nas criaturas, mas era como se elas não existissem. Em dado momento a marcha cadenciada se transformou numa correria desenfreada rumo ao outro lado da ponte. Não tenho vergonha de admitir: corremos pelas nossas vidas naquela noite.
Atravessamos a ponte sem que um único tiro alemão nos atingisse, e no entanto, tivemos tantas baixas quanto se os tivéssemos enfrentado cara a cara. Dos trezentos homens que iniciaram aquela travessia, apenas duzentos e quarenta conseguiram completá-la. Foram duzentos metros que custaram a vida de sessenta soldados, entre elas a do meu amigo Afonso. Quando já estávamos a salvos do outro lado, abrigados da artilharia alemã, olhamos para trás e vimos as criaturas demoníacas, todas elas, de volta ao seu lugar de origem, como se nunca tivessem se movido dali. Tratamos então de nos afastar o mais depressa possível daquele lugar amaldiçoado.
Até hoje tenho pesadelos com aquela madrugada de terror. Prosseguimos nosso caminho e tomamos Fornovo dos alemães, fazendo milhares de prisioneiros. Enfrentamos outras batalhas até o final da guerra, em muitas das quais o medo foi meu companheiro inseparável, mas nunca, em toda minha longa vida, tornei a sentir uma sensação tão apavorante como a que senti ao atravessar a ponte do diabo.
Re: Contos fantasticos !!!
CORPO SECO
Terror
- Spoiler:
- Uma súbita e quente rajada de vento levantou com ímpeto os particulados áridos e as folhas avulsas daquele vasto campo à beira da estrada. Embora marcante, a ação da ventania não se mostrou duradoura, não tardando para que a calmaria voltasse a reinar nas cercanias do distante pomar.
Nenhuma anormalidade se mostrava evidente nos numerosos e diversificados exemplares frutíferos ali expostos. A exceção se fazia valer numa alta e frondosa mangueira, cujos frutos jaziam no chão. A exuberância em degrade verde e dourado era assaltada por uma ação invisível e avassaladora, a qual tomava para si o viço marcante dos frutos, entregando a eles, em contrapartida, um revestimento acinzentado e opaco, um frágil castelo elevado aos céus pelo delicado beijo de uma simples corrente de ar.
A árvore, de tronco espesso e imponente, sinalizava ter sido dominada pela mesma força devastadora que aniquilara, com extrema facilidade, os contornos maduros, os quais eram, até então, exibidos com orgulho em suas extremidades. Semelhante à maneira repentina e destrutiva com a qual as ardentes lufadas de ar dominaram os limites locais, o agente oculto tratou de retorcer e curvar os robustos galhos da mangueira, empalidecendo e fazendo cair toda a verdejante folhagem, comprometendo e secando toda a sua estrutura, reduzindo-a a um monte cinzento, triste e morto.
A manifestação sobrenatural e inexplicável não era fruto da vontade da natureza, pois esta, justa e sábia em sua essência, há muito tratara de expurgar de suas entranhas a abominação representada pelas linhas malditas daquela criatura. A terra, revestimento sagrado dos mortos, não admitia tal presença entre seus grãos.
O amaldiçoado tentava se resignar, mas era difícil convencer a si mesmo de que sua existência era um estorvo para o equilíbrio entre os planos. Sua estada não era bem-vinda nos reinos de luz, muito menos tolerada nos níveis mais baixos das trevas, suas atitudes o transformaram num condenado sem direito a descanso.
Vencido mais uma vez, ele ergueu seu ressequido corpo das cinzas, as quais ele mesmo fora o responsável pelo surgimento. Com pesar iniciaria uma nova jornada, nenhum ser vivo o tolerava por muito tempo. Ele buscava abrigo nas cascas das árvores porque seu caminhar era tortuoso e dolorido. Por mais que soubesse que sua permanência entre o vegetal não fosse de grande valia, ainda assim, ele preferia tal investida a ter de se deslocar pelo descampado, a não ser que tivesse um bom motivo para fazê-lo. Uma razão que o atraísse como a força de um poderoso imã.
Sua pele enrugada e sedenta pressionava o esqueleto desprovido de carne e músculos. O atrito produzido pelo movimento de seu corpo proporcionava a mais lancinante das dores, algo insuportável até mesmo para alguém de sua natureza. Ele arfava conforme caminhava, nenhuma língua ornava a escuridão putrefata de sua boca, um vão cravejado por filamentos cerrados em substituição aos antigos dentes. Nenhuma gota de saliva se apresentava naquela cavidade, apenas um pó enegrecido e fétido, o qual era expelido em profusão, contaminando o ar ao seu redor.
Um amontoado de ossos revestido por uma pele em eterna decomposição. Danação e penitência num incessante vagar sobre uma superfície que não o suportava. Ingrata busca pela redenção de seus pecados.
Olhos há muito não possuía. Por conta disso, precisava se orientar pelo olfato, sentido traiçoeiro que lhe acendia a penúria pela míngua de víveres. Ele se arrastava em busca do perfume irresistível, a tal força que o impelia.
A praça estava repleta, os populares iam e vinham por conta de seus afazeres. O vazio em seu estômago era um espaço infindável. Muitos o viram e caíram, vencidos por incomparável choque. Outros o encontraram e fugiram. Inúmeros o contemplaram e gritaram. Mas ele só precisava de um, e o agarrou. O ser humano sob seu jugo tinha sonhos, como ele mesmo tivera um dia, mas diferentemente da garota em seus braços, ele os suprimiu, deixou que fossem consumidos pelos atos mais vis que um vivente poderia cometer.
Assim se tornou um corpo seco. Agora usava a rigidez de seus dedos para rasgar de forma ávida a carne da indefesa vítima, fazendo brotar uma fonte rubra de nutrientes e dor. O frenesi o impulsionou a cravar os aguçados fios de sua boca na suavidade crua daquela pele. Com movimentos apressados arrancou um bom pedaço do apetitoso tecido, engolindo-o sem mastigar.
Da mesma forma que a terra não acolheu sua carcaça amaldiçoada, como o céu e o inferno rejeitaram sua presença, o alimento não encontrou morada em seu corpo. O caminho inverso fora inevitável e a carne regurgitada. Ele gritaria se tivesse voz. A balbúrdia à sua volta era crescente, inúmeros e repetidos impactos o acometeram, ele desejava o toque frio da morte, mas já estava morto, apesar de não ser merecedor do descanso eterno.
O vozerio era insuportável, sua dor era insuportável! Frases sagradas e de libertação foram proferidas, água abençoada foi lançada sobre seu corpo. Ele rogou por sua mãe, a razão do seu martírio, pediu por seu perdão, implorou por alívio e paz.
Uma luz incandescente o envolveu, a multidão se afastou tomada pela surpresa e pelo medo. Seu corpo se curvou em posição fetal, seus membros se dobraram e mesclaram ao tronco. Logo, os contornos evidentes da criatura não passavam de uma estrutura ovalada e seca. Sem demora um estampido se fez ouvir e uma cortina de fragmentos particulados foi lançada ao ar. Com o dissipar da fumaça, os incrédulos olhos testemunharam o completo desaparecimento do ressequido corpo. Nos corações daquelas pessoas ficou a certeza de que a completa superação de tão incomum experiência tardaria a ter o mesmo fim.
Muito longe dali, um vento abafado e repentino produziu um espiral ao redor de uma árvore. A poeira suspensa no ar se uniu e moldou as linhas de um corpo, deixando claro que, para alguns pecados, não há possibilidade de redenção.
Re: Contos fantasticos !!!
O Filho Morto
- Spoiler:
- Quando Luiz morreu, minha esposa ficou em choque por dias. Talvez eu não tenha sido tão afetado quanto ela pelo simples fato de que, quando algo como isto ocorre, alguém tem de manter o equilíbrio. Se todos desabam, que rumo resta a ser tomado? Ou talvez eu apenas não tenha assimilado a desgraça, fingindo que tudo continuava como antes.
À noite, enquanto Tatiana permanecia no quarto, sedada, eu me levantava e ia até o quarto de Luiz, ler histórias para ele dormir. Apesar da cama vazia, eu tinha a plena sensação de que ele estava ali, rindo das fábulas, as pálpebras pesadas, lutando contra o sono.
A culpa que Tatiana alimentava não era de todo infundada, Luiz estava com ela quando tudo ocorreu, cruzavam a rua, o sinal aberto para os carros, mas Tatiana jura que não havia perigo. Luiz deixou cair a chupeta, sua mãozinha se soltou da de Tatiana, e ele voltou para buscá-la.
Nenhum pai deveria passar pelo que passei, ir ao necrotério e ver o pequeno corpo do filho estraçalhado, o crânio esfacelado, rosto desfigurado, quase nenhum osso intacto, após ter sido atropelado por um ônibus. Nenhum!
E tantas memórias surgem naquele momento, entre aqueles segundos em que a porta se abre e, num relance, já se pode ver o corpo embalado num saco preto, e torcendo para que, quando o médico abrisse o zíper, fosse o filho de outro, fosse uma outra criança de cinco anos, dominado por este egoísmo que nos faz esquecermos de que as outras pessoas também sofrem. Mas não era o filho de outro, não era um Pedro, nem um João, era o meu Luiz, quase irreconhecível com o rosto ocultado pela crosta de sangue coagulado. E as memórias nos afogam, retornando ao primeiro instante, Tatiana me ligando no celular, choro de alegria na voz, mal articulando a simples frase “Você vai ser papai!”, o coração batendo mais forte e, contagiado pela alegria dela, choramos juntos pelo telefone, e como nos maravilhávamos ao vermos aqueles borrões do ultra-som que insistiam em dizer que era o coraçãozinho do bebê, o pintinho dele, ele chupando o dedo, e a angústia do parto, todo aquele sangue saindo da minha mulher, e aquela criatura cabeçuda, enrugada, chorando e tremendo, e as recordações das primeiras noites, nós embasbacados, postados ao lado do berço, admirando o ser que havíamos concebido, e o primeiro sorriso, as primeiras palavras, o engatinhar, os primeiros passos. Tudo encerrado ao se abrir o zíper, Luiz morto; não, não era o filho de outro.
Tatiana foi para a casa da mãe. Eu estava encarregado da triste tarefa de retirar os pertences de Luiz de casa, dá-los a alguém, jogá-los fora, qualquer coisa. Mas não consegui, ao abrir a porta, vi Luiz sentado na cama, pernas balançando, olhinhos brilhando:
— Vamos brincar, papai?
Passei a tarde brincando com Luiz, mesmo sabendo que o corpo dele estava na casa funerária, sendo preparado para o velório, mesmo sabendo que Tatiana estava devastada e que adoraria estar comigo agora, brincando com nosso fiho. Como eu poderia me livrar do quarto de Luiz, se ele ainda estava lá?
Tranquei o cômodo, todos os móveis dentro.Minha esposa retornou para casa, ainda sob influência de calmantes. Porém, durante a sedação, ela resmungava:
— Afonso, você está ouvindo? Você está ouvindo o riso de Luiz?E eu acarinhava os cabelos dela, aquiescendo:
— É claro que sim, Tati, ele está no quarto dele, brincando.
Pois o cadáver de Luiz já havia sido sepultado, mas ele ainda estava conosco. O que era uma grande alegria para nós, mais do que mero consolo.
Aos poucos, Tatiana se recuperou e, ao invés de ir sozinho contar histórias para Luiz, agora Tatiana me acompanhava. Ficávamos até de madrugada, mesmo após Luiz ter adormecido, sentados na cama dele, admirando-o, agradecidos pela segunda chance que Deus nos havia dado.
No entanto, numa tarde, ao chegar em casa do trabalho, Tatiana estava sentada na cozinha, pernas unidas, mãos entrelaçadas, olhar desesperado.
— O que aconteceu? – perguntei.
— Algo não está certo... – Tatiana hesitava – algo não está certo com Luiz.
— Como assim?
Sem muita confiança, ela me pegou pelo braço e me levou até o quarto do nosso filho. Eu abri a porta, mas o clima alegre, pueril, que costumava predominar havia desaparecido. O quarto estava na penumbra, um cheiro de carne apodrecida, e Luiz de pé, voltado para a parede, num dos cantos.
— Algum problema, Luiz? – gaguejei.
Ele se virou e todo meu corpo começou a tremer; aquele menino não era o Luiz que eu conhecia, pelo menos não aquele ao qual contei fábulas nas noites anteriores. O rosto estava magro e ressecado, o olhar fundo, os braços e pernas contorcidos, o crânio afundado.
— Vocês precisam me deixar ir embora – ele disse.
— Mas você não pode – gemi – Você é o nosso filhinho.
Sem sustentação dos membros fraturados, ele cambaleou até a cama e se deitou. Fiz menção de me aproximar, para cobri-lo com o lençol, mas ele me repeliu com um olhar de ódio.
— Não, – ele disse – eu quero ir embora. Meu verdadeiro pai me chama.
— Quem é o seu verdadeiro pai? – indaguei.
Os olhos de Luiz miraram um ponto ao pé da cama, instintivamente, eu também olhei pra lá e, por um segundo, tive a impressão de que um vulto ou sombra estava de pé ali. Recuei para a porta.
— Mas não queremos que você vá, meu filho – Tatiana choramingava.
— Eu preciso – e, ao dizer isto, Luiz se virou da cama, insinuando que pretendia dormir.
Depois desta noite, eventos mórbidos passaram a nos atormentar. Até aquele momento, nosso filhinho nunca havia deixado seu quarto, mas, agora que ele queria partir, Luiz fazia questão de incomodar nossa rotina. Certa vez, enquanto eu tomava banho, ouvi um risinho do outro lado da cortina, e uma silhueta que se aproximava. Abri uma fresta, Luiz me encarava, tapava a boca, ria.
Noutra vez, Tatiana cozinhava, o som duma gaveta se abrindo. Era Luiz, faca afiada na mão, apontando para minha esposa:
— Posso te ajudar, mamãe?
Mas o pior foi quando eu e Tatiana fazíamos amor, ela sobre mim, olhos fechados, minhas mãos nos seios dela, e meus pêlos todos se arrepiaram, senti a presença de alguém e avistei, nas sombras, num canto, o crânio afundado de Luiz. Brochei e, ao mesmo tempo, tomei uma resolução:
— Tatiana, precisamos nos livrar deste menino!
Naquela mesma noite, fomos ao quarto do Luiz e o informamos:
— Você nos pediu para o deixarmos partir. Pode ir, quando quiser.Mas a resposta do nosso filho foi enigmática:
— Não é tão simples, papai. Vocês têm de me deixar ir.
Não entendemos. Desde a mudança de comportamento dele, tudo que mais desejávamos era que ele fosse embora, deixasse-nos em paz. Mas ele não ia, continuava nos pregando sustos, espionando-nos, abrindo gavetas e portas de armários.
A herança católica de Tatiana falou mais alto, ela correu para a igreja que não freqüentava há anos e implorou auxílio ao padre. Este veio, passeou por nosso apartamento, requisitou entrada no quarto de Luiz, por fim, emitiu seu parecer:
— Não vejo nada de extraordinário aqui, minha filha. Isto não é obra de demônio.
Mas, mesmo assim, sob súplicas de Tatiana, ele concordou em benzer nossa casa, espargindo água-benta por todos os cômodos.De nada adiantou, Luiz continuava lá e, agora, zombava de nossos esforços para nos livrarmos dele. Ele estava muito transformado, pouco recordava aquele menino doce que havia sido nosso filho, era apenas um ser diabólico, uma criatura deformada e irônica.Após o padre, realizamos uma sucessão de profissionais na área da paranormalidade, um médium espírita, um pai-de-santo, um pastor, mas ninguém conseguia nos ajudar.
Na TV, vimos um programa no qual aparecia uma mulher que dizia falar com os mortos, conversou ao telefone com telespectadores e revelou informações impressionantes sobre eles. Esta entrevista nos convenceu a ligarmos para esta mulher e a chamarmos para nos auxiliar com Luiz.
Ela veio, entrou sozinha no quarto e saiu dele assustadíssima.
— Eu conversei com seu filho – ela nos disse – com o ser que um dia foi ele, quero dizer. Ele quer partir, mas vocês não deixam. Luiz está acorrentado a esta casa.
— O que devemos fazer? – eu me desesperava.
— Não é nada simples. Enquanto o corpo e a memória de Luiz estiverem vivos, ele não partirá. Façam o que eu digo e tenho certeza de que tudo ficará bem.
Seguindo as indicações da médium, dirigi-me a uma casa de ferragens; em casa, Tatiana estava incumbida de esvaziar o quarto de Luiz, queimar as roupas deles e todos os objetos e brinquedos que lhe eram caros.Para não ser apanhado, esperei anoitecer, pulei o muro do cemitério e, auxiliado por uma lanterna, encontrei o túmulo de Luiz. Com uma picareta, derrubei a abertura inferior do túmulo, retirando os tijolos. Avistei o caixãozinho dele e já podia puxá-lo para fora.
Ainda com a picareta, abri a tampa do caixão, revelando o esverdeado corpo apodrecido de Luiz, porém, eu estava tão acostumado com este aspecto dele, pois era assim que ele se manifestava a nós, que nem me impressionei. Abracei o cadáver e o tirei do esquife, jogando-o sobre um lençol, no qual o enrolei.
Reinseri o caixão vazio no túmulo, lancei o corpo embrulhado no ombro e me apressei a deixar o cemitério, arremessando Luiz por sobre o muro, secundando-o sem demora.
Dirigi por horas, até chegar a uma estrada de terra. Na madrugada, enveredei-me por uma trilha no matagal. Quando atingi um local que considerei seguro, estacionei e removi o cadáver do porta-malas.
Este seria o momento mais difícil, seguir passo-a-passo as prescrições da médium. Utilizando-me duma agulha para couro e um grosso barbante, costurei a boca de Luiz; em seguida, com um serrote, separei a cabeça do corpo; por fim, embebi o defunto em querosene e ateei fogo.Levei muito tempo alimentando as chamas, até que os restos mortais se tornassem irreconhecíveis. Cavei uma cova com quase um metro de profundidade e sepultei Luiz.
O sol estava nascendo.
Voltei para casa arrebentado. Cheguei e fui direto para o quarto do Luiz, completamente vazio, as cortinas abertas, um local bem diferente, renovado, luminoso. Tomei um banho e fui me deitar, ronquei até, pelo que Tatiana me contou. Sentíamos bem, um peso havia sido erguido de nossas costas, prometíamos a nós mesmos que nos esqueceríamos de tudo e, talvez, um dia, até riríamos do que aconteceu.
Assistíamos televisão no quarto, ouvi um ruído vindo de fora. Tatiana segurou minha mão.
— O que foi isto, Afonso?
— Não sei – levantei-me, fui até a porta e a abri um pouco. Espiei, não vi nada, mas o ruído continuava, no quarto que havia sido do Luiz.Na ponta dos pés, caminhei até lá e entrei. O terror me dominou, absurdamente, incompreensivelmente, o quarto de Luiz estava todo reconstruído, os móveis, os brinquedos, a decoração, e, sentado no chão, estava um ser carbonizado, costuras na boca e a cabeça se equilibrando sobre o pescoço.
A criatura me fitou com olhos ensangüentados e murmurou por entre as costuras:
— Por que você não me deixa ir, papai?
Desde então, somos obrigados a conviver com esta aberração. Mantemos o quarto sempre fechado, fingimos não percebermos quando Luiz nos espia, ou passa correndo, derrubando algum objeto da sala. É difícil, mas somente assim conseguimos manter a sanidade e continuar nossas vidas.
Este é o nosso segredo, meu e de Tatiana, e, às vezes, me angustia a certeza de que Luiz só sossegará quando eu e ela também estivermos mortos. Somente assim, ele poderá partir.
Re: Contos fantasticos !!!
QUANDO DEUS NOS ABANDONA
- Spoiler:
- As vigorosas batidas, que vinham da porta da cabana, deixaram o coração de Thérèse em sobressalto. “Quando Deus nos abandona - pensou Thérèse -, Lebourreau nos assoma.”
— Quem bate? – perguntou Thérèse, embora bem soubesse que Lebourreau, com a lanterna em punho, lançava a sua sombra maligna sobre os umbrais da pobre choupana.
Thérèse apertou ambos os filhos contra os seios, sentido-lhes a respiração quente e irregular, típica dos moribundos devastados pela peste. E, arrastando-se como podia, recolheu-se ao ângulo mais remoto da parede. “Quando Deus nos abandona - pensou Thérèse -, Lebourreau nos ilude.” O vento, que se esgueirava pelas frestas de adobe, trouxe consigo a voz calma e melódica do velho mago:
— Deixe-me entrar. Trago-lhe boas-novas!
De Lebourreau dizia-se, em toda Valônia, que era um bruxo astuto e poderoso. Ouvira da mãe que aquele ente medonho habitava cemitérios desolados, onde há séculos praticava sortilégios. Amiúde comentava-se que, nas noites de plenilúnio, o mago reunia-se com as bruxas e, de corpos nus, realizavam o sabá. “Quando Deus nos abandona – dizia-lhe a mãe – ele vem e nos ludibria!”
Há dois dias e o pequeno Jean-Pierre corria livre pelos campos, gozando a imensidão das planícies e a luminosidade intensa do verão. Mas viera a peste, tão súbita quanto cruel, e, com o seu beijo nefando, cobrira o corpo do garoto de pústulas negras e aquosas, cujo odor desagradável entranhava-se no ar como se arauto da morte certa. E Cosette, com suas mãozinhas febris, não arredava dos seios maternos. Mas a menina decompunha-se ainda viva. Do corpo pequeno e desconforme fluíam emanações mefíticas, tão nauseantes que somente a mãe podia suportar. Como era avançado o estado de degeneração da criancinha! A enfermidade avançava célere naquele corpinho disforme. Cosette, silenciosamente, agonizava.
— Pobre Cosette – disse a mãe, beijando-lhe o rostinho cravejado de pústulas e de grosseiras ulcerações.
— Deixe-me entrar. Ainda há esperanças – o vento trazia a voz melódica do velho bruxo. – Trago-lhe uma esperança que o seu Deus esqueceu-se de lhe ofertar.
Jean-Pierre também morreria. Assim como aqueles cruzados que retornaram de Jerusalém. Mais algumas horas e todas as ulcerações eclodiriam num ruído surdo, salpicando, à pressão incontrolável da febre sempre crescente, o líquido asqueroso na atmosfera impregnada de humores deletérios. O corpo, lacerado por ilhas de carne viva, precipitar-se-ia para uma tonalidade roxa escura e, então, viria a inexorável decomposição da pele, da carne e das entranhas. E Cosette, agora, sangrava por todos os orifícios. Também – e principalmente – pela abertura do olho que lhe faltava. O outro era morto e oboval, projetado para fora como o de um camaleão. Cosette nascera cega, corcunda e coxa. Pobre Cosette, condenada pelo Senhor a deambular desgraciosamente pelas planícies pedregosas da Valônia, fazendo de sua muleta uma bengala, e, de ambas, as sua sina, enquanto, curvada ao peso da corcova, estendia as mãos implorando migalhas dos viajantes. Não! Melhor assim. Melhor que o bom Deus ceifasse, desde já, um futuro tão hediondo!
— Entre – respondeu, finalmente, Thérèse.
A porta da choupana se abriu. O vento gemeu e rodopiou nas úmidas paredes de adobe. O mago entrou. Trazia numa das mãos uma lanterna que lhe iluminava a sobrepeliz carmim e o capuz escarlate. O luzeiro iluminou-lhe as faces cavernosas. Thérèse tremeu de pavor. O mago continuou, com sua voz mansa, que se lhe escapava das ranhuras de uma fileira de dentes amolados:
— Tenho uma proposta.
— Leve-me. Mas cure os meus filhos.
— Não, não a quero. Quero Cosette. Quero a pequena.
— O que ganharei em troca?
— Jean-Pierre viverá.
Thérèse ponderou. Entregou a pequena.
— Decisão sábia – redargüiu o homem com gravidade. E acrescentou, piscando maliciosamente um olho de coruja:
— De que lhe serviria uma criança aleijada, se sobrevivesse?
Após uma pausa – uma longa e meditativa pausa –, o bruxo concluiu, prazerosamente, com as garras em riste para Cosette:
— Hoje sinto uma grande fome. Arranjar-me-ei bem com ela.
O mago mergulhou a criança nas rubras abas de sua sobrepeliz e saiu. Atrás de si ficou o farfalhar monótono de uma capa escarlate, sibilante ao vento que se decompunha em silêncio e se fazia silêncio, enquanto a solidão, coroada pelo desespero, ficava irremediavelmente para trás. Então, nesta mesma solidão, que era a imensidão de um casebre, um arrependimento cruciante reverberou na alma de Thérèse. Cosette! A pequena e indefesa Cosette! Não seria justo que a peste a levasse, com seu corpinho repulsivo e disforme, para os campos sepulcrais? Não seria melhor assim? Se é que esta era a vontade de Deus, haveria por que se rebelar? Cosette já estava morrendo. Morrendo irremediavelmente. Mas, entregar Cosette aos dentes anavalhados daquela coisa imunda... Saciar a sede e a fome de tão abjeta criatura com as vísceras e o sangue inocente de sua filha... “Quando Deus nos abandona, Lebourreau vem para nos tentar e iludir...”
— Meu Deus, o que eu fiz? – Bradou Thérèse, na fria escuridão de seu antro.
Thérèse arremessou contra a noite. Ganhou os campos e as planícies, clamando pela filha. Atirou-se violentamente aos bosques, caminhando sobre as sendas que se abriam ao fluxo luzidio do luar. E, quando finalmente amanheceu, e já retornava a casa, corroída pela densidade de um remorso seco e cáustico, Thérèse vislumbrou, ao longe, algo oscilar ao sabor da brisa matinal. Era um trapo. Era o corpinho de sua filha. A garota fora empalada num galho que, inclinado, deitava reverência ao chão. Traspassada pelo dedo arguto de um arbusto, Cosette trazia a garganta dilacerada por dentes tumultuosos, e exibia, mais abaixo, o ventre rasgado por unhas longas e pontiagudas. Restos de entranhas, revolvidas e despedaçadas, estavam derribados ao solo forrado de folhas mortas. Mas, algo de surpreendente acontecera! O corpinho de Cosette ganhara uma nova conformação. Dois belos olhos azuis, que poderiam perfeitamente enxergar, agora reluziam na face miúda e bela. A corcova desaparecera e a perna atrofiada recompusera-se em substância e perfeição.
—Lebourreau a consertou, antes de matá-la. Lebourreau ajeitou a minha menina só para devorar-lhe o sangue e algo doce de suas entranhas. Pobre Cosette! – Thérèse balbuciou, enquanto a pequena mão de Cosette, impelida talvez pelo vento, ou mesmo por uma força sobrenatural, tão obscura quanto extraordinariamente absurda, buscava, pela última vez, o calor do seio materno. Thérèse Gritou, ao sentir que a mãozinha do cadáver comprimia tenazmente o seu peito, ávida de carinhos. Sentiu que as pernas arqueavam. Que a mente refluía. Que a boca beijava o chão. Quando voltou a si, depois de um longo pesadelo – que, àquelas alturas, lhe sabia aos lábios como belos sonhos –, seguido de um desfalecimento negro e espesso, já anoitecia.
Foram os gritos de Jean-Pierre que trouxeram Thérèse de volta à consciência. Sim, Jean-Pierre clamava, não muito longe. Gritava pela mãe, Jean-Pierre. E como gritava! E como eram saudáveis os seus pequenos pulmões, antes impregnados de peste e purulência! Jean-Pierre estava vivo. Escapara milagrosamente à morte certa. Lebourreau cumprira a sua promessa... “Quando Deus nos abandona, Lebourreau...”
Pôs-se, então, a mulher a correr. Percorreu as sendas com os olhos enevoados por lágrimas tão densas que afundavam nas órbitas e se recusavam a cair. Por um momento, esqueceu-se completamente de Cosette. Teria Jean-Pierre só para si. Teria Jean-Pierre curado, livre da febre e das pústulas nauseantes. Vivo de novo. Novamente vivo e saudável!“
...Lebourreau... nos ajuda!”
Ao chegar à clareira, viu que Jean Pierre equilibrava-se, como um bêbado, à porta da choupana de adobe. O garoto escapara à peste. Mas...
O garoto caiu.
Thérèse parou. Um choque. Seus pêlos se eriçaram como se atraídos por uma auréola magnética. Uma auréola que os santos recusam e que os demônios impõem. E um frio violento, vindo de suas trôpegas entranhas, sacudia-lhe o corpo e enredava-lhe a alma infeliz, enquanto ouvia o garoto gritar.
“De que lhe serviria uma criança aleijada, se sobrevivesse?” – a voz do mago fulminou a mente de Thérèse, que foi ao chão, com o corpo dominado por longos e dolorosos espasmos.
— Mãe! Mãe, estou cego! - bradava Jean-Pierre.
Thérèse, antes de contorcer-se na lama, vira que o olho direito de Jean-Pierre já não mais existia. E, com pavor, reparara que o olho esquerdo do pequerrucho, sujo e embaçado, saltava-lhe da órbita qual um ovo grotesco.
— Eu não posso andar! – urrava desesperadamente o menino, irremediavelmente coxo e esmagado por uma corcova medonha, uma intumescência que lhe vergava o dorso deformado e lhe estufava o peito à semelhança de um pombo monstruoso.
À semelhança da pequena Cosette.
Re: Contos fantasticos !!!
MEL VERMELHO
Terror
- Spoiler:
- Tu aí que me olhas... é... tu mesmo, com esta cara expressando repugnância. Achas que estou assim, deste jeito, por que eu quero? Não, senhor! Dizem os mais velhos que antigamente ser vampiro tinha lá o seu “glamour”. Dizem que a verdadeira aparência de um vampiro se escondia por detrás de uma excelente e sedutora estampa. Tudo sustentado, é claro, pelo sangue vermelho e apetitoso dos incautos da noite. Mas agora, olhando para os escombros da cidade lá embaixo, não vislumbro absolutamente nada do que me contaram das antigas histórias. Nunca tive o prazer de beber sangue vermelho e consistente... até hoje!!!
Quero te contar, em poucas palavras, o que me acontece. Quero te explicar, antes que eu abandone este mundo nojento, o que me levou a subir este velho edifício na tentativa de buscar abrigo justamente aqui. Gosto muito deste lugar. É o meu local predileto de meditação e, infelizmente, por ironia do destino, torna-se-á, esta marquise, meu cadafalso: o instrumento inglório de minha execução. Sendo tu, uma criatura alienígena totalmente isenta da deterioração execrável deste planeta, bem podeis estar se perguntando: o mundo do jeito que está, tomado por vampiros, não é melhor para você? E aí eu te respondo: é claro que não. O mundo infestado pela população de vampiros, onde “os humanos” de sangue vermelho e quente contam-se nos dedos de uma das mãos, é uma merda. Sim, senhor. Um grande e enorme amontoado de bosta.
Sem mais delongas, preciso te explicar como os fatos se sucederam até o presente momento, porque já vejo no teu semblante a tua impaciência. Tu estás com pressa também por averiguar as artérias entupidas desta Necrópole. Não há muito o que ver, eu te garanto. Somos o que somos: criaturas em decadência que se entredevoram sem o prazer de antes. Não vou me ater em como foi que a população se transformou no que somos hoje, porém ofereço-te um vislumbre do que se pretende fazer para se retornar aos velhos e bons tempos.
Meu nome é Gorki, um vampirinho qualquer, sem eira nem beira, a quem foi incumbido de salvaguardar quatro “pessoas” de sangue quente. O clã a qual pertenço vê como única saída para a nossa salvação o estímulo da reprodução humana. Eles, “os humanos”, precisam se multiplicar novamente para que venham a ter no futuro a mesma serventia que tinham para nós no passado: vasilhames acondicionados do mais puro mel vermelho! O líquido precioso e adocicado que nos enche de prazer, nos revigora e nos embeleza como verdadeiros príncipes, costumam dizer os vampiros mestres. Sem eles, “os de sangue vermelho e quente”, estamos condenados a uma existência medíocre e sofrida, absorvendo migalhas que se escondem nos esgotos... uhg... ratos são horríveis. Quando eles nos faltam, os roedores, somos obrigados a sugar os companheiros mais fragilizados, mas nem de longe, dizem os mais velhos, o líquido espesso, escuro e frio que corre em nossas veias se compara ao vermelho morno de outrora.
Mas deixe-me continuar... pois bem, Os Arkons, um clã que pouco se importa com o nosso destino, uma vez que, se nada for feito, iremos nos destroçar mutuamente até que o último fique de pé, descobriu estes raros espécimes humanos escondidos nos recônditos mais profundos de um velho "bunker" antinuclear. Os membros mais fortes de meu clã, os Dracônius, guerreiros de boa cepa, muitos deles vampiros experientes de 200, 300 anos de idade, decidiram proteger os casais de “humanos” para serem levados à outra cidade, onde se lhes poderia oferecer condições tranquilas de acasalamento. A produção, como tu deves bem saber, é lenta, porém temos a longevidade dos anos a nosso favor. O que nos falta é paciência para esperar os frutos deste investimento. Delegaram-me, portanto, a missão de protegê-los com a minha própria vida, se preciso fosse, enquanto a luta entre as duas facções estivesse em andamento.
Os quatro “humanos” foram acorrentados à parede. Ficamos protegidos numa das salas do abrigo subterrâneo. Nem sei direito como tudo foi desembocar para o incidente que me condenou. A mulher mais nova era linda, sabe? No entanto não foi a beleza física dela que me atraiu. Não! Não foi, não. Foi uma sensação que nunca havia sentido antes até porque, cumpre registrar, também nunca havia ficado perto de uma criatura superior de sangue quente. E posso te garantir: foi a experiência mais inebriante que tive em toda a minha vida. Tu podes até não acreditar, mas segui os conselhos do velho Iago, o mestre vampiro-mor: “fique longe deles e não os olhe demoradamente”.
E assim o fiz.
Desviei os olhos deles o tempo todo, apenas ouvindo a ladainha das duas mulheres amedrontadas. De início, nos primeiros minutos, nada senti, mas à medida que o barulho do embate lá fora ia diminuindo, um cheiro irresistível e inefável começou a impregnar o ar! Huuumm... o que era aquilo? Minha boca, de repente, encheu-se d’água, minha língua, enegrecida pelo gosto dos ratos pestilentos, começou a estalar incontinenti, meu estômago revirou-se agitado. Acredite! Toda a estrutura minguada das carnes e ossos que me sustentam vibraram intermitente no compasso da batida do coração da “humana” mais próxima de mim. Voltei-me hipnotizado para ela.
E o que vi me deixou atônito, quase sem ar!
O rosto, os braços, as pernas, o pescoço, partes do corpo daquela mulher, não cobertas pela roupa desbotada, ganharam uma tonalidade bem mais clara e transparente! Luminosa eu diria! Sim! Luminosa! Como se... como se... talvez a descrição não seja a mais apropriada... bem... como se a criatura tivesse uma lâmpada interna acesa dentro de si! Pude ver com clareza, tenhas certeza disso, destacando-se na luminescência da pele, as centenas e centenas de ramificações que compunham a rede de veias por onde fluíam o tal líquido precioso de que tanto ouvira falar: o puro mel vermelho! Sim! Te afirmo e não faço meias palavras. Eu podia vê-lo fluindo graciosamente dentro daquela fêmea. Fico emocionado só de falar. Pela primeira vez na vida, porque sou jovem e já nasci vampiro, pude presenciar semelhante fenômeno. Tenho certeza que esta falta de experiência selou meu destino.
“Os de sangue quente” perceberam o meu estado de ebulição. Começaram a se agitar tentando se desvencilhar das correntes. Tolos. A mulher, a quem encarava sem perder o foco, expressava pânico em seus olhos arregalados quando percebeu que a baba do desejo me escorria abundante pelos cantos da boca. Quis impressioná-la. Arreganhei selvagemmente os meus dentes pontiagudos, sentindo-os projetarem-se de forma pouco comum. Emiti meu urro de guerra! Ela saltou contra a parede assustada. As pernas lhe faltaram e ajoelhou-se implorando pela vida. Foi engraçado ( rs, rs, rs ). Não senti pena, nem remorso. Senti fome. Muita fome.
E ataquei!
Sempre soube que um dia eu me saciaria do mel vermelho. Muitas vezes, aqui mesmo, nesta marquise, folheei antigas revistas onde via imagens de vampiros charmosos sugando o pescoço de lindas mulheres entregues docemente aos seus encantos. Ficava sonhando, sabe? Ficava imaginando degustar vagarosamente aquele momento. No entanto, devo reconhecer que não fui nem um pouco delicado com as minhas primeiras vítimas “humanas”. O companheiro dela quis protegê-la jogando-se de encontro a mim. Não tomei conhecimento. Minhas garras afiadas cortaram-lhe a garganta de um único golpe. Ele cambaleou para trás alguns passos e desabou no piso encardido do quarto. Tentou desesperadamente estancar a hemorragia. Imbecil! O cheiro e a visão do sangue avermelhado invadiu as minhas narinas de forma avassaladora. Destruiu a minha razão! Investi minhas necessidades em cima da mulher. O terror dela foi tanto que não chegou a gritar. As cenas artísticas de um vampiro charmoso sugando a presa nem me passaram pela cabeça. Não. Foi uma bocada só. Firme. Certeira. Enfiei todos os meus dentes na carne macia e suculenta, apertei e retirei um naco do pescoço dela cuspindo-o em seguida para o lado. A carótida espirrou o mel vermelho a metros de distância e abocanhei o ferimento novamente bebendo tudo em fartos goles pulsantes.
O gosto do mel vermelho? Humm... Tu não tens a menor noção. Foi indescritível. Ficaria horas e horas aqui falando sobre o prazer que percorreu todo o meu corpo.
E tu pensas que me contentei apenas com a mulher? Não! Queria mais, apesar de estar saciado. Queria experimentar o sangue dos outros para ver se o gosto e a textura mudava de um corpo para o outro. Como te disse: perdi completamente a razão. Matei todos!
Assim que me dei conta da besteira que havia feito sabia que estava condenado. “Os de sangue quente” são raríssimos de encontrar. Tanto isto é verdade que, apesar dos parcos 25 anos que tenho, nunca vira um deles pessoalmente. Por isso, não pensei duas vezes em sair rapidamente do abrigo nuclear e fugir da cidade que tanto gosto. Quando cheguei à superfície para ganhar a direção da fuga, o combate mortal entre os clãs se dava próximo à entrada do abrigo. O mel vermelho que me encharcava o corpo chamou atenção de todos por causa do cheiro, levado até eles pelos ventos que ainda correm frouxos esta noite. Não ousei olhar para trás! Fugi tal qual um rato costuma fugir para não ser devorado por um vampiro esfomeado. Eles desistiram da luta, até porque não havia mais pelo que lutar e me vieram no encalço.
É isso.
Consegui chegar até aqui incólume. Subi rápido como uma flecha todos estes andares. Tranquei a porta que dá acesso a esta marquise e sei que os mestres vampiros, depois de tentarem arrombá-la, desistiram e fizeram o mesmo comigo. Pregaram a porta pelo lado de dentro. É a minha punição. Agora, eles apenas aguardam o meu fim.
Tu estranhas porque, a despeito de meu desespero, percebes em meus lábios um tênue sorriso, não é? É engraçado mesmo a minha situação. Sempre ouvi atentamente as histórias de minha raça quando éramos poucos sobre esta terra. Ouvi histórias sobre nossas qualidades, nossos pontos fracos, nossas habilidades e os mitos daí decorrentes. Contam alguns, em tom nostágico, que podíamos nos transformar em morcegos e alçar vôo para onde quiséssemos. Ahhh... que bom pudesse eu fazer isso agora. Mas, qual o quê! Tenho medo de alturas e tal habilidade, sei perfeitamente, é uma quimera. Por outro lado há coisas em nossa natureza que são imutáveis. A luz solar, por exemplo, ainda é um instrumento de morte extremamente cruel e doloroso para nós.
Por isso, olhes atentamente para além daqueles edifícios de arquitetura pontiaguda. Tu estás vendo? É a partir de lá que daqui a alguns minutos os primeiros raios de sol irão transpor as espessas nuvens negras radioativas e irão varrer, em velocidade lenta e gradativa, as artérias desta cidade despedaçada. Vou morrer do pior jeito. Todos nós temos muito medo de morrer assim. Talvez seja esta a única coisa que os membros de nossa raça sempre invejaram nos “humanos”. Onde eles viam uma imagem bela ao nascer do dia, nós sempre vimos à morte e a condenação eterna de buscar a escuridão.
Portanto, é chegada a hora. Já começo a sentir as horríveis queimaduras. Afasta-te de mim e olhes para o outro lado porque o que me aguarda não é um espetáculo bonito de se ver...
********************
Naquele fatídico início de manhã conta-se que não se soube com quem Gorki falava. Não se tinha certeza se ele falava realmente com um alienígena, vindo de uma galáxia distante ou se a sua mente, deturpada de tanto sugar sangue de rato, travava conversa com um amigo imaginário. O único fato certo em toda esta história é que naquela manhã os ventos fortes espalharam as cinzas de Gorki por sobre a cidade decadente e deserta. O vampirinho sem eira nem beira tornava-se apenas cinzas.
Nada mais que cinzas ao vento!
Re: Contos fantasticos !!!
I R I N A
Terror
- Spoiler:
- Parte I
( Século XVII )
As trombetas do inferno proclamam os anjos pagãos, enquanto na terra os homens se digladiam como leões ferozes. Essa realidade fere de morte os que crêem na esperança de um futuro melhor.
O som de uma gaita quebrava o silêncio da madrugada. Uma chuvinha fina e tediosa gelava o ar rarefeito da noite. Som de carruagens gritava distante se confundindo com a melodia lúdica. Um denso nevoeiro cobria a cidade com um manto pesado. Estávamos em Londres no ano de 1665.
Da rua de beco escuro emanava um cheiro fétido das sarjetas que corriam de um lado a outro empestando todo o lugar. Alguns burgueses dormiam em suas mansões o sono dos ricos senhores da nobreza londrina e nas tavernas escuras e fedorentas o vinho barato impregnava o ar e os corpos mal vestidos. Era o ano da peste, a doença que matou milhares de pessoas por toda a Europa. Londres teve uma das mais devastadoras epidemias da peste negra. O cheiro forte de carne queimada era trazido pelo vento. O fogo devastava as casas no intuito de dizimar a doença. Alguns se apegavam aos seus bens sem pensar no risco que corriam com uma doença tão letal. No ar trazido pelo vento o cheiro forte de carne em decomposição invadia todos os recintos da velha Londres. E ali, naquela parte da cidade o cheiro de carniça se misturava com a realidade humana. Aqueles que se aventuravam noite adentro perderam a sensibilidade e a razão de sentir e discernir o certo e errado. Alguns humanos levam o vício acima de qualquer realidade da vida. A música foi se esvaindo lentamente até o silêncio profundo. Um homem saiu cambaleando da taverna caindo prostado no esgoto. Estava bêbado e tinha o corpo coberto por pústulas. Da boca entreaberta escorria um liquido amarelado. Engasgado pelo próprio vomito ele deu um último suspiro e ficou de bruços com os olhos vítreos fitando o nada. Uma sombra derreava lépida pelas paredes dos velhos casarões cobrindo como um manto o corpo caído no chão. Num segundo nada tinha restado, ficando apenas o silêncio profundo da noite. Ao amanhecer, a desolação do lugar era de uma decadência total, o pandemônio alucinava. Enquanto algumas pessoas gemiam, outras já mortas eram colocadas em carroças puxadas por cavalos capengas. Aquele lado da cidade era habitado pela horda de bêbados e prostitutas. A parte mais vil de uma Londres totalmente desgastada pela doença. O céu plúmbeo hipnotizava. O cenário surreal era de uma fragilidade mórbida. As pessoas não ligavam para os cadáveres jogados nas ruas como se fossem animais.
Uma mulher caminhava entre os mortos guiada por um impulso incontrolável. Com um lenço no nariz passava por cima dos cadáveres procurando não tocá-los. Os corpos inchados pela decomposição rachavam supurando um líquido com um odor insuportável. Alguns não tinham olhos, apenas um buraco negro. A mulher pisou em algo e sentiu um estalo seco. Levantou o pé e viu dois olhos esmagados como dois ovos fritos. As aves de rapina estavam rejeitando comidas, pensou ela, com um sorriso torto nos lábios. Já tinha visto muita coisa na vida, mas não aquilo, era demais para seu estômago já fragilizado de fome. Ouviu um gemido débil, parou, e ficou silenciosa a espreita. Um novo gemido mais forte levou-a a um amontoado de corpos e ela viu uma criança atravessada por cima de um cadáver. Segurou a criança pelos braços enrolando-a em pano encardido. Saiu se esgueirando por entre os cadáveres e entrou no bosque sumindo na noite. As árvores encorpadas balançavam seus galhos como se dançassem uma música silenciosa. Quando a mulher adentrou na floresta todos os caminhos se fecharam e as árvores adormeceram. Não se via nenhum balançar de galhos, mas tinha-se a impressão de que estavam as espreitas de algo. A mulher caminhava por entre as árvores parecendo voar com a criança aconchegada ao colo. Numa clareira, entre árvores seculares estava uma cabana tosca. Por todo o lugar sentia-se um cheiro forte de folhas aromáticas. A mulher adentrou a cabana e colocou a criança numa cama de vara. A velha tinha cumprido sua parte. Descobriu seu corpinho enrolado em trapos, era pele e ossos. No peito esquerdo tinha pequenas manchas, passou as mãos calejadas e sentiu a saliência. Olhou curiosamente para as manchas escuras como se tivessem sido incrustadas num bordado perfeito e imaculado. Estavam desenhados nitidamente três números 666. Tinham sido feitos a ferro em brasa. A mulher sentiu o corpo arrepiar. Fizera o que tinham mandado, estava cumprindo ordens, mas de quem? Dia anterior tinha recebido em sua cabana uma figura estranha. Um homem com uma capa preta escondendo o rosto com um capuz. Era uma presença diabólica, ela tinha sentido uma energia poderosa vinda daquele homem. Não entendera porque tinha sido procurada, por que ela? Era apenas uma velha que vivia de suas ervas curando os animais no bosque. Estava cansada, os anos nada lhe deram de bom. Esse cansaço se estendia aos seres humanos que evoluíam drasticamente com suas maldades. Os animais ela podia confiar, curar suas feridas, acariciar. Ela sabia que eles entendiam sua linguagem. Era uma mulher que nasceu com uma visão muito além do tempo. A velha sabia que daquela criança nada podia esperar de bom, via o mal estampado em seus olhos verdes riscados de um amarelo quase fogo. O choro da criança despertou-lhe atenção, segurou-a de encontro ao peito embalando-a. Sentiu uma energia tomar conta de todo o seu corpo. Quase tonta, caiu sentada num banco tosco, rezando para não jogar a criança no chão. Aconchegada no corpo da mulher a menina dormia silenciosamente.
— Celeste – disse uma voz suave, disfarçada de um ódio arrasador.
A mulher olhou para a porta entreaberta da cabana e gelou de medo. Em pé, estava o homem da capa preta com a cabeça coberta com capuz.
— Celeste – repetiu ele. - Não tenha medo. Você foi à escolhida para tomar conta dessa criança. Com o tempo muita coisa vai acontecer.
Um vento forte entranhava pelas frestas da cabana adormecendo seus ossos. Quando deu por si o homem tinha sumido ficando na cabana um cheiro forte de podre. Ela nunca tinha sentido aquele cheiro antes. Nem nos pântanos do bosque empestado de corpos humanos jogados depois de mortos pela peste. Colocou a criança na cama e correu para fechar a porta. Estaria livre daquele homem? Sentiu que não. O choro forte do bebê chamou-lhe atenção. Estava com fome, pensou a mulher. Enquanto alimentava a criança observava seu rosto oval, quase oriental. A luz da noite incidia em seus cabelos negros. Os fios pareciam dançar entrelaçados. Celeste fechou os olhos e continuou a alimentar a pequena que permanecia com os olhos fechados como se dormisse tranquilamente. Não estava dormindo, a mulher sabia. Estava à espreita como uma cobra. Seu corpo gelado aconchegado ao seu desconstruía sua energia. Estava fragilizada e com medo. Com o tempo aprendeu a gostar daquela criatura estranha, mas nunca mais os inocentes animais da floresta se aproximaram de sua cabana. Somente um respeitava a menina e vinha ao seu encontro rodeando-lhes as pernas. Cobras de todas as espécies rodeavam sua cabana como se sentissem o cheiro daquela criatura. Celeste não tinha medo. Ficava de longe observando as cobras enroscadas no corpo da menina que parecia conversar com elas num linguajar estranho. Na adolescência seu corpo começou a mudar. Uma escama grossa foi revestindo seu corpo como uma segunda pele. Celeste não ligou, estava acostumada com algumas coisas estranhas que vinha há anos observando na menina. Ela a chamava de menina, mas já tinha lhe colocado um nome. Irina era um nome bonito, o nome de sua mãe. Por esse motivo olhava a menina com outros olhos. Quando a chamava pelo nome via-lhe a lembrança do passado. Foi assim que aprendeu a gostar dela e não perceber o quanto aquele ser era diferente e misterioso. Os anos lhes foram dolorosos. Não ia mais a cidade como antes. A peste tinha dizimado muita gente. No ar tinha ficado o cheiro da morte que prevaleceu por muito tempo. Os pântanos engoliam os corpos como cavernas do inferno. O cheiro forte de podre secou as árvores ao redor. O que ficou foram árvores mortas como zumbis a balançar ao vento. Celeste ouvia a noite gritos horripilante vindo do fundo do pântano. Lamentos de dor entrecortados de pranto. Ficava admirada observando a garotinha não esboçar nenhuma curiosidade. Era como se não estivesse ali, fazendo parte daquele mundo cruel. Uma noite, sentada a porta da cabana esperava Irina que embrenhara bosque adentro com suas amigas cobras. Novamente aquela voz sussurrante disse-lhe ao ouvido:
— Celeste – você cumpriu sua missão – A garota não voltará mais para casa. Irina é um belo nome. Disse o estranho soltando uma gargalhada cruel.
Depois o silêncio, ficando no ar o barulho do vento balançando as árvores.
Depois daquela noite, Irina nunca mais apareceu.
Parte II
( Século XXI )
Somos humanos, enquanto o ódio não desconstroi a nossa realidade.
Somos humanos, aptos aos pecados originais que desvirtuam a alma.
Pecados originais? Somos humanos e habita uma fera dentro de nós.
Irina caminhava cabisbaixa. A noite fria entranhava em seus ossos e o tempo congelava seus pensamentos. Ia de encontro ao nada. Sua vida naquele momento era um cofre fechado com seu segredo esquecido nos recôncavos de sua memória. Nem sabia onde estava. Aquele elo que une a sensibilidade à realidade do mundo estava embotado em sua memória. A sua volta prédios escuros pareciam sombras a sufocá-la. O vento forte castigava seu corpo como chicotadas. Queria apenas um buraco para se esconder. Ficar lá, embrulhada nos pesadelos que machucavam muito mais do que o vento cortante e frio.
Como viera parar ali? – Não sabia responder. Tudo aconteceu instantaneamente abrindo um buraco negro a seus pés. Voltou os olhos para o local onde se encontrava.
Aquele lugar estranho era diferente do seu mundo. Altos prédios escuros e cinzentos quase chegando ao céu. O silencio aterrador foi quebrado pelo barulho de sapatos na calçada molhada. A audição apurada captara a respiração cortante gerada pelo medo. O vento chicoteava como música sem rima. Ficou rente a parede e esperou.
Num salto felino postou-se à frente da criatura agarrando-a pelo braço.
— O que quer? - Perguntou-lhe Irina, imobilizando-a de encontro à parede.
A escuridão da noite sombreava o rosto estranho. Num relance descobriu um poder de ver através da escuridão. Seus olhos eram como raio X. Penetravam iluminando a figura trêmula a sua frente. Era um ser estranho, pensou ela. Tinha os cabelos escuros, olhos azuis riscados de medo. A pele branca tinha uma nuance amarelada. Soltou-o com ímpeto e ele caiu ao chão. Ficou imaginando onde estaria, que mundo seria aquele onde o ser tinha a pele tão diferente da sua. Irina tinha a pele escamosa com um brilho azulado que mudava de acordo com os ciclos. Os olhos rasgados, sem pelos, brilhavam de curiosidade. A testa ampla completava um rosto simetricamente oriental. O que sobressaia em sua figura quase humana eram os cabelos negros e encaracolados que iam até a cintura. Temporariamente passava por ciclos de mudanças. Como a cobra mudava de pele. Tinha algumas semelhanças com o ser rastejante, o corpo gelado e uma percepção apurada quando atacava o inimigo, sem nenhuma emoção. Lembrou-se do estranho e viu-o ainda sentado no chão tremendo de medo. Observou nitidamente seu corpo e notou que não tinha muita diferença do seu. Duas pernas, dois braços, pés e mãos. Sorriu porque sabia que era completamente diferente do ser a sua frente. Aproximou-se do homem e segurou-lhe os braços levantando-o num safanão. Aquele ser tinha na cabeça quadrada tufos de pelos plantados desigualmente formando espaços vazios. Colocou a mão em seu peito e sentiu um barulho chacoalhando como se fosse sair do peito. Ela não era assim, ninguém do seu mundo era assim. O coração era apenas um sustentáculo para deixar seu corpo vibrante. Como as cobras seu coração era ínfimo. Mas em compensação seu cérebro era mais desenvolvido do que qualquer ser da terra. Do seu peito saiu um ronco sibilante e ela soltou o homem com raiva. Não mataria aquela criatura indefesa. Precisava descobrir porque estava ali. Depois pensaria no resto.
Voltando os olhos para o homem notou que já não estava no lugar. Aproveitando seu descuido tinha fugido. Não era assim tão importante – pensou.
Saiu caminhando nas poças de chuva quando ouviu um barulho estridente. Ela conhecia aquele barulho. Um sino enorme badalou três vezes. 3 horas da manhã. Tinha sido colocado na torre da igreja, daquelas igrejas antigas construídas século atrás. Ela sentiu uma atração demoníaca pelo lugar, uma energia que vinha sem controle fazendo-a seguir em frente. Construído numa época onde o estilo barroco predominava, as torres arredondadas eram sobrepostas umas sobre as outras como conchas. Usou os olhos faiscantes para adentrar na parte interna da igreja. O teto tinha o formato redondo onde sobressaiam delicados arabescos no estilo rococó. A contradição era visível, pois os dois estilos criavam uma atmosfera ao mesmo tempo maliciosa e pura. Anjos pagãos com suas bochechas rechonchudas e rosadas tinham na cabeça coroas de flores e uma expressão libidinosa. Nus, estavam envolvidos por uma serpente gigantesca que tinha na boca um enorme pássaro branco. Irina sabia que aquela ave significava a paz. Aquela paz que o mundo precisava. Naquele instante compreendeu o que viera fazer ali. Logo ela? As lembranças como flashes eram introduzidas em sua mente completando os espaços vazios. Vinha sofrendo alguns lapsos de memória. Estaria sendo testada? Sim. Fizera algumas coisas que não agradara ao diabo. Tirando sua memória, ele estaria tirando seu passado. Isso não poderia acontecer. Seu mundo ficava nos recôncavos subterrâneos da terra: o inferno. Por que o demônio queria a paz? Pensou ela com raiva. Sua missão era outra, provocar o caos. Agora estava ali para lutar contra o mal. Bem, o diabo também era egocêntrico. Tinha seus dias de bondade. Mas ela sabia que ele não jogava para perder, algo de ruim ele ia tirar de tudo aquilo. A terra estava encoberta de uma energia cinzenta, negativa. Pessoas faziam pacto com o demônio sem imaginar que no final seriam ludibriadas. O inferno fervilhava de almas penadas. Havia um descontrole no reino do diabo. Almas diabólicas estavam tentando provocar uma rebelião. Ele não queria ficar sem seu reino. O tempo estava mudando e a humanidade ficando rebelde e mais inteligente. A era da informática estava vinculada a sucessivas manifestações negativas da humanidade. O aprendiz não impôs diferenças. Criou uma máquina e não estava sabendo lidar com ela. A superpopulação também estava criando um desgaste no mundo. Ele tinha o seu mundo do mal. O mundo do bem não interferia em seu reino. Cada um fazia a sua parte. E suas almas maléficas no final deveriam continuar no lugar de sempre, no inferno. As almas que estavam criando problemas habitavam no porão daquele templo, e ali deveriam ficar para sempre. Se saíssem, criariam um caos no universo e então o bem teria de medir forças com o mal para amenizar o problema. E isso o diabo não queria. O universo estava equilibrado. Ou não? Bem, há séculos ele vinha ganhando mais espaço no mundo. Quem manda o ser humano escolher o caminho do mal? Ele bem que dava uma ajuda aos mais gananciosos. Irina não estava ali para contestar as ordens do demônio. Ele sabia ser bem cruel com seus servos. Ela não queria enfrentar o seu ódio. Com passos firmes caminhou em direção ao altar. O cheiro putrefato de carne em decomposição entrou em suas narinas e ela sentiu-se em casa. Aquele cheiro nauseabundo para Irina era um dos melhores cheiros. Onde habitava o ar era impregnado pelo cheiro dos pecados da humanidade. Fechou os olhos e seus pensamentos voaram até um passado longínco. Viu uma garotinha correndo com cobras ao seu encalço rodeando-lhes as pernas. Ainda sentia o perfume das arvores trazido pelo vento. Apenas um momento de liberdade. Aquilo foi como um mergulho no passado. Ela não tinha passado. Seu presente estava ali, a sua frente, um mundo desconstruido e perverso. Sentiu no corpo um ligeiro arrepio. Ainda tinha dentro de si algo de humano. Como ela previra o templo tinha as paredes cobertas de um mofo cinzento e no teto abóbada uma nuvem escura, mal cheirosa oscilava como se estivesse a espreita de algo. Em pé, defronte ao altar completamente vazio o silencio arrepiava. Nos nichos, onde eram colocados os santos de barro, algumas criaturas com cabeças de lobos e corpo de cobras uivavam e ao mesmo tempo sibilavam numa música eletrizante e aterradora. O medo passava longe do seu cérebro. Imaginava-se poderosa. Preparou-se para a luta. Arqueou o corpo e momentaneamente viu-se transformada numa enorme serpente. Com os séculos foi aprendendo a transformar seu corpo em formas cada vez mais diabólicas. Ainda tinha muita coisa a aprender, riu grotescamente num gemido arrepiante. Num bote engoliu os monstrinhos e arrotou com um deleite como se tivesse feito um grande banquete. A estranha metamorfose desapareceu num passe de mágica. Imaginou o quanto estavam distantes as suas lembranças. Não voltaria mais a forma humana. Acostumara-se até com o cheiro nauseabundo que emanava do seu corpo. Tinha sido uma escolha? Não. Era uma criação do próprio demônio. No inferno, durante todos aqueles anos tinha sido treinada como um soldado maldito. Um urro estridente ecoou medonho no templo pagão desviando seus pensamentos. Aguçou os sentidos e como um radar o som veio-lhe ao encontro em forma de monstros. Uma névoa escura acompanhava seis formas fantasmagóricas. Bailavam sobre o chão de mosaicos, nus. Os corpos lisos, brilhantes, dançavam sinuosamente como se acompanhasse uma melodia de Chopin. Tinha no rosto um ricto de maldade. Os olhos eram buracos profundos como abismos. A língua enorme, fina, como chibatas dançavam de um lado a outro. Em êxtase passavam à língua nos corpos e se deliciavam em pleno gozo.
— Oh! Oh! Balbuciavam em coro retorcendo os corpos nus.
Irina observava aquelas figuras hediondas e esperava.
Dentre eles um se destacava. A cabeça enorme estava coberta de furúnculos e deliciava-se furiosamente, lambendo o líquido fétido. Tinha nos olhos um lampejo de loucura. Dos olhos vermelhos escorriam um líquido amarelado. Naquela figura estava toda a podridão dos confins do inferno. Passou a enorme língua no falo enorme e gargalhou num gemido gutural de uma fera.
— A menina está gostando? - Perguntou a fera com voz manhosa.
Dizendo isso foi se aproximando de Irina e ficou quase colado a seu corpo. A mutante sentiu o bafo de todas as pragas do mundo, das doenças purulentas que cobrem o corpo desgastando a mente e cambaleou. Estava acostumada aos cheiros, mas aquele era todo o cheiro nauseabundo emaranhados naquele corpo deformado por chagas. Feridas profundas dilaceravam a carne apodrecida criando crostas escondendo a purulência. Aquela coisa nunca tinha sido humana, já nascera no inferno.
— A menina está gostando? - Repetiu o monstro esfregando-se sinuosamente no corpo de Irina.
Afastando-se friamente do monstro sem tirar os olhos do seu rosto deformado a mutante respondeu: - Já vi coisa melhor.
As outras figuras vinham rastejando se colocando estrategicamente nos lugares certos para o ataque.
Num relance Irina retesou o corpo absorvendo toda a energia negativa do lugar. Era como um imã que deixava seu corpo mais forte e ágil. Visualizou cada espectro enquanto adquiria a forma de serpente. Em cada lado do corpo asas enormes pareciam lanças pontiagudas. Num vôo só atravessou com suas asas os cinco espectros, jogando-os estraçalhados de encontro à parede. Um urro animalesco veio dos confins do templo abrindo um abismo bem no meio do altar engolindo lentamente as paredes e toda a estrutura do prédio. O monstro asqueroso não estava mais no lugar. Se caiu no abismo, estaria onde deveria estar: no inferno. Voltando a sua forma, a mutante saiu do templo. Parou a porta e viu uma figura observando-a acima do buraco negro. Fechou os olhos e lembrou-se do pai. Pouco lembrava de sua infância. Era como se tivesse nascido no inferno. Agora estava voltando aquele mundo estranho depois de tanto tempo. Sabia que nada era em vão, tudo estava apenas começando. Encravado em sua memória estava um rosto doce de mulher. Com ódio saiu caminhando até sumir na noite. Aquela era uma outra história.
Re: Contos fantasticos !!!
A BESTA
Ficção Científica
- Spoiler:
- Estavam todos reunidos em volta da fogueira, procurando afastar o frio daquela nublada noite de outono. Há dias a pequena cidade era manchete em alguns jornais das pequenas comunidades vizinhas e até recebera atenção de um inexpressivo periódico da capital do Estado. Poucos caçadores profissionais e muito mais amadores estavam ali, ansiosos para ganhar seus cinco minutos de fama, caso conseguissem matar ou capturar o que todos chamavam de a Besta.
Quem olhasse ao redor podia ver os pequenos pontos de luzes tremulantes que indicavam as fogueiras dos outros acampamentos, espalhados por aquela vasta floresta. Sobre todos e sobre ela, principalmente, pairava uma tensão, que talvez só cessasse quando alguém abatesse a tal fera.
Exceto pelo crepitar da lenha, um estranho silêncio dominava o seu interior. Os animais noturnos instintivamente haviam se escondido, pressentindo o perigo que a rondava. Os hábitos da fera indicavam claramente que só caçava à noite, mas mesmo assim, durante o dia, o silêncio era o mesmo. Sinal de que alguma coisa diferente perambulava por aquelas paragens. Se os homens tivessem prestado atenção àquele silêncio fora do normal, teriam se escondido também. Mas atrás de suas armas, achavam-se onipotentes, e não agiam sabiamente. Alguns eram apenas aventureiros, e pequenos acidentes já haviam ocorrido, quando alguns, já completamente bêbados, haviam atirado uns nos outros, conforme relatara o pequeno hospital da cidade. Um frenesi de disparos sobre qualquer movimento que seus sentidos turvados ainda conseguiam captar no meio da vegetação. Mesmo que fosse sobre seus próprios semelhantes.
Meu pai nesse dia estava lá, num desses acampamentos, procurando aquecer suas mãos nas labaredas da fogueira. O assunto era sempre o mesmo. Falavam sobre a criatura e comentavam sobre os profissionais, que não conseguiam capturá-la ou matá-la. Mesmo com toda a experiência que possuíam, estranhavam seu comportamento e a forma como conseguia escapar de suas armadilhas. Às vezes encontravam seus rastos, impressões no solo nunca vistas, que de repente sumiam, como se o animal tivesse levantado voo. Isso confundia muito daqueles profissionais da morte. E alguns se perguntavam se aquele Demônio, como certos tementes a Deus a chamavam, não possuíria mesmo gigantescas asas de morcêgo, o que explicaria o desaparecimento súbito das marcas.
Apenas um a vira, e fora motivo de chacota dos outros, por sempre se encontrar embriagado. Era um forasteiro, e jurava ter visto a criatura frente a frente. Ele insistira em dizer, que nunca vira nada parecido em sua vida. Com os braços agitados a descrevera como um misto de vários animais, vinda de uma nuvem de néon. Só podia ser mesmo a imaginação de um bêbado.
Meu pai conhecia o velho. O habitante mais antigo da cidade. Apesar de ter dificuldade de se lembrar das coisas mais recentes, conseguia recordar as mais antigas com bastante precisão, com uma incrível riqueza de detalhes.
Ele contou que quando estava ali parado, diante das sombras que as chamas retorcidas produziam nas árvores próximas, remoera constantemente suas palavras. O que antes todos acreditavam que não passasse de uma bobagem, dita por alguém, que já não pensava com bastante lucidez, se revelara mais verdadeira do que nunca. Quando os rebanhos de ovelhas começaram a ser atacados e os cachorros mortos, sem que ao menos seus donos pudessem ter ouvido seus rosnados ou latidos, ele lhes voltara a contar a mesma história do que acontecera no seu tempo de mocidade. Uma criatura que aparecia e desaparecia de tempos em tempos, talvez hibernando, como os ursos, para voltar a atacar quando acordasse. Ninguém tivera coragem de lhe seguir os rastos ou de lhe fazer frente.
Segundo o relato de velho, o seu avô, que fora um dos primeiros a chegar àquela região, muitas vezes lhe contara a mesma coisa. Uma lenda, dos antigos índios que habitavam aquela região, sobre um demônio da floresta que chamavam de Kontriki, que estava ali desde o começo do mundo. A criatura que todos caçavam agora seria a mesma que o velho e o avô dele tinham visto? Desejara que o velho, em sua senilidade crescente, tivesse inventado toda aquela história, incluindo o relato de seu avô. Mas as mortes inexplicáveis nas fazendas se sucediam sem parar e isto só reforçava a história dos dois.
Ele estava refletindo sobre isso, quando ouviu um tiro. Imediatamente, todos se levantaram, para descobrir de que direção o disparo viera. Era assim toda noite. Às vezes um coelho assustado escondendo-se na mata; uma rara coruja saindo à caça de um rato. O suficiente para alguém mais afoito começar a disparar a esmo. Mas daquela vez foi diferente e os tiros continuaram. Depois se ouviu um grito seguido do mais completo silêncio.
Meu pai e os demais, com a arma engatilhada, correram na direção suposta de sua origem, procurando iluminar a escuridão com suas lanternas. Desta vez, ou mais algum amador embriagado atirara em outro, ou alguma coisa nova havia acontecido.
Com a adrenalina percorrendo suas veias, logo chegaram ao local. O que quer que o atacara, desaparecera. Mas deixara uma vítima para trás.
Para horror de todos que chegavam, o foco de suas lanternas iluminaram um corpo dilacerado esvaindo-se em sangue. Era a primeira vez que fazia isso com um ser humano. O animal sentira-se acuado ou estava faminto demais para procurar presas mais fáceis?
Meu pai agachara-se sobre a vítima, mas nada mais poderia ser feito por ela. Focara a luz da lanterna em volta do corpo e pela primeira vez viu as pegadas da criatura. Elas estavam bem visíveis no solo úmido e compunham um conjunto de marcas que fugiam aos padrões tradicionais de animais selvagens. Dificeis mesmo de descrever. Decididamente não era um felídio ou urso.
Havia uma pequena depressão no centro, em torno da qual apresentavam-se mais tres sulcos. Provavelmente provenienetes de apêndices bem afiados. Mas nada que lembrasse um animal de cinco dedos. E o mais espantoso, é que as pegadas começavam a pouca distância do corpo, como se o animal tivesse surgido do nada. Como se tivesse vindo pelo ar e pousado poucos metros daquele homem. Depois que se aproximara dele e o atacara, as marcas percorriam uma trilha que continuava por mais um curto trecho e novamente desaparecia, inexplicavelmente.
Como ela fazia isso? Mesmo os caçadores mais experientes não conseguiram explicar como a pista podia aparecer e reaparecer, de forma tão misteriosa assim. Não era um problema decorrente do solo. E não havia marcas nas árvores onde poderia ter-se apoiado, tanto antes como depois do ataque. Nada.
Naquela noite meu pai disse que nada mais aconteceu. Todos varreram a floresta em busca da Besta, mas nenhum vestígio dela foi encontrado. Haveria algum abrigo desconhecido para onde corria depois dos ataques que praticava?
O guarda florestal, que exercia a função há mais de quinze anos, conhecia bem aquela floresta. Conforme suas palavras não havia nenhum lugar onde ela pudesse se esconder, o que aumentava ainda mais o mistério. De onde ela vinha então? Pelo ar? Impossível? Mesmo na história do velho, não havia qualquer menção de que podia voar ou o testemunho de que alguém a vira fazendo isso. Nada.
Após aquela noite angustiante todos se haviam reunido em frente da prefeitura, para organizar um busca maciça na floresta, revirando cada canto, cada árvore, cada arbusto. Mesmo as margens do rio que a cortava e a cachoeira, seriam examinadas em busca de qualquer toca oculta. Policiais também participariam da busca, já que um homem fora morto. E um prêmio em dólares fora oferecido para o primeiro que a trouxesse.
A primeira vítima humana provocara uma grande comoção na cidadezinha, e agora que a fera se revelara uma ameça concreta, as famílias assustadas fecharam-se em suas casas à noite, com medo de serem as próximas do ataque selvagem. Se fosse o caso, na hipótese daquela empreitada se revelar infrutífera, o Prefeito estava disposto até a convocar a guarda nacional, para participar da captura ou matança do animal assassino.
Entre os amadores havia um frenesi, como se algo importante em suas vidas fosse acontecer. Os profissionais, porém, à cata da recompensa oferecida pelo condado, portavam-se mais discretamente, procurando evitar aquele grupo turbulento que mais atrapalhava do que ajudava. Mas mesmo eles, sabendo naquele momento que havia uma recompensa pela criatura tanto viva como morta, tinham suas dúvidas se o dinheiro bastaria para compensar seus constantes fracassos.
Bem cedo todos tinham se reunido na frente da Prefeitura, para ouvir um Xerife nervoso, dando instruções expressas, para que seus homens não fossem atrapalhados e que se alguém quisesse realmente ajudar de fato, que colaborassem com as autoridades, sem causar desordens ou disparar um nos outros. Que ao menos fossem acompanhados por seus auxiliares.
Ele bem que gostaria de ter recusado aquela ajuda que mais atrapalhava do que ajudava, mas a floresta era muito vasta, e ele sabia que quanto mais homens na caçada, mais cedo a estranha fera seria encontrada. Tanto ele como os demais não faziam a mínima idéia do que estavam caçando.
Aquele oficial da justiça não estava preparado para o acontecimento que iria vivenciar. Nem tinha noções de que, preso à cultura da época, estava atrelado a um momento do tempo e do espaço. Nem remotamente, e a maioria de quase todos os presentes pensava assim também, poderia entender que em outros mundos, as leis da evolução, haviam ensejado criaturas só idealizadas em estórias e filmes de ficção-científica.
Então os grupos foram distribuídos sob a liderança de cada auxiliar e a caçada para valer começara. Pelo menos assim pensavam. Mas a criatura era inteligente e tinha seus próprios planos para aqueles seres bípedes, que via de vez em quando. Premida pela competição e pela fome optara por ocupar um nicho ainda desconhecido pelos concorrentes da mesma espécie. Neste novo mundo, poderia se estabelecer sem competidores e criar sua prole tranquilamente.
Meu pai foi um dos que se dirigiram para a cachoeira. As rochas por onde a água despencava cortando as rochas como filetes de prata, nunca fora examinada minuciosamente. Se houvesse alguma caverna por detrás de suas quedas, sua entrada deveria ser muito pequena, razão pela qual fora ignorada por muito tempo. Mas a Besta não necessitava de passagens grandes ou estreitas. Tal detalhe do terreno não lhe causava qualquer transtorno. Muito menos lhe seria uma barreira. Quando muito, uma proteção.
Ele a conhecia desde que era adolescente, mas entrara nela, com muita dificuldade, só uma vez, levado pela febre inocente da exploração. Talvez a infiltração tivesse nestes anos todos, provocado fissuras nas rochas, deslocando alguns blocos, e criando uma abertura por onde a fera pudesse ter penetrado, conseguindo esconder-se ali de todos que a caçavam naquele momento.
Era esse o único modo racional que encontrara para explicar o sumiço da criatura dentro da floresta. Nas grandes pedras e cascalho espalhados perto da cachoeira, dificilmente poder-se-ia encontrar suas pegadas revelando sua proximidade. O que revelava uma inteligência incipiente.
Todos os membros de seu grupo, com exceção do auxiliar de xerife, eram como ele, criadores de ovelhas que tinham o mesmo interesse em abater aquele animal, que já lhes causara bastantes prejuízos. Mortes estranhas por sinal.
A criatura parecia ser uma espécie de vampiro, segundo alguns fazendeiros, porque não se comportara como os predadores conhecidos, arrancando-lhe nacos de carne. Sugara apenas todo o sangue das vítimas. O homem morto, fora apenas uma exceção e provavelmente tinha sido atacado por estar no território que ela delimitara.
Assim que chegaram, equilibrando-se na rocha lisa, apoiando-se uns nos outros, foram aos poucos se aproximando da cachoeira. Ajudado pelos companheiros, meu pai passara por de trás da água gelada, apalpando aqui e ali, para ver se encontrava alguma abertura. E de fato, havia uma. Isto o deixara animado. O auxiliar avisado disso fizera um sinal para que permanecessem em silêncio, gesticulando apenas para que o seguissem. Assim que a penetraram, o único som que se ouvia em seguida, depois do ruído da queda d´água ao longe, era o do engate das armas prontas para disparar a qualquer movimento.
Com as lanternas ligadas e com certa dificuldade caminharam por seu interior escorregadio. Várias poças espalhavam-se pelo chão, resultado das constantes gotas que se precipitavam do teto, obrigando-os a ter um cuidado redobrado por onde pisavam.
A atenção de todos se redobrou e a idéia de encontrarem a fera, a qualquer momento, acelerou os seus corações. Com todo cuidado, com as armas apontadas, saíram de um túnel estreito, rumando para uma cavidade maior.
O que viram deixou-os atônitos. Não havia como descrever o que era ou que eram aquelas coisas, segundo a lembrança do meu Pai. Eram quadrúpedes sem dúvida, e tinham penetrado no ninho da Besta. Mas ela não estava lá. Apenas seus filhotes, na falta de uma expressão melhor para definir o que realmente eram. Seus corpos reluziam, e partes dele ora aparecim ora desapareciam, seguindo um ritmo desconhecido. Como uma imagem que teimasse em firmar-se.
Possuíam quatro membros que não se apoiavam diretamente no solo. De cada um projetava-se uma espécie de excrescência em torno do qual saiam três pequenas garras muito afiadas. Logo acima dos membros dianteiros projetavam-se mais dois, cuja utilidade era desconhecida. Talvez permitissem àquelas criaturas apoiaram-se ou segurar melhor suas vítimas num abraço impossível de se escapar.
Os olhos eram enormes e rubros como brasas atiçadas. E no lugar das mandíbulas projetavam-se duas coisas, parecidas a pequenas mangueiras. Com toda certeza, a utilizavam para sugar o sangue das vítimas. Não existiam orelhas, apenas furos escuros. O que eram afinal? De onde tinham vindo criaturas tão horríveis? Do inferno, perguntara meu pai, diante daquela visão que nunca esqueceria?
Quando perceberam a presença dos homens, os filhotes se retraíram em defesa, emitindo um guincho terrível. Um som assustador que fora ouvido por poucos índios e colonos brancos desde que a Besta se instalara naquela floresta.
Todos se olharam atônitos com a visão de seres que decididamente não eram deste mundo. Mas havia uma coisa que perpassou a mente de todos: matá-las. Se todas aquelas criaturas chegassem à idade adulta, ninguém poderia prever onde as coisas iriam acabar. Pelo menos seus corpos poderiam ser estudados e informar o que eram e de onde procediam.
Assim que começaram a atirar, dois dos quatro filhotes, fazendo uso de seus recursos desconhecidos, simplesmente desapareceram. As duas restantes, bastantes feridas, logo foram abatidas.
Mal os tiros cessaram e ouviu-se um estalido, seguindo de um forte brilho. A Besta aparecera junto com os filhotes restantes uivando para os dois corpos inertes abaixo de seu imenso corpo.
Logo um outro estalido se seguiu e uma forte luz refletiu-se nas paredes da caverna, atrás deles. Seguido por outro guincho. Voltaram-se todos rapidamente e viram uma criatura idêntica à outra que estivera junto aos filhores mortos. Viraram-se novamente na direção das pequenas criaturas e a provável mãe não estava mais lá. Como se deslocara tão depressa, sem que passasse por eles? Então não eram duas naquela caverna? Uma fêmea que viera defender a sua prole e naquele momento bloqueava o único caminho de fuga.
Se a visão das pequenas criaturas, por si, já era chocante, aquele exemplar adulto que estava ali parado, olhando-os fixamente, assustaria qualquer homem normal.
Ela pulou sobre eles, ainda paralisados pela estupefação, sem que conseguissem disparar um único tiro. Com uma agilidade surpreendente ela atingiu os dois homens mais próximos, dilacerado-os ali mesmo. Mal tiveram tempo de gritar.
Ela se voltou para terminar o serviço e deu o bote. Meu pai, porém foi mais rápido, e conseguiu atingi-la em pleno ar. O monstro soltou um urro de dor e ao invés de tombar no chão, simplesmente deu um estalo, desaparecendo em meio a uma luz cintilante. Não havia como saber se a havia atingido mortalmente ou não. Mas agora era evidente que podia ser morta.
Ele e o companheiro sobrevivente não hesitaram. Abateram os filhotes restantes. Em seguida correram para os companheiros caídos, mas nada mais podia ser feito por eles.
Com uma coragem renovada, ele e o outro homem se deram conta do forte cheiro de sangue apodrecido que o lugar sem ventilação emanava. Chegava a provocar fortes náuseas. E não era sem razão. A mãe havia trazido muitas vítimas abatidas, para alimentar seus filhotes.
Os dois se aproximaram daqueles corpos que não tinham observando antes, em meio aos quais jaziam as quatro pequenas criaturas, e se olharam interrogativamente. Que coisas eram aquelas afinal? Como explicariam o que tinham testemunhado se não pudessem mostrar uma daquelas estranhas carcaças para os demais?
Naquele instante em que suas mentes divagavam sobre o que deveriam fazer em seguida, em meio ao terror e a adrenalina que aquele lugar horrível provocava, ouviram um novo ruído em suas costas.
Os dois se olharam espantados imaginando se o que o causava não seria a última coisa que veriam. E o mais rápido que puderam, procurando virar o cano na direção de sua origem, viram novamente a Besta. Para o meu pai, foi a visão mais inexplicável de sua vida.
A fera estava realmente ferida e provavelmente viera para morrer. Mas o seu corpo brilhava e parecia uma imagem diáfana, que por razões que ele não conseguia entender, aparecia e desaparecia. Neste estado indefinido, caminhou na direção dos dois como se fosse atacá-los e de repente parou de brilhar, caindo de lado. Provavelmente morta.
1989, Junho, 16. 0:30 PM.
Isso era o que meu pai sempre me contara. O que ocorrera em 1949. Mas não estávamos mais nesse ano. Agora eu participava de outra caçada. Todos nós da vizinhança. Ninguém sabia ao certo do que se tratava, como daquela vez.
Mas ali, na mesma caverna onde meu pai acertara a Besta, eu me encontrava presente. E pior. Elas haviam se materializado na nossa frente do mesmo jeito estranho que ele me contara.
Por semanas, à medida que os relatos se sucediam, mais e mais corpos haviam sido encontrados. Sempre da mesma maneira. Sem qualquer sangue em seus corpos.
Um ou outro fazendeiro vira o atacante de relance sem poder fazer uma descrição pormenorizada do que testemunhara.
Montou-se uma vigilância severa sem muito sucesso. E as carcaças continuavam se acumulando. Mesmo os dos cães que morriam sem emitir qualquer latido, como que surpreendidos por alguma coisa que não lhes tivesse dado tempo de se defenderem.
Por fim a decisão. E a organização de uma varredura na mesma floresta para caçar o que quer que fosse. Pelo menos, pela disposição dos poucos rastros encontrados, que a indicavam como o local que albergava a criatura.
Mas poucos se lembravam do que ocorrera em 1949. A maioria ou havia mudado ou já estava morta.
Agora eu estava ali. Relembrando cada palavra do meu pai. Ele me contara só de uma, e eu não consegui entender por que estava diante de duas.
Elas apareceram do nada, em intervalos de tempo diferentes, atirando-se sobre nós. Uma delas parecia estar ferida, o que não diminuiu seu impeto.
Entre os gritos dos homens que sucumbiam ao ataque de ambas, eu consegui disparar várias vezes na direção da ferida. Ela recuou, começou a brilhar e desapareceu enquanto a outra em botes sucessivos ia matando todos que ali estavam.
Com tantos tiros sucessivos de repente minha arma emperrou. E então me senti só, imaginando que meu fim havia chegado. Me perguntei por que tinha que ser assim. Daquele jeito. Pela ação de criaturas que até então só conhecia através do relato do meu pai.
A que ficou percebeu que eu estava acuado, que não havia mais como escapar de suas garras. Como se sorvesse cada instante daquele momento de triunfo. De liquidar a presa. Não havia mais nenhum problema em me matar e apenas esperou para dar o último salto. Só desejava que tudo acabasse logo. Sem dor.
Aqueles olhos horríveis,vermelhos como fogo, continuavam me fitando. Desfrutando cada momento. Se era algum tipo de felino, não era deste mundo. Parecia uma criatura vindo do inferno como alguns diziam.
Naqueles segundos, quando imaginei que seriam os últimos da minha vida, não sabia em que pensar. Sempre ouvira que quando a morte se aproximasse conseguiríamos rever toda a nossa vida. Como um filme. Não via nada. Eram apenas histórias que se contavam. Ninguém que morrera voltara para dizer se era isso mesmo que tinham visto antes de partirem.
Mas ali, no meio daqueles corpos caidos, o único medo que me dominava cada vez mais era o de morrer sozinho. Sem ninguém para ouvir meus últimos pensamentos.
Fechei os olhos e esperei pelo fim.
De repente, senti um movimento no ar e ouvi um leve zumbido. Quando abri os olhos, vi um vórtice abrindo-se do lado da fera que a fez estancar. Para minha surpresa testemunhei duas criaturas humanóides saírem do seu interior apontando alguma coisa para ela. Dois jatos de luz foram lançados contra a Besta, que conseguiu se desvencilhar dos finos feixes, desaparecendo como fazia.
Os seres, o que quer que fossem, pareciam estar procurando por ela há muito tempo. Talvez de um outro lugar, fora deste Universo.
Seus olhos ou que pareciam ser isso, eram da mesma cor e brilho da Besta. O corpo vagamente lembrava um ser humano. Talvez fossem do mesmo mundo. Caçadores de uma outra dimensão, pensei.
Simplesmente me olharam, sem me dirigir qualquer sinal ou palavra, como se apenas eu fizesse parte do interior daquela caverna. Com suas mãos que continham mais de cinco dedos, manipularam seus estranhos dispositivos. Um deles voltou-se na minha direção, enquanto o outro eliminava o corpo dos filhotes com uma estranha irradiação, que os queimava como simples folhas de jornal.
O que se aproximou disse alguma coisa, que não entendi. Apontou para o lugar onde a Besta estivera e depois para o vórtice.
Eu fiquei ali parado, tentando entender o que ele tentava me dizer, balançando a cabeça todo o tempo. Por fim ele me deu uma caixa, ou assim pensei que era, sem me explicar para que servia. Apenas apontou novamente para o chão da caverna, para o vórtice e me deu as costas.
Com ele, o inusitado fenomeno cessou e o silêncio retornou, rompido apenas pelas gotas de água que pingavam sobre as poças do chão.
Durante anos me perguntei o que afinal meu pai testemunhara. E o que afinal eu vira. Não havia dúvidas que a tal Besta não era mesmo deste mundo. Depois de muito pensar, a verdade me alcançou, como uma revelação súbita. Compreendi que ela podia perambular pelo tempo, o que explicava como desaparecia e reaparecia em outras épocas. Explicava a flutuação da matéria de seu corpo que ficava defasada, presa entre ciclos de tempo. As luzes que nada mais eram do que o rompimento da barreira temporal.
Eu e meu pai tínhamos lutado contra a mesma criatura. A mesma Besta. Duas aparições vindas de tempos diferentes que haviam se cruzado naquele momento, dando-me a falsa impressão de duas criaturas. A única certeza provinha do fato de que meu pai a atingira em 1949, e na fuga viera parar em 1989, retornado depois àquela para morrer. Ele atingindo-a e eu também, só que em épocas diferentes. A segunda aparição nada mais era do que ela vinda de uma outra linha temporal, antes de sua morte em 1949. Quando os estranhos sairam daquela vórtice ela esgueirou-se pelo tempo, para morrer em outro tempo.
Nunca pude saber o que era, de onde provinha. Provavelmente fugira do seu mundo e os caçadores ou que quer que fossem tinham finalmente localizado-a, para minha sorte, retornando depois de sua fuga à caçada.
Agora conto essa mesma história para meus netos. Continuo sem entender para que a caixa serve. Às vezes ela brilha e zumbe, sem que eu possa compreender o porquê.
Ontem, quando eu a estava examinado mais uma vez, uma imagem se projetou dela Durou alguns segundos, mas foi o suficiente para ver o que continha. Mas me deixou muito intrigado.
Vi um homem. Um moço. Sentado numa estranha poltrona ou máquina. Com uma espécie de prato gigante atrás e um painel na frente, onde se podiam ver algumas datas. Talvez não fosse só uma imagem, como um projeto de slides. Ele parecia que me via, que pedia algum tipo de ajuda, mas só conseguia perceber seus lábios se movimentando, sem entender o que falava.
Quem era ele? O que significava tudo aquilo? As Bestas e os humanóides, e agora aquele moço, sentando em sua estranha máquina?
Fim?
Re: Contos fantasticos !!!
BONECOS DE PANO
Alta Fantasia
- Spoiler:
- — A questão toda... - disse o feiticeiro. -... é saber se tu poderás pagar o preço cobrado.
O local onde aquela conversa acontecia era trevoso. Estavam em um castelo de muitos quartos, e poucas pessoas. Um local de muitos rangidos, e nenhum passo. De poeira grudada em copos de vidro sem digitais, de ratos magricelos por falta do que roer, de quadros pintados com muitas sombras que, não importava na mão de que artista, sempre pareciam pintar o passado. E somente o passado.
O guerreiro olhava cada flâmula desbotada, cada carpete sem sujeira de rua ou marca de pegadas, e não conseguia deixar de pensar que tudo o que se olhava por ali, se olhava para trás. Observava vitrais, e via desenhos que lembravam dragões devorando, ou sendo devorados, por algo maior do que eles. E não importava que formas esse algo maior viesse a ter em tais pinturas coloridas; ele sempre acreditava que eram metáforas para ilustrar o Tempo.
Talvez realmente o fossem.
Antes de chegar ao salão do Feiticeiro-Rei, caminhara por corredores imensos de mesas vazias e pratos sem refeições que, propositadamente ou não, lembravam ao homem o quanto a solidão humana pode ser mórbida ou poética. Nas mãos, carregava um embrulho. O guerreiro estava em terra estrangeira, e são poucos os homens de bem que pisariam em terras onde ossos enterrados não significavam réquiens, mas magias escuras. Ainda assim, aquele guerreiro, que havia visto coisas que assustariam até mesmo homens ruins, caminhara. E caminhara só.
Quando um homem não tem como fugir de si, e se encontra aprisionado em um local que inibe seus sentidos e o faz visualizar a si, ele tem de se confrontar com seus próprios pensamentos. Para alguns, isso é o palco da harmonia. Para outros, as raias da loucura. [e para aquele homem?]. Para o guerreiro de vermelho não importava. Para aquele guerreiro, cada dia era um dia sombrio. Cada batida de coração trazia dor. Cada respiração soprava culpa. Cada olhar acumulava lágrimas que insistiam em não cair, não porque não houvesse tal desejo, mas porque não trariam o alívio que deveria acompanhá-las.
Pois o homem aliviado precisa merecer seu alívio.
E até hoje, cada vez que aquele homem de vermelho retira sua espada de uma bainha, ele busca no fogo da guerra sua pura redenção.
* * *
ONTEM
A casa era de madeira carcomida, com móveis corroídos por exércitos de cupins que deixavam o ambiente irrespirável. Fumaças desenhavam formas abstratas, oriundas de velas grossas de ceras coloridas. Havia desenhos no chão, feitos com giz. Desenhos que lembravam cabeças de bode ou cruzes invertidas. De vez em quando se encontravam detalhes em vermelho. Vermelho que lembrava sangue. Havia quadros com desenhos de mãos impressos. Na verdade, não eram desenhos; eram sinistras impressões de mãos que haviam sido pressionadas contra tinta ou piche, e depois prensadas sobre a tela.
Um gato percorria os arredores, orgulhoso, com um rabo de uma ratazana gorda escapando por um canto de sua boca, e ainda se balançando em espasmos. Um altar com crânios humanos desafiava o estômago do homem de bem, pois muitos deles não estavam totalmente limpos, e ainda mantinham grudados em si pedaços de pele, ou de cérebro. E com isso, mantinham também o cheiro da decomposição.
Ao redor de toda a sala de pouca luz, a imagem era tão macabra que faria uma criança desejar nunca mais dormir, com medo de que o escuro relembrasse aquele cenário de tonalidade fúnebre.
Afinal, por toda a sala, eles estavam.
Bonecos. Havia bonecos de pano. Dezenas deles. Pendurados por cordas no teto, que os prendiam ao redor dos pescoços, como pequeninos sacos de areia. Agulhas entravam por seus joelhos, por seus peitos, por suas gargantas. Alguns tinham as bocas costuradas, outros olhos arrancados. Todos se mantinham natimortos, balançando como se fossem homens sem vida.
Talvez realmente o fossem.
No centro do horror, declamando mantras escuros estava ela. Gezabel. A Bruxa-Banguela. A Velha de Dois Dentes. Aquela Que Não se Mata.
Ajoelhada, mantinha os braços para cima e os olhos virados, escondendo a pupila. Os cabelos eram desgrenhados e sem cor. As roupas eram maltrapilhas, e adornadas com amuletos construídos à base de dedos humanos. Ou que pareciam humanos. Peles de animais deitavam em suas costas, e vez ou outra, a bruxa selvagem parecia ter espasmos entre determinadas palavras que deveriam custar um pedaço da alma para serem ditas.
Observando das sombras, o guerreiro se incomodava com outro cheiro que o ambiente mesclava. Um cheiro de salitre e enxofre e dejetos humanos. No primeiro momento, ele achou que o cheiro era do local. No segundo, que era dela. E então, no momento em que a bruxa começou a ter espasmos e tocar suas partes íntimas, rolando pelo chão como uma cadela, ele se aproximou tocando o cabo da espada.
E a bruxa abriu os olhos.
* * *
— Afinal, tu estiveste diante dela? - perguntou o Feiticeiro-Rei.
— Eu estive.
— E tu foste capaz de matá-la?
* * *
O guerreiro mantinha a mão no cabo da espada ainda na bainha.
— Vosmecê sabe quem sou eu? - perguntou de forma lenta, quase cantando, a Bruxa-Banguela.
— Tu és a Devoradora de Bonecos - ele disse, e a voz parecia cansada. O tipo de voz que já se impressionou com o horror um dia, mas não naquele. - Tu és A Que Serve Às Que Gritam.
— Eu sou Aquela Que Não Se Mata.
O guerreiro ainda mantinha a mão no cabo.
— Não hoje.
A bruxa desgrenhada sorriu. O sorriso mostrou dois dentes separados na frente da boca. Ambos estavam pretos.
— Vosmecê sabe o que acontecerá a ti se me tirar a vida?
— Depois da morte, servirei em Aramis como escravo até que alguém peça para servir em meu lugar.
— E se nenhuma alma jamais pedir para servir em teu lugar?
— Então servirei em Aramis pelo resto da existência.
Aramis. A Terra Escura. O plano espiritual de Nova Ether governado pela primeira fada caída, e onde toda alma escura busca se afundar na própria escuridão.
— Ainda assim, vosmecê pretende continuar? Já reparara que cada quadro desses é de uma mão que arranquei? Já reparara que cada boneco perfurado nessa sala é uma vida que não apenas violentei, mas tomei para mim?
— Bruxa... - ele voltou a dizer com a voz cansada. - Tu pensas que já fizestes coisas ruins, e talvez tu tenhas razão. Talvez tu tenhas queimado crianças, arrancado a pele de homens vivos, e soprado no mar palavras sombrias o suficiente para envenenar a água de vilarejos. Tu podes ter dançado nua sob luas de sangue, e feito orgias com animais. Ainda assim, Escura, tu não me assustarás. Porque tu não sabes o que é horror. O horror tem um rosto. E tu deves ficar amiga do horror...
O cavaleiro retirou a espada da bainha, e se aproximou dela. O cheiro ruim aumentou. E a bruxa apertou os olhos sem pupila.
— Diz pra Mãe-Banguela: que foi que vosmecê fez para ter uma agulha no peito, Guerreiro-Menino? Tenho apenas um olho funcionando, e ainda assim posso ver que vosmecê tem mais a esconder do que muitos que amaldiçoei por menos.
— Qual foi o pior ato que já fizeste, bruxa?
A bruxa pareceu pensativa.
— Arranquei os olhos de um recém-nascido, e comi escutando seus gritos. E gostei - um sorriso. E outro: - E vosmecê?
— Matei meu pai.
A espada fez um único movimento. E a cabeça da bruxa rolou por um canto, assustando o gato.
* * *
— É dela?
O embrulho foi mostrado. Ele ergueu a cabeça pelos cabelos desgrenhados, manchados de sangue.
— Então tu pagaste meu preço...
— Tu cumprirás tua parte, Feiticeiro?
— Apenas peça. Tu trouxeste a cabeça de uma bruxa à Glubbdubdrib, e só vem à Terra dos Feiticeiros aquele que deseja conversar com a morte.
O guerreiro era silêncio. E apenas isso.
— A quem devo chamar, cavaleiro? - o Feiticeiro insistiu.
O guerreiro ainda era silêncio. Temor. E som:
— Chame Arthur Pendragon.
* * *
HOJE
Minutos se passaram. A porta se abriu, o cavaleiro saiu daquela ante-sala, e parecia outro homem. Outra alma.
Outro espírito.
— Se não fores tratar como insulto, antes de partires gostaria de fazer a ti uma pergunta, cavaleiro.
— Faça, feiticeiro.
— O que pode ser tão importante para um homem vivo, a ponto de trocar tua liberdade em outras vidas?
Houve um suspiro, típico do silêncio que precede a resposta. E procede.
— O perdão na atual.
Mordred caminhou na direção da saída daquele castelo solitário, e era possível se dizer que havia um sorriso deixado em cada curva. Não importava se serviria como escravo depois de sua morte. Não importava se bruxas iriam açoitá-lo com chicotes de fogo. Nem se sua alma se tornaria um boneco de pano sem vida, balançando feito um enforcado.
Ao menos, pelo resto daquela vida, ele estaria em paz.
Lágrimas guardadas em lados obscuros do coração caíam sem peso da face sem culpa. E o motivo era justo.
Aquele guerreiro, enfim, as merecia.
Re: Contos fantasticos !!!
VILA DOS ANDRAJOS
Terror
- Spoiler:
- 1
O Sol deslizava célere no céu de verão, irradiando uma luminosidade quente e prazerosa.
Mas um silêncio de morte pesava sobre a Vila dos Andrajos.
Os homens não saíram para trabalhar o campo, onde as vinhas se encrespavam, mas se reuniram no antro mais desolado, na taberna mais obscura, para conspirar.
As mulheres e seus filhos, rígidos e sombrios, murmuravam choros e preces no átrio da igreja de Santo Iago, o Menor, sob o olhar inquieto do pároco revelho e encardido, que em breve os deixaria sob os cuidados de um jovem palafreneiro, que fazia as vezes de sacristão, e se retiraria, furtivo, para pôr um basta no conciliábulo.
A Natureza parecia tudo entender. Porque não se ouvia o murmúrio abafado do vento, que buscara o espraiar indolente em outros sítios; nem se escutava o gorgolejar monótono do rio das Sebes, que descia melancólico, sem pujança alguma, da colina batida de sol; nem se percebia o chilrar das aves do estio, agora recolhidas em seus ninhos, no cimo dos abetos e nos escaninhos das choças.
O velho padre, que antes maldissera aquela furna de pândegos e malfeitores, fizera do balcão gorduroso, tisnado de nódoas de vinho, o púlpito. E, sem bíblia alguma nas mãos nodosas, exortava os homens, repreendia-os, clamava com a voz trêmula, pedia comovido, ameaçava com as chamas eternas do inferno e insistia feroz na obediência a Deus e à Sua divina vontade. Os homens, porém, não lhe davam ouvidos. Não mais temiam as profundezas abissais. Tinham os olhos mais ardentes que as chamas dos infernos, mais assustadiços que os olhos de um demônio em presença do Senhor. Gritavam entre si. Praguejavam. Mergulhavam a aguardente nas goelas. Depois caíam num silêncio difícil de sustentar, porque o silêncio parecia precipitar tudo de irremediável que estava por acontecer.
Há dois dias o velho pároco não conciliava o sono. A notícia chegara com maior vigor e se espalhara com maior velocidade que o fizera a peste. O séquito papal se aproximava da Vila dos Andrajos, o recanto mais desolado dos torrões de Dona Isabel, a rainha santa, o último refúgio do anticristo, ser bestial, difícil de se pôr as mãos. Naqueles dias de grande devassidão entre os homens, naqueles tempos de corrupção e licenciosidade, um santo homem sonhara algo de terrível. Frei Alberto da Jutlândia, que desafiara o rei Valdemar, e buscara refúgio junto ao Papa, de quem era agora secreto confessor, sonhara mais uma profecia inexorável. Vira em sonhos que, na Terra dos Lusos, nascera a besta, e lá vivia entre os homens, há doze anos, não menos. E a besta, soube o Papa, era já um ser crescido, sabe lá se nascido de mulher, e que não tardaria a encetar seus hediondos prodígios. Debelar a besta, a todo custo, passou a ser o objetivo, senão a única missão, de Sua Santidade e de todos os que professavam a fé verdadeira.
Desde então, o reino de D. Dinis, o Trovador, entrou em polvorosa. Não havia uma choupana que não fosse invadida, não havia uma casa que não fosse esmiuçada, um palácio que não fosse espiolhado, por ordem de Sua Santidade, Martinho IV. E, por onde seguia a comitiva papal, encabeçada por um delegado clerical devoto e inclemente, por onde serpenteava o séquito pomposo, ágil e infatigável como um rastilho, formava-se um mar de sangue, tão profundo e tão denso, que nele se podia navegar.
As confissões, naqueles dias difíceis, se tornaram pródigas; e as denunciações, que levaram muitos homens e mulheres à purificação pelo fogo, se multiplicavam como crias de ratazanas. Nunca se vira um terror tão pio e tão desalmado em toda cristandade. Fecharam-se as fronteiras. Os suspeitos morriam pela adaga dos Oficiais de Justiça Eclesiástica e nenhuma criatura, entre doze e dezesseis anos, se homem, escapava à prova infalível, concebida pelo beato Frei Alberto da Jutlândia. A prova consistia em submeter o pescoço dos rapazotes ao fio dos punhais dos beleguins, até que a cabeça tombasse ao chão. Se o jovem sobrevivesse, se o sangue fervente não derramasse, se a cabeça se mantivesse firme sobre o pescoço, seria induvidosamente a temida besta, anunciada há mais de um milênio pelo Apóstolo Amado, em suas santas Revelações. Os jovens encontravam, para a glória do Senhor, uma morte certa, dolorosa, mas nem sempre rápida. Mas a besta profana não se dava a encontrar, por mais que a terra batida das choças, os ladrilhos das casas e o mármore dos palácios se empapassem do sangue quente e viscoso que vertia dos pescoços dos jovens inocentes. Luz alguma cintilava naquela escuridão.
E como o demônio tem as suas artes, decretou-se, mesmo sem ouvir-se o Papa, ou consultar-se o fiel e incorruptível conselheiro, que as raparigas também deveriam ser submetidas à divina prova.
E, nas cidades e nos campos, elevavam-se os prantos. Cada mulher era o espírito de Raquel ressurgido, chorando por seus filhos, rejeitando consolo, porque eles já não mais existiam.
2
Nuno Joanes, gentil-homem, era, dentre os Oficiais de Justiça Eclesiástica, o mais temente a Deus e, portanto, o mais feroz. Executava o seu mister com tanta devoção de espírito e tanta habilidade nas mãos que, não fora a santidade de sua missão, dir-se-ia que se tratava de um possesso.
Mas, à medida que a Santa Comitiva rumava, de vila em vila, para o Norte, mais ainda a sua face entenebrecia. Seus olhos perdiam, pouco a pouco, aquela atmosfera de transe; as suas mãos, ágeis como as de um prestidigitador, decaíam em destreza e vigor.
Nas cercanias dos Andrajos, um frêmito tomou-lhe o corpo e muito a custo sustentou-se no lombo da montaria.
3
Entre os homens, entocados na Vila dos Andrajos, o último reduto de Satanás, não havia consenso. Alguns preferiam ver seus filhos mortos de maneira menos dolorosa, antes que a Santa Comitiva rebentasse no horizonte; outros preferiam escondê-los de alguma forma, dentro de suas possibilidades, que eram quase nenhuma; outros ainda, tementes a Deus, preferiam que a Justiça Divina fosse feita. Só em um ponto todos estavam acordes: o que fosse decidido, estaria decidido.
Havia óbvios prós e contras, qualquer que fosse a escolha. Se matassem os próprios filhos, cairiam em pecado mortal e certamente teriam morte dolorosa nas mãos dos Oficiais de Justiça Eclesiástica. Se os escondessem, não seria por muito tempo, e a pena lhes seria seriamente recrudescida. Se entregassem os filhos às mãos da Justiça inflexível, certamente agradariam ao Papa, e provavelmente a Deus, mas destruiriam a própria consciência, já que todos sabiam inocentes os seus filhos rotos e as suas filhas famintas.
Após o escrutínio, os homens retornaram, silenciosos, para suas casas. Depois, cingindo, cada um, um punhal, ganharam o átrio da igreja.
Não é preciso dizer que as mulheres, ensandecidas, gritaram de pavor, ao ver seus homens tão circunspectos e tão resolutos. Muitas avançaram contra os homens, outras desfaleceram e umas poucas, as que não tinham punhal para cravarem nos seios, atearam fogo às próprias vestes.
O pároco recolheu-se ao confessionário para chorar. Talvez, também, pela morte dos jovens, rapazes e raparigas, caídos uns sobre os outros, com os corações e os ventres traspassados pelos punhais piedosos de seus pais.
4
Quando as figuras sinistras dos beleguins assomaram na colina, quando o enviado papal, de vestes vermelhas, contornou o vale do rio das Sebes, e, finalmente, quando postaram-se todos, superior e subalternos, diante da igreja de Santo Iago, o Menor, o último dos raios de sol, ainda sufocado pelos gritos de mulheres e crianças, desvaneceu no horizonte belo e terrível. De tocha em riste, tendo Nuno Joanes à frente, adentraram os homens de Deus o átrio escuro daquele templo miserável, em nada digno aos olhos grandiosos do Senhor. Mas saíram logo em seguida, porque, tendo degolado, por precaução, os cadáveres, não mais muito tinham a realizar naqueles torrões.
Nuno Joanes fora o último a sair. Na mesma igreja onde fora batizado, e que agora retornava par cumprir o seu destino, vira, pela última vez, Pero Nunes, seu filho. O garoto vivia ainda. Talvez sequer agonizasse. Nuno Joanes deu-se a conhecer e recebeu um sorriso débil. Mas, antes que o demônio o tentasse, extraiu o punhal do ventre do menino, e, com o mesmo punhal, o degolou, com golpes destros e ágeis. E agradeceu a Deus por não haver gerado o corpo onde habitava Satanás.
Varrido todo Portugal, os homens de Deus fracassaram. Apenas uma certeza, a única certeza possível, que se não podia verter em palavras, vinculava aqueles homens boquiabertos: contido pelo mar, o anticristo fugira por terra. Certamente para a Galiza. Teriam, decerto, muito trabalho pela frente. Porque, se muito santo era o Frei Alberto da Jutlândia, muito mais astuto era Satanás.
Re: Contos fantasticos !!!
O FANTASMA DA CASA 666
Terror
- Spoiler:
- Só agora, depois de 30 anos, minha mãe revelou-me o mistério sobre a morte da senhora Margot. Por muito tempo, durante a minha infância, essa curiosidade me perseguiu. Dizem que os fantasmas da infância, diante dos problemas da vida adulta, costumam ser esquecidos, guardados em algum canto da mente. Falam também que a criança que fomos, a exemplo dos fantasmas, nunca morre, simplesmente fica escondida dentro de nós. Talvez por esse motivo, hoje, dia em que completo 42 anos, foi que, vasculhando as teias de aranha dentro da minha cabeça, encontrei a criança curiosa que um dia fui. Corri até a casa da minha mãe e repeti uma pergunta feita a três décadas: como morreu a proprietária da casa 666?
Os moradores da rua temiam passar em frente aquele sobrado, principalmente à noite. Especulava-se que era comum ouvir-se gritos pavorosos ecoarem lá de dentro, cortando o silêncio e causando arrepios aos que, por ventura, passassem por aquela calçada. A velha casa abandonada tinha um aspecto realmente aterrador. Sua fachada, totalmente desgastada pelo tempo, mantinha algumas das inúmeras janelas. A maioria, no entanto, comida pelos cupins, não passava de espaços vazios por onde, segundo vários relatos, podia-se ver luzes de velas e sombras a passear lentamente pelos cômodos. Os mais antigos da vizinhança diziam ser a alma da senhora Margot que assombrava aquela casa. Sendo eu muito curioso, certa vez perguntei a minha mãe como tinha morrido a senhora Margot. Em vez de matar a minha curiosidade, deixou-me ainda mais confuso a frase que recebi como resposta:
— É uma história muito triste para se contar a uma criança.
Tentei insistir e fui ameaçado com uma boa surra, caso não esquecesse o assunto. A curiosidade, a partir daquele dia, transformou-se em obsessão. Estava decidido a descobrir, a qualquer custo, as circunstâncias que levaram à morte a senhora que habitara aquele sobrado assustador. Aos meus doze anos de idade, não me considerava mais uma criança. Dizia para mim mesmo, como se querendo convencer-me: eu sou um homem e, como tal, vou desvendar todo esse mistério. Saí a perguntar a todos que encontrava e as respostas não eram muito diferentes daquela dada pela minha mãe. Faziam suspense ou simplesmente mudavam de assunto. Acabei recebendo a surra prometida quando minha mãe ficou sabendo da inquisição que andava a fazer aos quatro cantos.
— Esqueça este assunto de uma vez por todas!
Fiquei de castigo por cinco dias, mesmo depois de ser obrigado a prometer que não mais tocaria no assunto. Após a curta reclusão, que me pareceu quase eterna, a curiosidade sobre a morte de dona Margot continuava a me atormentar. Fui recebido com vaias pelos meus amigos da rua: Vado, Cabeção, Dumbo, Leitão e Caju. Era costume da turma reunir-se em frente à casa do amigo que estava de castigo e dar-lhe uma sonora vaia no dia que este, absolvido da pena, colocasse a cara na rua. Sentir na pele essa humilhação não foi nada agradável, porém não podia reclamar. Principalmente eu, que costumava puxar o coro e fazer grande algazarra quando um colega castigado era colocado fora da gaiola. Mesmo assim, para não ficar inferiorizado diante dos amigos, tentei justificar-me.
— Vocês ficam de castigo por bobagens: você, Cabeção, ficou dez dias sem assistir televisão porque quebrou a bonequinha da irmã. Também! Foi brincar de boneca, né? Você, Leitão, foi comer o pudim ainda quente que a vovó preparou e passou 15 dias sem direito à sobremesa. Vocês, por acaso, sabem por que fui castigado? Coisa séria, problema de homem e não coisinhas de crianças como vocês.
Depois dessa minha explanação, tudo que consegui foi uma segunda e ainda mais sonora bateria de vaias. Fiquei realmente furioso e, num momento infeliz, lancei um impensado desafio:
— Qual de vocês tem coragem de entrar comigo, à noite, no antigo sobrado da senhora Margot?
Uma dezena de olhos assustados arregalaram-se à minha frente. Ficaram por alguns segundos em silêncio até que, com voz trêmula, Caju devolveu-me, em lugar de resposta, outra interrogação:
— Você tem essa coragem?
Diante dessa simples pergunta foi que percebi a situação complicada em que me encontrava. Como poderia responder negativamente? Não foi minha a idéia de transpor os portões da casa 666? Estava, realmente, sem saída e respondi:
— Mas é claro que tenho coragem. E vai ser ainda hoje.
Não sei onde arrumei tanta convicção. Entrar naquela casa sozinho, à noite? Nem os adultos tinham coragem, mesmo durante o dia. Olha só o tamanho do problema que arranjei. Na esperança de arrumar companhia para minha louca aventura, voltei a desafiar:
— Vocês são todos covardes. Afinal, quem é homem para ir comigo?
O silêncio da falta de resposta doía em meus ouvidos, causando-me grande angústia. Resolvi pegar pesado e mexer com o brio da turma.
— Vocês são um bando de menininhas medrosas. Afinal, quem vai comigo?
Foi quando uma voz estranha, vinda do outro lado da rua, se fez ouvir.
— Eu tenho coragem! Eu vou!
Assustados, já estávamos nos preparando para correr quando percebemos que era apenas o Aluado, um menino muito estranho que morava na rua. Seu verdadeiro nome era Vitor, porém o apelidamos de Aluado pelo seu jeito débil. Tinha problemas mentais e era discriminado pelas outras crianças que, considerando-o muito bobo, negavam-se a brincar com ele. Morava com uma tia velha que também era meio louca. Costumavam passar os períodos de lua cheia trancados em casa. Por esse motivo chamávamos a casa deles de Toca dos Aluados. Eu, a exemplo da criançada, também não nutria simpatia por ele. Porém, ao ouvi-lo se prontificando a me acompanhar em minha aventura, agarrei-me àquelas palavras como um náufrago a uma tábua de salvação. Vi, na figura do Aluado, a minha esperança de convencer os outros a irmos, todos juntos, tentar encontrar pistas que ajudassem a matar a curiosidade em torno da morte da senhora Margot. Disparei então meus argumentos:
— Estão vendo, menininhas? Até mesmo o Aluado, que vocês tanto discriminam e chamam de bobão, tem mais coragem que vocês.
Sentindo-se humilhado, Vado, o mais velho e também mais forte da turma e, por essa razão, detentor da liderança no grupo, decretou de forma nada democrática:
— Vamos todos juntos. Quem não for, vai se ver comigo.
Uma ordem de Vado era lei; ninguém tinha coragem de enfrentá-lo. Principalmente depois do dia em que ele, sozinho, numa briga feia, enfrentou e venceu quatro meninos que moravam numa rua paralela a nossa. Assim sendo, a turma preferiu enfrentar o fantasma da casa 666 a enfrentar Vado. Esperamos, assustados, o anoitecer que se aproximava. Reunimo-nos em frente àquele sobrado e, mesmo tentando disfarçar, os semblantes deixavam transparecer o receio que tínhamos em estar ali. O único que não demonstrava qualquer tipo de preocupação era o Aluado. Na verdade, parecia estar muito feliz em participar daquela aventura ao lado da turma, já que sempre fora renegado. Era tanto o seu entusiasmo que, aproveitando um momento em que a rua estava vazia, foi o primeiro a pular o alto portão frontal da casa. Não nos restou alternativa e, um a um, saltamos para dentro dos muros daquele sobrado. O mato tomava conta de todo o espaço que, no passado, fora um imenso jardim. Repentinamente, um vento forte soprou derrubando a porta principal. Nesse momento, todos se olhavam assustados e quase retornamos correndo. Porém, Vado, como sempre, democrático, falou energicamente:
— Daqui ninguém sai.
À frente daquela trêmula fila, ia Aluado, segurando uma lanterna. Na retaguarda, vinha o Vado para garantir que ninguém fugiria e, entre os dois, eu, Cabeção, Caju, Leitão e Dumbo, totalmente apavorados. Com uma coragem impressionante, talvez pela sua insanidade, Aluado ultrapassou a porta da frente, penetrando na sala principal. Já nos dirigíamos à escada de acesso ao primeiro andar quando, vinda, não se sabe de onde, uma voz tenebrosa pronunciou, claramente, aos nossos ouvidos:
— Eu queeeero meus anéeeeeis!
Senti o meu sangue gelar naquela hora, principalmente quando olhei para trás e percebi que Vado não mais estava lá. Foi o primeiro a correr, gritando desesperadamente. A exemplo dele, todos sumiram em alta velocidade. Eu, particularmente, não sei como saltei com tamanha rapidez e agilidade o alto muro que há pouco havia me oferecido tanta dificuldade em transpô-lo. Aquela correria desenfreada só teria fim na pracinha do final da rua, onde nos encontramos e, sem fôlego, não conseguíamos sequer falar. Todos afirmavam ter ouvido, claramente, aquela voz que dizia querer seus anéis. Porém, ninguém tinha a mínima idéia de que anéis se tratava. Mal tínhamos nos refeito do susto, quando Dumbo, quase sem voz, deixou-nos preocupados ao perguntar:
— Onde está Aluado?
Nesse momento, demo-nos conta de que nenhum de nós viu Aluado pular aquele muro de volta para a rua. Teria ficado dentro da casa? A preocupação aumentava pois sabíamos que algo precisava ser feito. Tive então a idéia de irmos perguntar à tia dele. Talvez ele tivesse corrido para casa. Ninguém concordou, achando que seria muito suspeita essa atitude, já que nunca procuramos por ele antes. A maioria resolveu que o melhor era ficarmos calados e aguardar o aparecimento de Aluado. Como já estava ficando tarde, decidimos retornar para nossas casas. O remorso tomava conta de mim. Sentia-me responsável pela ida do Aluado àquela casa e, conseqüentemente, sentia-me responsável por ele. Meu remorso transformou-se em angústia quando, pela janela do meu quarto, percebi que a tia velha do Aluado ganhava a rua a gritar pelo seu sobrinho:
— Vitor, onde você está?
Subia e descia a rua desesperada a ponto de chamar a atenção de todos. Algumas pessoas, solidárias àquela senhora, reuniram-se em coro a chamar pelo Vitor e nada do Aluado aparecer. Meu sentimento de culpa aumentava a cada minuto. Como poderia, sabendo de toda a verdade, esconder daquela senhora, já em prantos, o paradeiro do seu sobrinho? Em contrapartida, como poderia contar o que sabia sem denunciar a invasão realizada por mim e meus amigos àquele antigo sobrado? Era doloroso ouvir os gritos desesperados daquela senhora, mas, definitivamente, não poderia trair o pacto de silêncio da turma e muito menos expor minha própria pele às surras de cinto da minha mãe. Porém, tinha consciência de que algo deveria ser feito. Pensando assim foi que resolvi escrever um bilhete anônimo, relatando o suposto paradeiro do Aluado.
No silêncio da noite, quando todos já haviam se recolhido, saltei a janela do quarto e, cuidando para fazer o mínimo de barulho possível, caminhei até a "Toca dos Aluados". Lá chegando, fiz passar o bilhete por baixo da porta. Cheguei a ouvir os soluços daquela senhora a sofrer dentro da casa. Voltei para o meu quarto apressado, no entanto, tive o cuidado de, antes de entrar em casa, jogar uma pequena pedra no telhado da tia do Vitor no intuito de chamar sua atenção. Até esse momento, tudo funcionava exatamente como planejei. Apaguei a lâmpada do quarto e fiquei de vigília. A ansiedade tomava conta de mim quando, de súbito, percebi que a luz interna da casa se acendera para, logo em seguida, ver a tia Aluada abrir a porta e sair em direção a casa mal assombrada. Portava em uma das mãos uma folha de papel que deduzi ser o meu bilhete. Na outra mão, levava um objeto que parecia ser uma pequena caixa. Estranhamente, ela não mais gritava pelo nome do sobrinho. Contrariamente a momentos atrás, parecia fazer questão do silêncio, como se não quisesse ser notada. Olhava desconfiada para todos os lados, atravessando a rua sorrateiramente. Parou em frente ao portão da casa 666 e, ignorando o meu olhar perplexo, tirou de um dos bolsos um molho de chaves e passou a experimentá-las na enferrujada fechadura. É claro que ela não vai conseguir, pensei comigo mesmo. Como ela poderia ter uma chave que abrisse aquele portão? A possibilidade, pelos meus cálculos, era uma em milhões. Porém, a minha perplexidade chegou ao extremo ao ver, boquiaberto, pela primeira vez em minha vida, aquele portão ser descerrado. Lentamente, a tia Aluada puxava aquela imensa estrutura que, parecendo querer denunciá-la, fazia ecoar um triste rangido metálico no silêncio da noite. Admirado com a coragem daquela mulher, vi quando adentrou àquele lugar assustador. Fiquei na expectativa de vê-la sair correndo, a exemplo do que acontecera comigo e meus amigos. Os minutos que se seguiram foram angustiantes para mim. Um silêncio ensurdecedor ofendia meus ouvidos. Esperei o que me pareceu uma eternidade para, em lugar de uma fuga alucinada, testemunhar o tranqüilo retorno daquela senhora. Tamanha foi a minha felicidade ao perceber que, conduzido pela mão, trazia seu sobrinho Aluado. Ver aqueles dois atravessarem a rua, abraçados, foi como tirar um imenso fardo das minhas costas. Porém, na minha cabeça curiosa, nem tudo estava resolvido. O que teria acontecido lá dentro? O que era aquele objeto que a tia Aluada levou para o sobrado e não mais portava quando da sua saída? Só mesmo o sono, altas horas da madrugada, veio a encerrar meus questionamentos. Adormeci remoendo planos: amanhã irei investigar. Vou descobrir tudo.
Acordei pela manhã mais cedo que de costume. Cheguei a deixar minha mãe desconfia.
—O que você andou aprontando ou pretende aprontar?
Minha querida mãe, com toda a razão, sempre desconfiada; era capaz de perceber, em meus olhos de menino traquinas, a iminência de uma travessura. Na verdade, a vontade que eu tinha era de correr até a casa do Aluado e perguntar sobre o acontecido na noite anterior. Mas como fazer isso sem levantar suspeita? Decidi então que esperaria a oportunidade de encontrá-lo na rua. Reuni a turma e comuniquei o retorno do Aluado. Contei-lhes que vi quando ele voltou para casa em companhia da tia. Omiti, porém, tê-la flagrado entrando na casa 666, temendo passar por mentiroso. Reconhecia que era uma estória difícil de acreditar. Passei o resto do dia em frente à "Toca dos Aluados" na esperança de ver o Vitor e esclarecer minhas dúvidas. Quando anoiteceu, vi surgir, no fim da rua, uma enorme lua cheia. Sinal de que o Aluado passaria os próximos dias sem botar a cara na rua. A minha presença constante à frente daquela casa chamou a atenção da tia do Vitor que, sentindo-se incomodada, foi reclamar com a minha mãe que eu estava a observá-la. Levei nova surra de cinto e, para completar, fui colocado 15 dias de castigo, sem sair de casa. Não sei como consegui passar todo aquele tempo em companhia de tanta curiosidade. Quando, finalmente, acabou o meu período de reclusão, um novo acontecimento me pegou de surpresa: os moradores da "Toca dos Aluados" mudaram-se da rua; sumiram sem deixar pistas. Ouvi comentários de que teriam partido às escuras. Senti-me condenado, portanto, a passar o resto da vida sem saber o que havia acontecido durante o resgate do Aluado pela sua tia, na noite em que entramos na casa mal assombrada. Algumas semanas depois, o velho casarão foi demolido e, em seu lugar, construíram uma igreja evangélica. A casa em que o Aluado morava, a exemplo do velho sobrado, também foi vendida e transformada em uma escola. Causou-me estranheza o fato de a tal escola pertencer à igreja que ocupou o terreno da antiga casa 666. Com a destruição daquele velho imóvel, a minha esperança de desvendar a morte da senhora Margot também pereceu.
Com o passar do tempo, minha alma de criança perguntadora acalmou-se. Tornei-me adulto e acreditava ter exorcizado, para sempre, meu espírito infantil. Eis que justamente hoje, no meu 42º aniversário, ganho, de presente, os fantasmas da infância embrulhados na revelação do mistério sobre a morte da senhora Margot. Minha mãe contou-me que a dona Margot era uma senhora que, apesar da idade avançada e seus muitos quilos, trazia no rosto traços de uma mulher muito bonita. Muito vaidosa, adorava andar bem vestida e coberta de jóias. Parecia ter preferência por anéis, já que sempre trazia os gordos dedos repletos deles. Eram todos muito caros, feitos de ouro e cravejados com pedras preciosas. Com o falecimento do seu marido, sentiu a necessidade de arranjar companhia. Resolveu alojar, em sua casa, um menino que afirmava ser seu sobrinho. A criança aparentava uns 9 anos e, proibida por dona Margot, quase nunca saía de casa. Só era vista na rua quando, sob ordens, ia comprar alguma coisa na mercearia da esquina, voltando rapidamente para casa. Apesar de ser um menino obediente, dona Margot costumava castigá-lo ou, até mesmo, aplicar-lhe pesadas sovas. Nessas ocasiões, seus berros podiam ser ouvidos por toda a vizinhança. Trazia em seu rosto muitas marcas, que os vizinhos especulavam serem causadas pela pesada mão da viúva repleta de anéis. Toda a rua ficou horrorizada quando, numa manhã, ouvindo gritos de socorro vindos da casa 666, alguns moradores a invadiram e se depararam com uma cena horrível: dona Margot caída ao pé da escada, totalmente ensangüentada. Seus braços e pernas apresentavam fraturas expostas. E, em suas mãos, ausência total dos dedos. Todos foram decepados e levados, juntamente com seus preciosos anéis. A viúva deixava a todos perplexos pelo fato de, com tantos e tão sérios ferimentos, não demonstrar preocupação com o seu estado gravíssimo. Repetia exaustivamente uma única frase: "eu quero meus anéis". Os médicos foram chamados e dona Margot, depois de sedada, foi conduzida ao hospital, onde passou por várias cirurgias. Após poucos dias, não suportando o sofrimento, veio a falecer. Nas investigações policiais, o pequeno sobrinho figurava como principal suspeito, já que sumira por ocasião do ocorrido. Após 15 dias de busca, a polícia conseguiu encontrá-lo, esmolando pelas ruas do centro da cidade. As suspeitas tornaram-se fato quando o menino confessou ter matado a tia. Não ficaram dúvidas da sua culpa, pois o mesmo levou a polícia até o local onde escondera a arma do crime: um pequeno machado com o qual executara o brutal ataque. Em seus depoimentos, somente um fato ficou sem ser esclarecido: onde teriam ido parar os dedos e anéis da senhora Margot? Quando questionado, simplesmente respondia que os havia perdido. Considerado insano, foi conduzido para tratamento psicológico em um manicômio, de onde teria conseguido fugir para nunca mais ser encontrado.
Ouvindo o relato desses acontecimentos foi que consegui entender e concordar com as palavras ditas pela minha mãe há trinta anos: "é uma história muito triste para se contar a uma criança". Os adultos partilhavam a opinião de que um crime tão bárbaro, praticado por uma criança, deveria ficar em segredo. Tinham medo que, de certa forma, fôssemos afetados ou influenciados por ele. Foi preciso passar todo esse tempo para, finalmente, conseguir resolver um velho mistério. Porém, nesse exato momento, pego-me pensativo e convicto de que tal revelação não passa da ponta do fio de um grande novelo que, novamente instigado pelo meu espírito juvenil e curioso, sinto necessidade de desenrolar. Com as palavras da minha mãe, depois de tantos anos esquecidos, inúmeros detalhes voltam à minha mente: a frase ouvida no casarão, a chave do portão, a pequena caixa conduzida para a casa 666 pela tia do Aluado, a mudança súbita no meio da noite, a aquisição dos dois imóveis pelo mesmo comprador. Sinto que preciso passar naquela igreja e, quem sabe, fazer algumas perguntas. Acho que, aos 42 anos, não corro mais o risco de ser surrado pela minha mãe.
Re: Contos fantasticos !!!
A Chama e a Brisa
Terror
- Spoiler:
- O brilho da chama, apesar de mostrar sinais de fraqueza, persiste; movimenta-se com uma dança levada pela brisa, sua inimiga, que a ataca com enérgica violência, que a faz deitar entregue, mas ela se recupera e levanta, reavivada.
Ora a brisa não ataca, mas acaricia, mostrando quase sinais de amor, e não é mais ataque mas um carinho... A cera derretida nada mais é que as lágrimas da chama, que sabe da batalha perdida. E o uivo da brisa é só lamento pela tão breve existência da pequenina chama. Nenhuma das duas vencerá a batalha. A vitória é de uma terceira, que não participa mas observa com a paciência e experiência de quem reina absoluta.
A escuridão!
É a ela que o homem mais teme.
Sentado a uma mesa iluminada por uma única vela, alheio à batalha que a pequena chama trava com a brisa, prossegue nervoso seu trabalho. Escrevendo rápido e trêmulo, banha a pena em tinta.
"... quarenta e sete pessoas; onze mulheres, oito crianças, um padre, doze soldados, nove colonos, oito cães e víveres. E ainda seis índios.Essa era a população que habitava este Forte. Escrevo este registro para que, mais tarde alguém possa compreender e explicar... é um alerta... !
Um som desprende a atenção do homem. Ele olha para os lados, mas só por um instante. E volta seus olhos para a carta em cima da mesa.
"... Os primeiros foram os víveres, galinhas e porcos que amanheceram mortos. Pensou-se serem cães selvagens ou lobos. Todos os animais nos estábulos, nas coxias e nos galinheiros por todo o Forte encontraram seu fim naquela noite. Os soldados e colonos montaram armadilhas mas na noite seguinte..."
Uma mão tenta pegar a folha, o homem puxa de volta o papel amassado. Repreende a intromissão com raiva, e a mão desaparece na escuridão.
"... na noite seguinte os cães tiveram seu fim, espalhados pelo campo, pedaços de todos os tamanhos foram encontrados... as armadilhas não foram tocadas. Reforçamos a segurança e o toque de recolher foi imposto, mas a tragédia apenas se anunciava... terrível foi encontrar as crianças, algumas mesmo fora dos muros. Ver que quase era impossível distinguir quem era o filho de quem, foi desesperador..."
Um rosto demoníaco é iluminado pela vela!
O homem por reflexo, tenta atingir o intruso, que desaparece.
"... de tarde, os índios foram queimados vivos. Alguns acreditavam que eles eram responsáveis pela morte das crianças, e isso pareceu por momentos servir de consolo, acalmando os sobreviventes. Mas com a chegada da noite, o medo mais uma vez tomou conta do Forte, as pessoas ficaram juntas amparadas pelo padre. Triste fim... todos, um a um, desapareceram naquela noite. As mulheres, os colonos e os meus companheiros de infantaria..."
Mais dois rostos se tornam visíveis, são demônios. Demônios com chifres enrolados, um range os dentes e o outro ri. Por um segundo interminável eles permanecem visíveis, depois se escondem na escuridão.
"... passei o dia enterrando os corpos, sabia que não poderia fugir, pois a noite me encontraria na floresta... preferi ficar no Forte. Tranquei-me neste quarto. Descobri que tudo foi revirado e destruído, as armas estão imprestáveis, só me resta esta tinta e papel, que agora gasto neste relato. Mas descobri o que causou as mortes... são demônios, demônios que encontraram neste lugar a porta de saída do inferno..."
Neste exato momento, enquanto escrevo. Eles permanecem do meu lado, na minha frente, a luz os mantêm afastados, a luz da única vela que encontrei. Parece que só a escuridão os deixa em estado material, a luz os mantêm etéreos.
Alguns, creio, são mais corajosos e tentam romper meu precário escudo, tenho que repeli-los com socos e..."
Um dos demônios arranha as costas do homem, que deixa escapar um grito de dor e surpresa, a chama da vela tremula pelo movimento repentino – a brisa ataca mais uma vez – o homem vira-se e golpeia o ar. O som de um ranger de dentes e uma risada tomam conta do lugar.
O homem está descontrolado e treme.
"...socos e empurrões, não tenho mais tempo, a vela e minha vida estão acabando. Eu peço que me perdoem as pobres almas que não pude salvar aqui, sei que pelo que pretendo fazer a minha própria alma não encontrará descanso, talvez eu me junte a eles. Mas, se me compreendem, eu tenho que tentar..."
A chama mostra sinais de cansaço, ela se curva em um último lamento, a luz azul que agora desprende é um adeus aos momentos que passou dançando, a brisa parece chorar vendo os últimos lampejos de vida da chama, um adeus, onde a escuridão esboça um sorriso vencedor e prepara-se para abraçar a todos.
Os demônios aparecem sob a tênue luz, em um frenesi. Pulam e gritam, alguns riem outros rangem os dentes e abrem as asas antecipando um banquete horroroso, infernal. Os demônios agarraram o homem, um deles o morde. O homem esforça-se e aproxima-se da vela. A chama despede-se com um último lampejo vigoroso, que acende o pavio de pólvora que o homem amarrou nas caixas de dinamite no quarto. O pavio ilumina o paiol e um demônio se assusta, mas ainda encontra tempo para gritar:
— Venha a nós, suicida!
A explosão e o fogo terminam.
A escuridão triunfa. E ainda hoje se ouve, no centro da mata aonde a escuridão reina absoluta, o ranger de dentes e risos.
Re: Contos fantasticos !!!
OBSCURO AMOR
Terror
- Spoiler:
- I
Das mais remotas sagas o amor traz consigo o peso fúnebre de guerras e vinganças, vitórias e derrotas. Por amor marcou-se o solo do mundo com oceanos de lágrimas. Por amor se morre, por amor se mata... por amor enlouquece o homem, insana torna-se a mulher. E desse mal eu fora ferido: era amor, entanto era muito mais desejo. Uma ânsia, uma angústia que corrói a alma e escurece o olhar de sombras tantas, só iluminadas perante o ser que amamos, amamos e muitas vezes amamos.
Amor! Desejo! Obsessão! Não o amor de Romeu por Julieta, porém a febre angustiada de Otelo, capaz de ceifar nas mãos amorosas a pérola amada por louco ciúme. Amor que aprisiona de tal modo que morrer, ah, morrer já não representa a liberdade, pois as sombras nefastas do além não conseguem abrandá-lo.
Entanto, vivendo uma existência sem surpresas até o instante que meus olhos desvendaram a face de Ana, eu não conhecera o amor. Aos 37 anos de idade, sabia o sentido da palavra exaltação somente dos livros... Assim, eu a vi! E tudo o que chamara de viver simplesmente perdeu o significado.
Debalde ser um artista, parecia-me um ogro. Talvez minha aparência rude a tenha assustado e, sim, rude eu sempre fora. As unhas quebradiças, as mãos cheias de cicatrizes das longas batalhas para dar vida aos meus pequenos seres. No entanto, fora esta rudeza cerceada pelas ilusões literárias. Na pequena vila, na qual cresci, criado pelo abade, forjei minha personalidade entre os livros e a ferocidade da natureza. No cemitério, que se ocultava por trás da paróquia e ocasionalmente exercia a função de coveiro, em tardes modorrentas, descobri nas páginas amareladas os mais fascinantes universos da fantasia. Duas eram as paixões que seduziam meus sentidos: a força da terra a ser domada até que restasse apenas a maciez do solo onde a semente germinaria e os livros da velha biblioteca; páginas onde os universos tomavam de tal forma sentido que nada mais me faltava.
Quando aprendi meu oficio, deixei o amor pela terra e pelos livros para instantes raros. Tornei-me artesão, um bonequeiro. Destas mãos grosseiras surgiam belas bonecas: raras, feitas para crianças especiais, para jovens princesas. Aprendi com o abade a profissão, a arte da criação. Caso houve em que levei anos em uma mesma criação. Destas, era difícil despedir-me. Nas peças feitas por encomenda, procurava ser mais rápido, entretanto cada boneca possuía sua essência própria, um tempo para nascer, tomar forma. Esta era minha vida, minha arte.
II
Eis um caminho traçado sem surpresas ou grandes planos, uma existência opaca. Entretanto, percebi que toda claridade fora até então ausente em minha existência e no olhar daquela menina estava a cura para minha alma. A verdadeira luz revelou-se naquele dia, o que restara nas lembranças fora a escuridão
Havia em meus ouvidos estampidos, rudes tambores do meu pobre coração... de tal forma ensurdecedores que minhas vistas quedaram-se turvas e, por fim, foram seus olhos, olhos fixos em mim, olhos iluminados, olhos ternos, sedutores e convidativos que trouxeram-me à luz. Eu a vi! Eu a desejei! E eu a teria!
Diáfana Ana!
Através de seu sorriso lembrei-me do dia em que descobri a palavra diáfana, cuja sedutora pronúncia escapava dos lábios de tal forma que não pudera conceber imagem para corresponder a tão surpreendente sentido e, naqueles lábios, tomara corpo a palavra; tudo o que outrora foram letras concretizara-se na figura de Ana. Diáfana Ana! Viera com o pai, em busca da boneca perfeita. Eu teria como inspiração a sua face, a pele que faria inveja a mais fina porcelana. Meus olhos beberiam na mais divina suavidade para criar minha obra prima.
Desde então, esperava com inquietação doentia pelas tardes em que ela viria até mim e, enfim, depois de alguns dias de longa espera, eu mergulhei meus olhos em sua face para compor a mais perfeita boneca. Diáfana Ana.
Os dias passavam-se lentos. A peça poderia estar pronta há muito tempo. Mas tal fora minha obsessão pelo prazer de sua presença, que moldava peças diversas e, com o passar dos dias, me via mais e mais cercado por pálidos rostos de Ana. Faces que pareciam me espreitar indiferentes em seus esconderijos pela casa. Através das madrugadas insones eu as desmanchava ou ocultava pelo prazer de recomeçar e, a cada vez que sentia nas mãos os contornos de seu rosto na massa suave, estremecia.
III
Assim foram aqueles agônicos meses até o escuro invadir a manhã e o nada persistir. Ana estava prometida, em breve despedir-se-ia. Quem dera, ah, a mim, um simples artesão, ser o dono de sua beleza e afeto.
Delatei meu amor por fim.
Ela riu quando declarei-me, um riso liquido, divertido, como quem espera há tempos por um gracejo mórbido. No seu riso cristalino disse-me que estava noiva, prometida ao conde F. e, em breve, seguiria para Paris e nunca mais eu a veria.
Ah, minha dor foi lancinante, jamais conhecera tal ímpeto , tal fúria. Imagens do conde destroçado invadiram minha mente. A fera espreitando em meu olhar a assustou e apresentava as faces coradas enquanto tremia nos esboços que fazia de seu queixo delicado. Desnecessário dizer que desde então já não dormia antevendo o dia da despedida. Eis, então, numa noite em que insone revirava-me na cama, selei meu destino. Torcendo-me em angústia e soluços, cercado por faces que esculpira tendo Ana como modelo, vislumbrei em sonho mórbido imagens do paraíso e do inferno preenchendo-me em dor e luxúria até acordar com meu próprio grito. Porém, a dor e a paixão que assombravam meus dias foram tão intensas que todo resquício de moral, de temor à Deus, deixaram-me e, prostrado, gritei que sim.
Não me recordo agora o caminho que escolhi para chegar ao cemitério, caminhei a esmo até encontrar uma das mais antigas sepulturas. Um demônio em vida, um demônio em morte. Aquele que ali morava fora famoso pela dor que causara aos seus até os últimos dias de sua existência. Eu bem soubera, era ainda menino quando o abade fizera-lhe o exorcismo, aprisionando o demônio. Ali eu teria minha vitória. As preces que por tantas noites eu derramara foram atendidas na figura daquele ser que visitara meus sonhos com promessas nefandas. A noite pesava e o ar abafadiço calava meus passos entre as tumbas, levando-me ao mais obscuro canto do cemitério. Parado em frente à sepultura maldita, senti um arrepio percorrendo minhas entranhas e me controlei para não fugir.
Sei que se horrorizariam pela eternidade com meus atos, entanto, aos que me escutam, afirmo que agi guiado somente pelo amor. Um luar outrora argênteo ocultava-se na noite umbrosa e gélida que envolvia meus ossos no frio mais insano. Como se despertasse de um longo sono, vi os lábios do menino no meu colo tremerem de frio, resolvi amarrá-lo com o lenço tecido pela própria mãe, que me fora entregue naquela mesma tarde. O láudano já mostrava os efeitos.
Cravei o punhal no pequeno corpo, derramei o sangue de um coração ainda puro no chão sagrado do cemitério, enquanto lágrimas deslizavam na minha pele. Uma gargalhada insana calou meus tímidos soluços. A faca cortou a pele macia, sem dificuldade, enquanto as árvores sibilavam e as nuvens escondiam os resquícios de um pálido luar. O riso horrendo também se fora, mas meus dentes permaneciam rígidos até a dor ser insuportável.
Um pacto de sangue, uma divida eterna.
Minha oferta fora aceita. O preço não me importava. Um rasgo de horror tomou-me quando as gotas ainda tépidas queimaram-me a pele. Senti que a desgraça tatuara-se em mim no toque do sangue daquele inocente. Desde então, a desgraça tem sido meu caminho.
Muitas famílias dispostas a cederem seus filhos por algumas moedas.
Muitos demônios a espreitar a insanidade mais profunda e obscura.
O peso do amor ferindo um coração sombrio.
Eu a vi, eu a desejei, eu a teria. Observei a terra sequiosa sorver o sangue infante. Sem recear, senti a lâmina dilacerando minha pele e, em seguida, meu sangue impuro derramou-se em poucas gotas sobre o solo ressequido com o qual eu sempre lutara e logo foi absorvido. As nuvens sumiram. Havia no céu uma aura rubra circundando o luar.
Estava feito.
IV
Esgueirei-me, naquela noite, pelos caminhos umbrosos como o criminoso hediondo que me tornara e retornei ao meu lar. As sombras pesavam-me n’alma e trabalhei. Inspirados pelos mais devassos demônios da noite meus dedos moviam-se como nunca dantes. Que dizer daquela noite maldita? Do cenário noturno, cheiros aziagos invadiam minhas narinas quase tomando todo ar; podia sentir a minha volta bafejos de olhos insanos e demoníacos e ouvia, não pelos meios comuns, mas na frialdade na madrugada que gelava minha pele, lamentos de agonia que arrepiavam-me e deixaram minhas mãos ameaçadoramente trêmulas. Ainda assim, antes que o dia chegasse, a minha obra mais perfeita estava pronta e ainda que por pouco tempo, seria dolorido deixá-la partir.
Era o dia da entrega, a tarde findava quando conduzi pai e filha até a saleta com formalidade. Quando o pai perguntou-me se estaria pronta a pequena preciosidade, suavemente indiquei à Ana o vulto coberto por fina seda. Suas mãos ávidas desceram o tecido que cobria o objeto sobre a mesa e, com espanto e prazer, ambos deslumbraram-se: os cabelos eram como o mel, os olhos entre verdes e dourados destacavam a pele translúcida. Sim, minha preciosidade estava pronta. Eu mesmo estremecia ante a criação.
Agradeci e guardei o ouro que comprava a mais perfeita obra. Quando o olhar ressabiado de Ana disse-me adeus, apenas sorri em despedida. Fez menção de dizer-me algo, mas desviei o olhar. Partiriam no dia seguinte para Paris, onde o Conde F. aguardava.
E quando a noite cobriu o dia, na mansão de Ana as criadas preparam-se para a viagem. Finalmente pude adormecer. Um sono inquieto no qual via-me em sonhos horrendos percorrendo os aposentos de Ana, que repousava docemente. Ousei aproximar-me. No leito, dir-se-ia um anjo adormecido. Mas um vulto me fez recuar, um arrepio de puro pavor tomou-me quando vi a boneca de olhos translúcidos mover-se vagamente em direção a minha amada. Seus passos curtos encaminharam-se até ela enquanto eu, covardemente, encolhia-me contra a parede. Era um sonho, mas senti seu olhar devassando-me a alma quando pegou o travesseiro e começou a sufocar a moça, cujos movimentos débeis foram insignificantes perante a força que a pequena boneca adquirira. Risos mórbidos e sussurros malditos envolviam-me quando o travesseiro fora retirado. Minha amada ainda respirava. A pequena pérola juntou seus lábios, cópias perfeitas, aos lábios agora pálidos de Ana, sugando-lhe num beijo mortal, os resquícios de sua existência. Juro que chorei quando uma lágrima grossa de sangue deslizou na face da boneca.
Acordei no mesmo instante em meu quarto, com o corpo coberto por suores e esgotado por tremores. A febre tomava-me e, sentindo a boca seca, levantei e segui até a sala. A água desceu pela minha garganta ressequida. Um ruído assustou-me. Não pude ouvir o som do copo nem sentir a água tocando meu corpo quando ele se quebrou no solo.
Ali, no mesmo local onde antes estivera, Ana aguardava-me na sua forma mais perfeita. Somente os olhos apresentavam um brilho que antes nunca vislumbrara. Era finalmente minha. Para sempre! Na mais perfeita forma!
Na velha mansão, o dia amanhecera com choro e pranto, a menina morrera adormecida. Ninguém sentira falta da boneca. Minha obra prima retornara a mim com a mais preciosa essência, trazendo consigo a alma de minha Ana.
Eternamente minha!
Diáfana Ana.
Eternamente guardada como uma jóia, na mais perfeita forma de uma boneca!
O meu final feliz!
Entanto, o demônio me enganara...
V
A paixão me consumira e ousei pagar qualquer preço.
Porém, aos demônios não se paga somente com o sangue, com a alma, com a carne. Aos demônios, paga-se com a maldição eterna. O que seria mais sublime que tê-la comigo? Um dia e uma noite de puro deleite. Um dia e uma noite como um príncipe. Entanto, o demônio me enganara. Não percebi o logro imediatamente. Descobri naquela noite quando, enquanto na casa de Ana pranteavam seu cadáver de princesa adormecida, recolhi-me ao universo dos sonhos ainda embargado em deleite.
Crendo que a alma de Ana estivesse na boneca adormeci em paz e sonhei. Estava em meu quarto, dormia, um sorriso repousava em meus lábios. Ela não era minha, era dele, somente dele.
Sorria nos meus sonhos, a consciência livre de qualquer pena, suspirando ainda pela posse, quando um vulto se aproximou do meu corpo desprotegido. Era ela, a minha Ana. Mais uma vez, como tantas vezes a literatura ensinara-me: a criatura voltava-se contra o criador! Pressenti a sombra sobre meu corpo, um frio gelou-me e despertei. Era tarde. Suas unhas cravaram-se em meu pescoço, e gritei. Os olhos vermelhos zombaram da angústia, zombaram da dor que ceifava-me a vida em um beijo gélido.
Morto! Estava morto!
Eis então, como minha consciência conheceu as sombras que chamam morte. Aqui, no escuro lento e pegajoso, onde somos todos prisioneiros, posso ouvi-lo gargalhando, enquanto Ana grita.
Posso vê-la ainda, a Outra, a minha perfeita criação. Os anos passam e sua beleza somente aumenta. Seduz e aprisiona. Assim, durante as noites, ceifa vidas e somos apenas peças em sua monstruosa coleção.
Não fora a Ana que o sangue derramado trouxera-me. Naquela noite insana, libertei o mais cruel dos demônios, dando-lhe a face angelical da mulher que ousei amar. Ana e eu morremos, o escuro renasceu.
Por séculos a boneca que nasceu das minhas mãos hediondas percorreu e ainda percorre o mundo, ceifando vidas e fascinando pela sublime beleza. seus olhos carregam ainda o fascínio da dor de Ana. Aqui, nada valem meus lamentos, aprendi a calar-me. Ah, minha amada Ana, estamos juntos nestes corredores de dor, de sombras, mas não ouso chamá-la. No escuro não posso ser visto. No escuro, monstros iguais a mim não podem me encontrar. A covardia sufoca meus sentidos. No escuro, escuto seus murmúrios, lamentos, choro e a lembrança de sua face suaviza minha dor.
O demônio espreita-me e sei que meu castigo contempla a eternidade nestes corredores sombrios: vagar infinitamente nos labirintos de escuridão, a alma ferida por um amor obscuro.
Re: Contos fantasticos !!!
A Velha casa da Floresta
Terror
- Spoiler:
- A casa era velha. Muito velha! Não era uma casa grande e, olhando bem, nem tão pequena assim que se desse motivo à discussão. As poucas telhas intactas formavam um arremedo de telhado desconjuntado, pífio, que a desonrava. As janelas há muito que não ostentavam os vidros reluzentes, quebrados as pedradas pelos vândalos. As paredes de madeira, pretas, carcomidas pelos cupins, mostravam a sua idade, o seu abandono e, o que impressionava mais as raras pessoas que deitavam-lhe os olhos: a solidão! De fato, fora construída no meio do nada! O quintal e o jardim, tomados pelo capim alto, por pouco não se confundiam com a própria mata fechada que a circundava. A estradinha de chão batido que dava acesso à antiga construção perdera-se no tempo.
Dizia-se, os que costumavam circular por aquelas bandas à procura de caça ou os rumores cultivados pelo pequeno povoado próximo da floresta, que a vivenda encarquilhada era mal assombrada: a alma de uma mulher encontrava-se presa à velha casa numa relação de simbiose indissolúvel! Não raras foram as ocasiões em que os relatos apaixonados dos forasteiros desavisados ou moradores incrédulos da vila davam conta de que “a morta” ficava na janela a seduzi-los com canções e oferecimentos sexuais dos mais variados. Folclore ou não, o fato era que ninguém, principalmente os habitantes das circunvizinhanças, se animavam de coragem para entrar à noite na floresta da casa mal assombrada!
Alice, de súbito, abriu os olhos assustada, atenta, mas enxergou pouca coisa. A visão turva era-lhe de pouca serventia. Instintivamente levou a mão à testa onde considerou como certa a origem da dor de cabeça que lhe atingiu forte. Sentiu entre os dedos um líquido viscoso e, sem atinar ainda muito bem o que havia acontecido, soube na mesma hora que se tratava de sangue! A mão na testa desceu para as pálpebras. Esfregou-as devagar. A visão voltou-lhe plena. Correu os olhos para todos os lados querendo saber onde estava e descobriu, apesar do ambiente envolto na mais completa escuridão, que estava dentro do jipe, o carro de seu namorado!
Então... ela lembrou!
— Aquele maldito tronco de árvore no meio da estrada! – Resmungou entre dentes.
O jipe, conduzido pelo namorado, desgovernou-se da estradinha de chão batido e acabou descendo um declive acentuado, curto, que logo se transformou numa ribanceira que os freios em vão tentaram vencer sem sucesso. Os gritos de desespero dela e de Eliseu, chacoalhados violentamente pelos solavancos da descida forçada, foi a última cena que conseguiu lembrar-se antes de mergulhar no escuro inescapável do inconsciente.
Alice esforçou o braço até o painel acionando o interruptor da luz interna do carro. Antes de fazer qualquer movimento para experimentar a própria condição física, sem estalar algum osso ou músculo do corpo, ela destravou o cinto de segurança. Ignorou momentaneamente a escuridão opressora que cercava o jipe e dedicou sua atenção ao companheiro. Eliseu estava desacordado! O coração de Alice pareceu se comprimir de súbito em considerar a hipótese de seu amado estar morto! Havia um forte hematoma no olho esquerdo, leves escoriações nos braços, pequenos cortes e arranhões na face direita, provocados pelos minúsculos vidros estilhaçados do pára-brisa.
— Oh, meu Deus! Por favor... não! – Lamentou numa voz contida impregnada de pura preocupação enquanto, esquecida das dores do corpo, inclinou-se de lado levando a mão ao pescoço dele para sentir-lhe a carótida.
Ficou em dúvida!
Encostou o ouvido no lado esquerdo do tórax. Sorriu satisfeita.
Ele estava vivo!
Alice não precisou de muito tempo para concluir que Eliseu necessitava de cuidados médicos urgentes. Tratou de sair à cata do telefone celular dele ou dela naquela confusão de objetos espalhados aleatoriamente durante a descida acidentada, o que não eram poucos: comida enlatada, cobertores, travesseiros, materiais de pesca e outras coisas de uso necessário no “camping” para onde estavam indo não muito longe dalí. “Cadê o maldito celular?” Não achou o seu e muito menos achou o do namorado.
— E agora? – Reclamou para si mesmo recostando-se no assento do carro com raiva. Sem mais o que pensar ficou olhando para frente sem perspectiva.
Daí... Alice viu a casa! Viu assim, meio que escondida, meio que distante, entre as árvores! Comprimiu os olhos, como se isso ajudasse a focar melhor o objeto de seu interesse na escuridão da noite. Apesar das janelas escancaradas ao mundo, sem vidros, Alice percebeu uma luz fraca, bruxuleante, provavelmente oriunda de velas ou algum tipo de lamparina a óleo. Havia alguém na velha morada! Nem tudo estava perdido, afinal de contas!
— Ah... eu preciso ir lá... – disse firme enquanto olhava o namorado desacordado. Pegou uma lanterna de sua mochila. Inclinou-se novamente sobre Eliseu dando-lhe um sonoro beijo no rosto. – Fique com Deus! Já volto com ajuda, meu amor!
Abriu a portinhola do jipe saindo para enfrentar a floresta, decidida, não sem antes estar de posse de um facão escondido embaixo do banco do motorista: ferramenta apropriada para abrir caminho em mata fechada.
E lá se foi ela, em noite avançada, à procura de ajuda!
À medida que ganhava terreno, cortando capim, galhos e outros impedimentos naturais a golpe de facão, Alice ao mesmo tempo não tirava da mira a velha morada que ia se revelando aos poucos. A luminosidade da lua por aqueles lados fluía sem obstáculos. O facho de luz da potente lanterna movimentava-se o tempo todo na busca de detalhes. Quanto mais a depauperada residência crescia aos seus sentidos tanto mais a mesma parecia ganhar contornos suspeitos e ameaçadores, como se a parte frontal da casa fosse um rosto deformado, carrancudo, onde um olho, a janela escura, parecia vazado e o outro, a janela do quarto iluminado, tencionava sondar-lhe o corpo devassando à sua intimidade: investigáva-lhe a alma!
Parou horrorizada! As pernas recusaram-se a lhe obedecer!
Decidiu retornar para o Jipe de imediato! Deu meia volta e quando ia iniciar a caminhada de retorno ela ouviu uma voz:
— Moça, espere um pouco!
Alice gritou assustada apontando o facho de luz para o lugar de onde vinha a voz. Armou o facão decidida a decepar a cabeça de alguém que se atrevesse a encostar-lhe os dedos. Preparou-se para enfrentar um maníaco sexual ou um “serial killer”, no entanto viu-se de frente com um velhinho, de compleição frágil, de mãos levantadas para se proteger do golpe mortal.
— Calma, moça! Não tenha medo. Não pretendo lhe fazer mal algum!
Alice olhou aquele senhor de cabelos brancos, magro, de pequena estatura que piscava o tempo todo para se desviar da luz inquisidora da lanterna. Antes de lhe questionar qualquer coisa, ela voltou-se desconfiada para a casa que, de repente, perdera os contornos malévolos que a assustara segundos antes.
— Quem é o senhor? – Ela perguntou baixando as armas.
— Meu nome é Otávio, moça. Estou de passagem para avaliar em que condições se encontra a velha casa de campo de meus pais! – Ele disse em voz mansa, calma e segura. – O que uma moça bonita como você está fazendo aqui, vagueando sem rumo no meio da mata, à noite, hein?
Alice não perdeu tempo em apresentações: contou, sem preâmbulos, a situação do acidente com o namorado que estava desacordado no veiculo acidentado. O velho, à medida que ia recebendo as informações, fazia caras e bocas de preocupação.
— Minha jovem, faça o seguinte: Vá até à casa e peça o telefone celular para Eleonora, minha esposa. Eu vou dar uma olhada no rapaz. Sou médico já aposentado, mas ainda não perdi o jeito, não.
— Mas...
— Vá! Vá, não discuta, moça. O seu namorado precisa de cuidados médicos. Use o celular de Eleonora. Convença os bombeiros de enviar uma ambulância o mais rápido possível.
— É que... – Alice tentou argumentar sobre a má impressão que tivera da casa, mas Otávio não lhe deu tempo passando por ela e indo em direção do lugar onde estava o jipe. Que velhinho esquisito!
Alice acompanhou com o olhar o homenzinho simpático infiltrando-se no meio da noite em direção ao local do acidente. Sorriu para si mesmo porque ele lhe fez lembrar o velhinho atrapalhado de um filme antigo que assistira quando criança: “A dança dos vampiros”. Poucos minutos depois, a jovem desvencilhou-se da floresta fechada chegando nos limites da enorme clareira de capim alto que, iluminada pela lua cheia, cercava a residência maltratada pelo tempo. Antes de investir toda a atenção à casa, Alice percebeu uma senhora já de idade avançada, andando de um lado para outro perto de um “Ford” novo estacionado a cinco metros do alpendre. Devia ser a esposa do senhor Otávio.
— Dona Eleonora? – chamou em tom de voz alto enquanto levantava a mão para atrair à atenção dela . A velha senhora parou no mesmo instante, sem assustar-se, segura de si e olhou na direção de onde vinha o chamado.
Enquanto caminhava para encontrar-se com Dona Eleonora, a jovem permaneceu desconfiada, atenta à casa, esperando que a qualquer instante a mesma se revelasse.
Então, naquele exato momento, inesperadamente ocorreu o primeiro dos muitos fenômenos sinistros que tornariam aquela noite como a pior de todas as noites na vida de Alice. Ela viu, ou julgou ter visto, por um lapso de tempo curtíssimo, não mais do que cinco segundos, uma mulher vestida de branco gesticulando excessivamente no parapeito da janela. A cena lhe pareceu irreal porque a desconhecida desferias golpes violentos de mãos fechadas contra o vazio da janela, como se ela tivesse a intenção de quebrar o vidro da mesma que há muito fora depredado! Aparentava ser uma mulher bonita, de longos cabelos pretos cacheados, rosto fino, delicado, aristocrático! A beleza daquele rosto só não se apresentou em toda a sua plenitude porque a fisionomia hirta expressava revolta e desespero. A boca se abriu exageradamente como se gritasse sem que som houvesse. Os olhos arregalados manifestaram horror, revelaram medo! Talvez até estivesse vendo “coisas”, no entanto Alice considerou que todos aqueles gestos espalhafatosos eram direcionados a ela com o claro propósito de adverti-la: “vá embora enquanto é tempo”!
E achou por bem acatar o “aviso”.
Ela já ia tomar o rumo de volta à mata fechada quando o vulto de Dona Eleonora apresentou-se-lhe firme, solícita e preocupada.
— Moça, o que foi? O que está acontecendo? Você está tão pálida!
— Humm... não sei bem o que dizer, senhora. Parece que eu vi... sei lá... uma mulher pedindo ajuda dentro da casa, sabe?
— Impossível, moça! Não há ninguém lá. Tenho certeza! Eu e meu marido estávamos fazendo um levantamento dos objetos e não vimos ninguém! – disse a mulher idosa intrigada com a estranha que havia lhe chamado pelo nome.
Alice bem que tentou, mas não conseguiu afastar os olhos da janela como se esperasse que a mulher misteriosa fosse aparecer novamente. Estava chocada com o que vira. A cena realmente impressionou-lhe muito a tal ponto de ignorar a presença de Dona Eleonora que gentilmente, diante das circunstâncias, ofereceu-lhe o braço em apoio.
— Vamos, querida, não tenha medo! Você deve estar impressionada com as histórias que as pessoas contam sobre a mulher fantasma que vive nesta casa, mas tudo não passa de folclore, sabe?
— Que história? – Alice perguntou deixando-se levar relutantemente, ainda sem retirar os olhos da janela.
— Bem... hum... dizem que antes de meu sogro comprar esta casa, ela pertenceu a Elias Mendonça, fazendeiro muito poderoso desta região. Foi ele que a construiu, afastada da vila com a intenção de desfrutar discretamente um romance fora do casamento. Ele vinha ver a amante quase todos os dias. Estava apaixonado, mas não poderia abandonar a esposa pelas convenções sociais rígidas da época. Um dia a tal amante adoeceu e os médicos a desenganaram. Dizem que Elias Mendonça a amava tanto que resolveu fazer um pacto com o diabo preservando-a de algum modo. A alma foi extraída do corpo que a doença deteriorava e presa dentro das paredes da casa para que o coronel pudesse conversar com ela todas as noites! Como vê... é apenas folclore!
— Nossa senhora! Que coisa mais mórbida! – Alice disse enquanto a proximidade da casa ia-lhe minando o vigor das passadas até que parou, vinte ou trinta metros distante da velha morada, decidida a não seguir em frente.
— Qual é o seu nome, querida? E como sabe o meu? – perguntou Eleonora postando-se diante da jovem assustada.
— Oh, me desculpe à falta de educação! Esta noite não está sendo muito fácil pra mim,sabe! Meu nome é Alice.
— O que você está fazendo por aqui a esta hora da noite, querida? Você está machucada! Olhe só a sua testa!
Alice ainda encontrava-se hipnotizada pela aparição misteriosa da janela. Não respondeu à velha senhora de imediato. A casa, tinha de admitir, exercia um fascínio impressionante sobre ela. Quando finalmente teve certeza que a mulher de cabelos cacheados não iria mais aparecer, ela procurou dar atenção à esposa de Otavio. No entanto os acontecimentos daquela noite entrelaçavam-se de modo bastante suspeito. De começo, o rosto da velha lhe intrigou um pouco, porém, mesmo considerando a parca iluminação natural da lua, a sensação de conhecê-la de algum lugar começou a tomar forma em sua mente. De repente, de estalo, ela tomou outro susto:
Dona Eleonora era incrivelmente parecida com a mulher da janela!
Poder-se-ia afirmar que se tratava da mãe dela tal eram as semelhanças físicas entre as duas, mas não! Alice, naquele momento, mesmo não sabendo como explicar a si própria, intuição talvez, teve a absoluta certeza de que aquela senhora à sua frente e a suposta alma da mulher confinada à casa eram a mesma pessoa!
Ela estava diante de uma mulher morta!
Alice ficou lívida. Começou a balançar a cabeça negando o que seus olhos registravam enquanto dava passadas para trás. Levantou o facão na altura do peito apontando-o para a outra.
— Afaste-se de mim!
Ela caminhou resoluta, de costas, buscando distanciar-se de Eleonora com o facão em riste.
— Oh, querida, por favor. O que está fazendo? Você está muito abalada! – tentou contemporizar Eleonora juntando as mãos e levando-as ao rosto contrito por não saber o que fazer para ajudar a jovem confusa!
Alice não se deixou comover pela fisionomia condoída daquela mulher estranha, suspeita e dissimulada! Sim, a moça não tinha como ajuizar o torvelinho de emoções contraditórias que lhe embaralhava os sentidos, porém de alguma forma sabia que Eleonora não era o que aparentava ser. Aquela pose submissa de querer ajudar encontrava-se apenas na superfície de uma criatura sórdida, maléfica, mesquinha! Bem diferente da expressão genuinamente desesperada da figura de cabelos cacheados que tentou adverti-la para que fosse embora. Mas como esta contradição era possível se as duas eram a mesma pessoa?
Então, subitamente, Alice sentiu-se agarrada por trás. Os braços fortes de alguém imobilizaram os seus com decisão impedindo-a de usar o facão para defender-se. O coração dela quase saiu pela boca quando viu a máscara de bondade de Eleonora esfacelar-se de uma só vez, dando lugar a um rosto de pedra onde dois pontos negros, implacáveis, gélidos, vasculharam-lhe à alma. O sorriso maléfico da velha foi o que de pior aguçou os maus pressentimentos de Alice: o perigo ia muito além do simplesmente temer por sua vida! Ela encontrava-se a mercê de uma devoradora de almas!
— Otávio, depressa, seu incompetente! – sibilou a megera raivosamente olhando na direção de algum ponto atrás de Alice.
O homenzinho engraçado, simpático, que lhe causara até nostalgia, agora de fisionomia tão circunspecta quanto a da cúmplice, se aproximou de lado rapidamente com uma seringa nas mãos!
— Oh não, não...ai Meus Deus... não, por favor!
Ela sentiu a picada dolorosa nos músculos do braço que retesado pelo medo não impediu que a agulha penetrasse com eficiência.
— Solte-a! – disse a velha cadela à pessoa que a segurava com força.
Alice sentiu-se livre por um breve momento. Notou que a bruxa vinha-lhe de encontro, por isso apertou o cabo do facão firme entre as mãos, mas este parecia pesar uma tonelada. Não chegou a sequer levantá-lo quando sentiu o tapa que lhe estourou na cara violentamente. O golpe fez-lhe retroceder três ou quatros passos, as pernas afrouxavam a cada segundo, a visão começou a se tornar confusa e caiu sentada! Tentou levantar-se sem sucesso. O corpo não queria lhe responder. O sono forçado sobreveio-lhe inapelavelmente. A pobre coitada viu a lua apagar-se aos poucos. Percebeu que a maldita bruxa se dirigia a terceira figura que lhe agarrara por trás. Antes que a escuridão tomásse-lhe os sentidos uma vez mais naquela noite, ela, entorpecida pela droga que lhe corrompia a vontade, ainda pôde ouvir:
— Quanta idiotice, hein? Que papelão! Com milhares de garotas pra conquistar, Eliseu, meu filho, você tinha que se envolver logo como uma “sensitiva” insuportável!
Quando o cheiro forte de álcool lhe trouxe, de repente, à consciência, Alice levou alguns segundos para recompor as idéias do que tinha acontecido. As lembranças se atropelaram deixando-lhe a par da dura realidade dos fatos: fora seqüestrada, vítima de uma conspiração engendrada por um casal de psicopatas disfarçados de velhinhos simpáticos e, o que a deixou completamente arrasada, sem esperanças de sair incólume daquele pesadelo: a participação de Eliseu, o homem por quem se apaixonara.
Ela estava deitada, de costas, amarrada no piso de tábuas velhas e mofadas de um dos quartos da temível casa. Por isso, o seu campo de visão, de início, restringiu-se às telhas e caibros enegrecidos. O ambiente parecia estar muito bem iluminado. Instintivamente queria absorver mais informações de sua situação ao mesmo tempo em que temia saber a verdade da mesma. Ergueu a cabeça com dificuldade explorando rapidamente o campo reduzido das laterais do lugar e não gostou nada do que viu: achou-se posicionada de braços e pernas abertas, completamente nua, ornamentado uma estrela de cinco pontas desenhada no chão em meio a círculos colororidos; uma quantidade espalhafatosa de pequenas velas perfaziam-se, também em círculo, em torno dela! O estômago de Alice sentiu o primeiro choque: quase vomitou sobre si mesma! Já ouvira falar ou assistira um documentário a respeito da tal estrela de cinco pontas: era o pentagrama de Baphomet! O coração dela já acelerado ritmou mais forte. Quisera ela, naquele instante, que estivesse enganada mas aquilo só podia significar que estava fazendo parte de um ritual de magia negra! Seus lábios começaram a tremer. Quis gritar, mas estava amordaçada por um lenço! Não podia pedir ajuda!
Alice esforçou o pescoço um pouco mais buscando enquadrar o foco de visão à sua frente e, horrorizada, confirmou os seus temores: a partir dos seus pés constatou outro maldito círculo, desta vez, desenhado com riscos grossos, acompanhados de quatro enormes velas. Do outro lado da ameaçadora circunferência, viu uma espécie de altar, forrado de cetim branco, com mais velas de variados tamanhos que ladeavam as laterais. Em cima da mesa encontrava-se deitada a velha Eleonora, vestida de túnica branca com desenhos e símbolos diversos. Em pé, ela registrou Otávio paramentado com roupas longas e pretas. O rosto dele estava transfigurado, com os olhos revirados para cima só se podendo ver o branco dos mesmos em transe! Ele emitia, em voz baixa e rouca, uma série de ladainhas em língua estranha. A jovem teve então certeza que se encontrava em meio a um processo pavoroso de ritual satânico. Engoliu a saliva e começou a chorar! As lágrimas lhe escorriam abundantes; ouvira falar que em alguns rituais daquele tipo não era raro a consumação de sacrifícios de animais ou até mesmo de pessoas! Temeu seriamente pela sua vida!
Mas... diante de todo aquele cenário horroroso e hostil, das emoções que lhe invadiam em ondas crescentes, nada ali dentro daquele quarto fétido de bolor e umidade surpreendeu tanto Alice quanto no exato momento em que ela percebeu a presença do espírito da “mulher da janela” em desespero. A aflição extremada da outra, por incrível que pudesse parecer, era maior que a sua, o que levantou um questionamento não menos preocupante: o que poderia atemorizar alguém que já não se encontrava mais no plano terreno ou, simplificando melhor as palavras, o que poderia ser pior do que a morte?
No lado esquerdo, Alice descobriu a desconhecida da janela, vestida de túnica branca tentado sair do lugar sem conseguir. O corpo dela emitia um tênue brilho e, vez ou outra, transparecia e materializava-se de modo intermitente! Algum fenômeno, que não era visível a percepção humana, lhe prendia à parede! Os cabelos cacheados, revoltos pelo manear violento da cabeça em atitude de revolta, caiam-lhe até a cintura. Ela se sacudia para frente e para trás, para os lados, tentava pular, tateava o ar desesperadamente como se quisesse abrir um buraco numa prisão de vidro! A mulher queria fugir daquele lugar a todo custo! Em nenhum momento, enquanto esforçava-se para escapar, ela retirou o olhar alucinado do círculo maior que ficava no centro da ampla sala. Alice, observando de perto, não teve dúvidas: a imagem dela era Eleonora quando jovem!
De súbito, o velho em transe elevou as mãos para cima, alteou a voz rouca e, como num passe de mágica, as chamas das quatro velas engrossaram e aumentaram de tamanho quase chegando a chamuscar os caibros do teto. Aquilo era impossível! Alice começou a rezar apegando-se em promessas a todos os santos que tinha conhecimento. O quarto ficou quente! Eleonora, deitada no altar improvisado, virou o rosto para Alice que foi atingida por um choque de arrepio no corpo inteiro quando encarou os olhos enegrecidos da velha! Eram olhos de um predador esfomeado, seguros, que brilhavam na certeza de que a presa já era de sua propriedade e que a satisfação da fome era apenas de uma questão de tempo!
Eliseu, trajando batina preta de monge, com capuz sobre a cabeça, entrou no quarto segurando um punhal brilhante, de ponta afiada e recurva. Alice começou a soluçar alto abafada pela mordaça. Grunhiu aos prantos por misericórdia! Mal reconheceu o namorado que, de semblante totalmente transfigurado, em transe, assim como o velho Otávio, a ignorava como se ela não passasse de uma barata semelhante as que circulavam perto dela! Da mesma forma que a alma da jovem Eleonora tentava desesperadamente se livrar dos grilhões invisíveis que a prendiam, Alice tentou livrar-se das cordas dos tornozelos e dos punhos retorcendo-se e arqueando o corpo como se estivesse tendo um ataque epilético! Não adiantou nada! As amarras lhe provocaram vergões vermelhos horríveis mas não afrouxaram um milímetro sequer.
O suposto namorado foi até ao altar onde se estava Eleonora deitada. Fez um gesto de respeito a Otavio tomando-lhe o lugar. O velho, de posse de uma um livro enorme, se afastou de lado recitando versos em língua totalmente estranha.
— Meu filho! – Eleonora disse orgulhosa. – Faça o que tem de ser feito!
Eliseu, sem pestanejar, elevou as duas mãos acima de sua cabeça fechando-as firmes em torno do punhal! “A mulher da janela” debateu-se como se tivesse levado um choque elétrico. As chamas das velas começaram a se desprender fazendo um círculo de fogo acompanhando o círculo desenhado no chão! Um vento quente, oriundo do centro da sala, rodopiou pelo recinto tremeluzindo as chamas das velas! Alice começou a perder as forças, seu coração dava saltos, os olhos ardiam, urinou incontinenti, o soluço do choro começou a engasgar-lhe a garganta que se fechava. A ladainha dos dois homens tornou-se alta e intensa! Estavam, com certeza, invocando algum demônio!
E ele veio!
A criatura horrenda, avermelhada, comprida, enorme, emergiu do círculo de fogo de um único rompante! Alice não conseguiu ver a “coisa” de frente porque a mesma, encarava a alma da “mulher da janela” e tentava alcançá-la com as suas poderosas garras. A coitada, tão ou mais apavorada que a própria Alice, negava em gestos com a cabeça e gritava “Não” sem emitir som. Alice engoliu os soluços, obrigou-se a ficar quieta, não se mexeu! Ficou com medo de atrair a besta para o lado dela.
O demônio resfolegou ansioso, sedento, esfomeado em possuir a vítima indefesa à sua frente. Eliseu, então, emitiu um grito horrível e desferiu o punhal violentamente contra o peito da velha Eleonora. No mesmo instante, como um cachorro vigoroso que se desprende da corrente, a criatura deu um único e certeiro bote: inclinou-se numa velocidade espantosa sobre a pobre alma da mulher e envolvendo as garras no pescoço e cintura dela arrebatou-a para dentro do círculo de fogo, levando-a para baixo, levando-a para sempre!
A última coisa que Alice viu antes de desmaiar foi o espectro negro de uma mulher muito bonita, jovem, altiva, arrogante, de sorriso malévolo, deixando o corpo inerte da velha Eleonora que se esvaia em sangue!
Trinta anos se passaram depois daquela fatídica e inesquecível noite. Alice ficou com a casa e não precisou investir muito de si para deixá-la completamente habitável, prazerosa e linda. A casa sempre tivera o seu próprio encanto e brilho! Tudo dentro dela se ajustava ao bom gosto e requinte. Desde os lindos tapetes persas que decoravam o piso de tábuas reluzentes pelo verniz até os extraordinários vitrais que compunham a estética de seu estilo colonial. Uma pérola de moradia! Talvez não o fosse para quem a observasse de fora! Mas para Alice, melhor local para viver em reclusão não poderia existir. Os vínculos que as uniam, ela e a casa, eram indissolúveis. No entanto, naquela noite ela iria embora! Os preparativos já haviam sido providenciados! Olhou assustada para o pentagrama de Baphomet desenhado à tarde no centro da sala de estar sabendo que tinha pouco tempo. Seus pensamentos, de repente, foram interrompidos pelas batidas secas das portas de um carro. Alice viu, apavorada, lá fora, o seu próprio corpo envelhecido pelo tempo voltar-se para a casa e, discretamente, longe das vistas da linda e jovem mulher morena que a acompanhava, aquele rosto, o dela mesmo, emitir o sorriso malévolo devastador. Outros dois homens abandonaram o carro também: o jovem rapaz, um completo desconhecido e o outro era Eliseu, envelhecido também. Alice foi tomada de pânico ao pensar no demônio que iria levá-la para as profundezas desconhecidas. Então, começou a bater com força as janelas da casa e a gritar para a moça morena que acompanhava o trio assassino: “Vá embora! Vá embora enquanto ainda é tempo!”
Re: Contos fantasticos !!!
CARNE DE PRIMEIRA
Terror
- Spoiler:
- Desde pequeno, me habituei com uma alimentação alternativa. Não digo que era uma má alimentação, pois era a única que minha família tinha condições de me dar. Nunca desfrutei de algum conforto e poucas foram as escolhas que fiz por vontade própria nessa vida. Tive uma vida miserável. Vivia nas ruas, migrando de um pontilhão a outro. Integrante de uma família numerosa, nunca soube ao certo quantos irmãos tive – eram tantos. Agradeço por ter um nome, pois eu definitivamente tinha pré-requisitos para ser apenas um número, ou então, ter algum apelido constrangedor. Bom, de fato meu nome não é algo que me livre de constrangimento, mas ter um nome já é um grande começo.
Mas vamos falar de alimentação, afinal, ela é o principal tema da minha vida. Meu principal cardápio, desde a infância, foi o famoso ‘pão velho’. Quando tínhamos sorte, comíamos pães sem bolor e esses dias eram raros. Mas com o tempo, a necessidade de comer carne aumentou e passamos a olhar os cães vira-latas e os gatos de rua, com outros olhos. Eu ainda era criança quando provei pela primeira vez esse tipo de carne. Já era um garoto quando aprendi a matar, limpar e a preparar a carne de um cão. Em pouco tempo adquiri habilidade para fazer o abate perfeito e a facilidade no preparo da carne me rendeu um apelido carinhoso: Cuca. Fui nomeado o cozinheiro oficial da família.
Honrando o apelido, criei novos cardápios e quebrei a rotina de nossa alimentação. Meu menu ganhou dois novos pratos: ratos ou ratazanas – eram os prediletos dos homens, por serem saborosos e por serem feitos como porções individuais – e pombos – mais pedidos pelas mulheres e crianças, por serem menores e serem considerados carne branca.
Vivíamos bem e nossa alimentação tinha melhorado, se comparássemos aos tempos do pão velho e embolorado. Sempre matei a sede com água de torneira, mas por ficar em contato direto com tanto sangue, passei a aderir o rubro líquido em minha refeição. Alguns me chamaram de louco, porém não dei ouvido a eles, o sabor era realmente atraente.
A família estava ficando cada vez mais numerosa e era preciso estar sempre mudando de pontilhão, a fim de acharmos a matéria prima, para matar a fome de tantas bocas famintas. Era muita fome para poucos cães, gatos, ratos e pombos, que cruzavam o nosso caminho. Éramos um bando de gafanhotos e não tardou para que começássemos a brigar entre nós. Nacos de carne eram disputados com selvageria – tínhamos nos tornado animais. A princípio, as brigas eram de socos e ponta pés, mas logo se transformou em lutas em que usavam pedaços de pau como arma. Alguém sempre terminava desacordado.
Certo dia, uma mulher – que não sei dizer se era minha mãe ou minha tia – morreu sem causa específica. Chamaram por mim e pediram para que eu me livrasse do corpo, já que tinha experiência em lidar com coisas mortas. Estava quase terminando de abrir uma cova rasa, num terreno baldio, para jogar o corpo, quando tive a idéia de atualizar o meu cardápio e tentar novas fontes de carne. Longe dos demais, preparei uma porção para provar essa nova iguaria. A diferença no sabor era notável e, diferente daquilo que estávamos acostumados, logo notei que aquela carne era muito mais saborosa. Era uma carne de primeira. Provei outra parte do corpo e logo identifiquei as regiões para ter os melhores resultados e os melhores cortes também.
Levei a novidade para minha grande família e a aceitação de todos me surpreendeu. Não podia deixar de abastecer aquelas bocas famintas com tão apetitosa carne e revelar a origem da mesma; precisava conseguir mais, e consegui. Durante as brigas familiares, tentava agitar, estimular a violência, provocar uma nova morte acidental, mas ninguém queria matar; afinal de contas, ainda éramos uma família. Mas eu tinha ambição, queria sair das ruas, queria abrir um restaurante e ter o meu próprio negócio; e para isso, precisava de carne.
Numa das noites, após uma briga, peguei meu facão de abate e me aproximei de um dos brigões. Não sei dizer se era meu irmão, meu primo ou outro faminto qualquer; desci a lâmina com violência em seu pescoço. Não senti pena, nem arrependimento; matar uma pessoa foi o mesmo que matar um cão, até mais fácil. Nos dias seguintes, o sumiço do sujeito já tinha sido esquecido e todos saboreavam uma excelente carne.
Como disse, meu objetivo inicial era sair das ruas e, para isso, precisava de dinheiro. Tinha prazer em matar e preparar a carne humana, mas não era capaz de roubar dinheiro de ninguém. Não nasci para assaltar. Como todos da família estavam extasiados com a excelente alimentação, nenhum deles quis abrir mão do padrão de vida que já tinham adquirido e não contestaram quando comecei a cobrar a comida. Eu era dotado de um conhecimento que ninguém mais tinha e por isso, foi fácil manipulá-los, para que roubassem dinheiro em troca de comida.
Ainda precisava da matéria prima, então, me concentrei apenas em matar. Comecei com alguns da família, mas logo parti para outros indigentes desconhecidos que ficavam na região. E bem… confesso que comecei a atacar pessoas que passavam pela rua – somente depois de terem sido aprovadas pelo meu olhar clínico. Através do estudo, sabia dizer se a pessoa daria uma carne de primeira ou não. Mas eu não roubei, em toda a minha vida nunca fiz isso. Ganhei dinheiro de forma limpa, honesta, fazendo o meu trabalho – que, modéstia à parte, fazia muito bem.
Nem preciso dizer o quanto meu plano deu certo. Nunca em minha pobre vida tinha visto tanto dinheiro em minhas mãos. Surgiram mendigos de todos os cantos daquela cidade para comer da carne especial. Algumas pessoas, de qualidade de vida superior ao da minha família, também vinham atraídas pela novidade e pelo singular sabor daquela carne. Fiz muito dinheiro, fiz muitas vítimas, mas não existiam corpos. Eu fazia um trabalho perfeito, não deixava traços, nem mesmo pistas. O crime sempre foi perfeito. Sem sobras, sem desperdícios – de cabo a rabo. Com o dinheiro que juntei, decidi seguir meus sonhos. Em uma noite qualquer, peguei minhas coisas e parti. Abandonei minhas origens, minha numerosa família e os pontilhões. Eu parti.
Abri um simples restaurante, longe dali, mas ainda no coração daquela cidade tumultuada. Não queria ver as mesmas bocas famintas, queria novos clientes, queria disseminar a arte de apreciar a carne humana, onde tudo era muito bem aproveitado. O segredo do negócio foi o sigilo. Eu não contava a ninguém a origem da carne. Mas não pense que eu queria enganar as pessoas, de forma alguma. Longe de mim. Apenas queria oferecer o meu produto e saber a opinião de quem o comia, sem a influência da origem. Queria criar apreciadores da verdadeira carne de primeira. Para alguns clientes que questionavam, dizia: “Não julgue antes de provar!”. E funcionava, o cliente aprovava e não mais perguntava.
Trabalhava sozinho. Só tinha algumas garotas para servir e para ficar no caixa. O trabalho de conseguir os corpos e o preparo de todas as refeições era feito por mim. A escolha de um corpo saudável e saboroso tinha que ser feita com cuidado, assim como a forma do abate. Com o sucesso do meu negócio, a demanda de corpos humanos aumentou assustadoramente. Eu precisava alimentar aquelas novas bocas famintas com o melhor produto. As caçadas noturnas começaram a ficar mais difíceis. Algumas noites, era preciso retornar com quatro ou cinco corpos, e minha matança já tinha sido notada. Os policiais rondavam a região como moscas famintas rondam a podridão. Queriam me pegar, mas não havia pistas, nem testemunhas. Eles não tinham nada.
Não irei entrar nos detalhes de minhas técnicas de abate, mas certo dia, em que perseguia discretamente uma jovem, de carne apetitosa, tive a sensação de estar sendo observado. Olhei ao redor e não vi nada de estranho. Continuei e em alguns segundos, a jovem estaria morta e o serviço seria, como sempre, muito bem feito. Sem demora, sem violência, sem desperdício e nem mesmo sangue – ainda tinha o hábito de bebê-lo. Serviço rápido e limpo. Mas instantes antes da jovem dar seu último suspiro, fui surpreendido por um policial, que estava investigando o caso. O sujeito estava nas sombras, escondido na escuridão da rua. Não pude fazer nada para poder me defender…
Meu restaurante foi descoberto, minha vida foi destruída e fui condenado a enfrentar a solitária, onde estou até hoje. Não me arrependo de nada do que fiz, pelo contrário. Soube que criei uma legião de apreciadores da carne de primeira, a matança continua pelas ruas. É uma pena que nem todos chegarão a ter o talento que tenho no preparo da carne humana.
Aqui, não tenho do que me queixar, apenas de uma coisa: a comida, a carne daqui… é terrível. Não consigo comer algo tão ruim quanto uma carne que não seja humana. O prato de comida volta da mesma forma que chega. Apenas bebo água, mas não pense que deixei o hábito de beber sangue, isso não.
Sem nada para fazer, e com a fome consumindo minha alma, coloquei minha cabeça para pensar. Lembrei-me da incrível capacidade que o ser humano tem de cicatrizar ferimentos. Foi pensando nisso que iniciei minha nova dieta. Comecei tirando filetes de carne dos meus dedos; do sangue, fazia o meu vinho. Não fiz o mesmo com a outra mão para não perder a precisão do corte, mas em poucos dias, já cortava bifes de meu braço. Sim, a dor era tremenda, mas o sabor justificava. Você já provou? Deveria.
Não contava com uma demora tão grande no processo de cicatrização. A fome apertava e eu precisava aproveitar outras partes do meu corpo. E foi assim que passei do braço para as penas, das pernas para a barriga, da barriga para as costas – essa parte foi difícil, acredite -, das costas para as nádegas, e das nádegas, eu não sabia mais para onde ir. A fome apertava, mas a dor se tornou insuportável. Não conseguia mais me mover, nem mesmo dormir. O prato de comida era trocado dia após dia, mas me recusava a comê-lo. Não comeria, nem que me alimentassem pela boca. Foi só então que me dei conta de que estava para morrer. Não tinha outra saída.
Estou há quatro dias sem comer e a dois sem beber água. A comida está lá, ao lado do copo d´água, como sempre. O simples movimento de meus olhos já me causam dores insuportáveis, e é por isso que não pego a água. Sim, somente a água.
Minha visão falha e os sentidos ameaçam me abandonar, é a morte que chega para me buscar. Minha consciência está prestes a me abandonar, mas antes disso eu consigo sorrir ironicamente para a morte e dizer em voz alta: “Vou morrer. Morrer por falta de água e não por falta de carne. Não por falta da carne de primeira!”
Re: Contos fantasticos !!!
A BORBOLETA NEGRA
Insólito
- Spoiler:
- Sofro de uma insólita doença cujo principal sintoma constitui-se em um sono extremamente profundo e absurdamente prolongado, do qual a origem é completamente desconhecida pela "ciência". O que aqui relato é meu último período de manifestação da enfermidade, durante o qual dormi por nada menos que 14 dias, sem a mínima interrupção. Nada, nem ninguém, obteve êxito em me acordar. O mais assombroso é que ao longo das crises de sono, sinto-me desprender do corpo, e minha alma flutua pelo quarto, observando a tudo e a todos. E mais: voando em plena liberdade, posso deslocar-me a qualquer região do planeta, ainda que as visões, seres e fatos que eu contemple sejam, em muitos aspectos, essencialmente diferentes e estranhos à vida comum dos humanos. Muitos dirão que são sonhos fantásticos de uma pessoa doentia e mentalmente perturbada. Não os condeno, pois não têm minha experiência. No entanto, permaneço em plena consciência durante o sono, mental, emocional e espiritualmente.
Não negarei que realmente eu seja uma pessoa doentia, mórbida aliás, vítima da peste negra incurável, fatal do Romantismo, e que seja mentalmente anormal, tendo a alma envenenada por leituras de Goethe, Poe, Blake e outros absurdos, mas isso em momento algum afetou meu estado de consciência, talvez o tenha tornado até mesmo mais profundo, se levarmos em conta que a realidade é uma ilusão, e os homens, marionetes controlados por cordinhas.
Mas o que ocorreu foi o seguinte... Serei extremamente sintético... Sendo eu um indivíduo intensamente sensível, portanto totalmente ultrapassado para nossa miserável e pós-moderna época, nos 14 dias de sono ininterrupto, vivi as mais diversas e arrebatadoras sensações do além-mundo, estando completamente alheio a tudo o que ocorria na humanidade (felizmente, estava livre de tanta mediocridade vulgar). No último dia da longa crise de sono, estando pairando em meu quarto, enquanto o corpo jazia inerte no leito,, percebi que de um quadro magnífico colocado na parede, desprendeu-se uma gigantesca borboleta negra. Esclareço que a borboleta era parte da pintura, não era um ser vivo, era uma imagem, ao menos até o instante de desprender-se. Mas o fato é que o inseto voou por todo o ambiente com uma leveza melíflua de uma elegância mágica. A atmosfera de meus aposentos impregnou-se de densas auras sobrenaturais. A borboleta pousou ao lado de meu corpo adormecido e num piscar de olhos metamorfoseou-se em belíssima mulher de negras asas. Mulher de asas? As mulheres sempre possuem asas. Ou de anjo ou de galinha.
O ente feminino beijou-me com sublime e avassaladora paixão, e senti na alma a chama dos beijos que eram pousados na minha boca, e nunca, jamais, minhas emoções a(s)cenderam-se em tão elevado grau, imaginei-me transportado ao palácio de amor do Anjo Anael. A bela mulher, em seguida, abrindo suas enormes asas sombrias, avançou até meu espírito, trazendo consigo todos os espectros e flamas fantasmagóricas do sentimento exacerbado aos máximos níveis das possibilidades humanas. Do poço de seus olhos transfiguravam-se irradiações de febre, e um vulcão explodiu em meu peito, eu apaixonava-me terrível e catastroficamente. Não era uma mulher, era uma fada. Se boa ou má, ainda não sei dizer.
Em seqüência, através de um infinito carinho enigmático, realizando um gesto misterioso e que não descrevo, disse-me gravemente: "Agora conhecerás o que ocorreu no mundo físico". Em segundos, tudo ao meu redor transformou-se em uma paisagem desolada, e soube, através da mirífica...deusa? que a 3ª Guerra Mundial principiara, que uma bomba atômica caíra próximo à minha cidade, que tudo fora destruído, e todos estavam mortos, inclusive eu, e que o meu quarto não era meu quarto, e que o meu corpo não era o meu corpo... eram formas psíquicas advindas de um coração inflamado, visões virtuais das efígies de uma imaginação alucinada...
Abracei-me à fada de asas negras e, letárgicos, partimos rumo ao Desconhecido...
Re: Contos fantasticos !!!
O corredor
TERROR
- Spoiler:
- No outdoor, enquanto o cowboy fumava, as luzes de néon invadiram as cortinas vulgares. Na penumbra do quarto abafadiço, um ventilador girava suas engrenagens corroídas quando Paulo moveu-se na cama, murmurando, preso aos sonhos. O suor escorria-lhe pelo pescoço. Ainda adormecido, passou a mão na pele pegajosa. A noite estivera abafada, e o ventilador, em sua ladainha espalhava a poeira que os hotéis guardam com o tempo. A música vinda da rua era dolorosamente bela: — For you I'm bleeding... For you, for you…
Fora a canção que o despertara. Ainda naquele estado de sonolência, as mãos procuraram o pequeno celular embaixo do travesseiro. Abriu os olhos e viu no painel azulado que ainda faltavam quinze minutos para às quatro horas. Mais uma vez despertaria e seguiria viagem, deixando aquele hotel. Suspirou, ah como odiava acordar antes do despertador, roubado em quinze minutos do seu sono. Virando a cabeça para o lado, olhos fechados, empurrou os lençóis para longe, evitando pensar no dia que logo se iniciaria. Tentou não sentir a boca ácida, guardando resquícios de whisky , enjoado com o cheiro da maquiagem e do perfume barato de alguma prostituta que lhe fizera companhia parte da noite. Vencendo a náusea, cobriu a cabeça para fugir da luz vinda da janela. A canção havia desaparecido apesar da melodia ainda ecoar.
Havia sonhado, a imagem ainda clara em sua mente: asas de borboletas, lábios que balbuciavam palavras que não conseguira entender. Na modorra entre o sono e a realidade, sabia que voltaria a sonhar com a menina, segurando algo não identificado e murmurando.
A cabeça moveu-se no travesseiro úmido, os sentidos entorpecidos, novamente adormeceu. Viu-se em um corredor escuro, cercado por quartos em ruínas e paredes grafitadas. Seus passos arrastavam-se no chão escorregadio, enquanto uma água fétida surgia fininha na parede ao lado, cores embaçadas da madrugada envolviam a tudo.
Cada penugem do seu corpo arrepiou-se quando a canção cresceu, entrecortando a melodia, ouviu seu nome em sussurros. Pressentiu nas sombras um vulto passando. Virou-se devagar, indeciso entre correr e o medo que o paralisava, no entanto, não havia nada, nada além uma porta entreaberta, de onde vinha um soluço, um pequeno lamento. Paulo empurrou a porta devagar e de repente, todos os seus membros amorteceram-se: era ela!
Estava encostada na parede, em um canto imundo, cercada por teias de aranhas, quando ele a viu. Bianca, os cabelos dourados em duas tranças e a fita solta pelos ombros. A velha angústia o envolveu, o ar faltou quando a dor tornou-se física. Sem perceber, uma lágrima começou a cair dos seus olhos. Balbuciou o nome que há muito não ousava pronunciar e os olhos amendoados ergueram-se, fitando-o sem parecer reconhecê-lo, os lábios cheios e rosados abriram-se, implorando:
— Socorro, por favor...
Paulo via os lábios moverem-se em um pedido mudo, ouvido-a dentro de si quando ela apontou com os braços finos o outro canto da sala. Ali, bem a frente de Bianca, da sua Bianca, um gigantesco escorpião retorcia-se. Feroz, a pele estranhamente branca, o animal possuía no ferrão que agitava-se ameaçador, uma ponta vermelha. O ferrão ia e vinha em direção a moça, cada vez mais perto. Paulo olhou ao seu redor, nas mãos viu-se de repente com um facão. Ele avançou aço contra carne, quanto mais fortes eram os golpes, mais o peçonhento se debatia, os olhos arregalados e azuis explodindo em sangue. As sombras cresceram por todo lado levadas ao som dos gemidos finos que subiam pelo ar, até que a carcaça albina jazia derrotada. Levantou os olhos, entretanto ela já não estava ali, apenas a ponta do vestido branco arrastando-se pela porta. Desesperado, ele a seguiu pelo corredor enlodado, quando enfim os corredores bifurcaram-se, ele a viu, esperando-lhe. As tranças douradas, a fita azul, a renda suave enfeitando a borda do vestido, como da primeira vez que a vira. Os mesmos olhos amendoados fitando-o, em expectativa. Ela agora em seus braços, a boca na sua, a pele, o cheiro que nunca o havia abandonado expandiu-se quando os braços o envolveram. Paulo tremia enquanto seu corpo a prendia na parede, explodindo de ternura e paixão, tocando-a por cima do algodão, sentindo o coração batendo sob o seu peito, ele chorou. Nos corredores sombrios, as notas espalhavam-se: — And every new dawn... ends in bitterness ...
O ventilador movia-se lentamente no quarto. As hélices foram parando, parando até que o silêncio sufocou as horas e Paulo acordou. Os olhos estavam úmidos. Os soluços irromperam no peito do homem. Abraçou o próprio corpo, sentindo o cheiro da pele amada, depois de tanto tempo, porque sua mente a trouxera de volta? A velha dor... amarga dor. O calor crescia. Novamente procurou o pequeno celular, os números diziam claramente: 3horas e 45 minutos. Um pesadelo, um maldito sonho. A cabeça repousou no travesseiro, aquela noite havia sido longa, sentia sede, os lábios ressecados. E ela. Ela impregnando-se em sua alma. Fechou lentamente os olhos, mais quinze minutos, na esperança de tê-la um pouco mais, forçou o corpo a descansar novamente. Foi se deixando embalar pelo sono até que o sonho voltasse. Estava novamente no corredor escuro. Na parede, recortes de jornais manchados de sangue exibiam letras turvas que o papel embolorado não permitia ler.
Os sussurros agora chamavam por seu nome, enquanto ele corria, tocava as paredes do corredor escuro que pulsavam sob suas mãos. Ouvia os passos leves, revendo o campo onde ele e Bianca haviam corrido pela primeira vez, sonhado tantos sonhos, dançando na varanda, as faces tocando-se, ah, era a mesma melodia.
Uma porta abriu-se ao seu lado. O mesmo lamento de antes veio de uma sala em ruínas. A menina com asas de borboleta estendeu-lhe os braços, murmurando palavras mudas, oferecia-lhe algo que não conseguia identificar. Quando um ruído feroz quebrou a mesa de vidro, ela afastou-se, entristecida. Um riso áspero cortou a sala e no outro canto, Bianca chamava por ele, implorando por socorro. O escorpião branco erguia-se, porém Paulo sentia seus pés presos no lodo imundo da sala. A agulha rubra tocou a face pálida. Bianca gemeu quando o ferrão vermelho perfurou-lhe o peito, a ponta fina dilacerando a renda branca, rasgando a carne e o tecido até um rio rubro escorrer pelo chão, o ventre dilacerado e, horror dos horrores, um bebe chorava entre as vísceras. Paulo gritou, gritou, gritou, até acordar com o próprio grito, as imagens congelando-o na cama, o ódio tomando-lhe o peito. Viu-se preso na velha angústia sem conseguir para de gritar, revendo o casamento, a família, o bolo, a valsa, as imagens dançavam em sua mente: Bianca sorrindo, Bianca no jardim, Bianca voltando do médico, Bianca caída no chão da sala, sangue por todo lugar e desde então, uma viagem eterna por hotéis, adormecendo nos braços de putas decadentes, embriagando-se com whisky barato, fugindo da dor.
Ao perceber que ainda gritava, Paulo tentou levantar-se, mas a dor na cabeça o impediu. O celular caído no chão marcava ainda 3horas e 45 minutos. Olhou para o teto tendo a impressão de que este estava cada vez mais perto. Sequioso, sorveu um resto de água mineral da garrafa caída sobre o tapete, para não ver as sombras que tanto temia fechou os olhos, vendo-se outra vez no corredor estreito, os gritos de Bianca chamando por ele, jurando-lhe amor, pedindo, implorando por socorro, enquanto o escorpião albino balançava ferozmente o ferrão vermelho, os olhos dela nos dele, tantas palavras não ditas, a velha dor.
Via-se de novo no sonho, consciente, porém preso, hipnotizado entre sonho e a realidade, não podia reagir ao escorpião branco que foi se aproximando. Paulo debatia-se, os braços amarrados, sabendo sem razão que enquanto gritasse estaria salvo. Foi quando, em um canto, percebeu a menina-borboleta, entristecida, estendendo-lhe os braços. Em suas mãos, reconheceu um antigo espelho. Quando Paulo viu-se refletido, o ar faltou-lhe, e num arquejo... era ele no espelho! Era ele era o escorpião branco! Era ele a fera. O ferrão que dilacerou o ventre amado, julgando ferir uma semente que não aceitava como sua, partiu dele! No rosto da menina que o fitava, reconheceu seus próprios olhos azuis e as tranças douradas de Bianca. Finalmente entendia o que ela murmurara, em monossilábicos gemidos:
— Por quê, meu pai? Por quê?
*************
Eram oito horas da manhã, quinta-feira cinzenta, quando os jornais noticiavam a execução por injeção letal. O condenado havia cometido o crime de uxoricídio. A esposa estava grávida e por milagre a criança sobrevivera. Quatorze anos passados em silêncio aterrorizante, vários laudos depois, enfim a sentença se cumpriria. Na pequena sala, uma jovem de cabelos trançados observava, ao seu lado, um relógio parado marcava 3 horas e 45 minutos. Com olhos marejados, viu enfim a injeção letal perfurar a tatuagem de um escorpião no braço do pai. Para ela... era o fim.
*************
No velho quarto de hotel, as luzes de neon apagaram-se quando a garota-borboleta partiu. Paulo ficou sozinho no velho corredor, ouvindo a melodia dentro de si, “for you, for you i'm bleeding” e ao longe, a voz suave de Bianca pedindo por ele. Sentindo às suas costas o escorpião branco rastejar nas sombras da eternidade, seus passos seguiram pelo corredor. Para ele, estava apenas começando.
Re: Contos fantasticos !!!
NA ÚLTIMA CURVA
Terror
- Spoiler:
- — Conheço um hotelzinho ótimo onde você pode passar a noite. Mas acorde cedo pra não chegar atrasadinho amanhã.
A secretária loira, cujo nome deve ser esse mesmo, era do tipo que gostava de chamar a atenção. Por não ser criativa, apelava para as vexatórias piadas pré-fabricadas de escritório, tão deslocadas quanto o decote que ostentava.
Passava da meia noite, eu tinha atravessado a madrugada anterior preparando relatórios que ninguém leu e viajado seiscentos quilômetro para conhecer o novo diretor geral na matriz. O memorando dizia: “venha puxar o saco do novo diretor. Presença obrigatória”. E eu fui.
A reunião durou seis horas, ele prometeu muito e não propôs nada. Alguém disse que jantaríamos no melhor restaurante da cidade para encerrar o encontro. Pensei em grampear minhas pálpebras na testa para mantê-las abertas, mas outro colega fugiu com o grampeador para o banheiro.
— O gráfico estava bonitinho, foi você quem fez?
Com as coxas encostadas nas do novo diretor, a secretária loira exibia um sorriso convidativo. Eu sabia que eles iam esticar a noite em um hotelzinho bonitinho, bem pertinho, que podiam pagar com o cartãozinho corporativo e ainda chegar cedinho no trabalho amanhã.
O garçom anunciou que a cozinha ia fechar e um minuto e treze segundos depois eu estava no carro, voltando pra casa.
Se eu não tivesse que me encontrar com um fornecedor, bater uma meta, demitir um funcionário, contratar outro, levar minha filha ao dentista, comprar um presente de aniversário para minha esposa, sair com o cachorro pra passear e rasgar os relatórios que ninguém leu, tudo no período da próxima manhã, não teria voltado durante a madrugada. Mas a vida é dura, e o tempo é curto. Foi o novo diretor quem disse isso.
Pelos vidros baixados, a brisa soprava em meu rosto abatido, sustentando as pálpebras pesadas pela falta de sono. O cheiro azedo do suor já me incomodava mais que todas as dores musculares. Um banho gelado e poucas horas para dormir, era disso que eu ia dispor ao chegar.
Tente ficar dois dias seguidos sem pregar os olhos. É uma experiência divertida. A princípio, nem parece fazer diferença, exceto pelas olheiras. No entanto, conforme o tempo passa, seus movimentos ficam lentos, assim como sua fala e pensamentos. Vem uma dor de cabeça que começa atrás dos olhos e sobe, parando bem no alto do crânio. É como usar um macaco louco com um martelo nas mãos no lugar de um chapéu, e você ainda baba e acha graça por nada parecer real.
Pestanejei rápido e me assustei, alinhando as costas no assento e fazendo o carro balançar com suavidade, sentindo o atrito dos pneus sobre o asfalto e afastando o torpor. Passei as mãos pelo rosto, esfregando os olhos ardidos com dedos suados.
Meus intestinos protestavam em uma cólica ruidosa, que denunciava que o jantar tinha batido mal. Avistei uma placa que indicava sessenta e quatro quilômetros até a cidade. Falta pouco, pensei, e dormi. Pelo menos, eu acho que era isso que eu pensava. Nossos últimos pensamentos sempre se perdem quando caímos no sono. Talvez eu ainda tenha pensado em algo mais.
Acordei quando uma das rodas saiu da estrada e caiu no acostamento. Despertei puxando o ar para dentro dos pulmões com tanta força que senti o peito queimar. Por milagre, tirei o pé do acelerador quando apaguei, e o carro foi perdendo velocidade, até sair pela mão contrária e pousar suavemente fora dela. Isso eu entendi depois, pois quando voltei a mim, por reflexo, meti o pé no freio, parando na lateral pedregosa da pista.
Meus olhos estavam nublados, tentando desvendar o quanto eu tinha avançado inconsciente pelo caminho. Vi a placa dos sessenta e quatro quilômetros à frente, refletindo a pouca luz. Passaram-se apenas alguns segundo, um tempo enorme.
— Puta que o pariu!
Nunca senti meu coração batendo tão rápido e de forma tão ruidosa como naquele momento, com a poeira entrando pelo vidro aberto. Tremia tanto que não conseguia fixar as mãos no volante. Fiquei ali por um tempo, degustando uma porção de náusea e tontura. O sono tinha desaparecido, graças à descarga súbita de adrenalina. Só ao ter certeza que meus pés iam se manter firmes sobre os pedais, é que dei a partida e segui adiante.
Algumas imagens começaram a pipocar em minha cabeça. A da minha esposa, atendendo uma ligação na madrugada, e algum infeliz mal humorado contando a ela que eu tinha sido esmagado por um caminhão, que transportava galinhas para uma granja, se misturava com a de alguém comentando no escritório da matriz: “coitadinho, eu falei pra ele dormir em um hotelzinho”.
Já ouvi histórias assim. Você começa não se conformando que tenha acontecido com você, fica puto, depois agradece aos céus e, por fim, começa a se achar o máximo. Quilômetros à frente, eu ria. Puta que o pariu, eu podia ter morrido, mas estava vivo. Eu era demais mesmo. Talvez nem demitisse o funcionário que precisava ser demitido pela manhã.
Liguei o rádio, apesar do macaco agora ter dois martelos para bater em minha cabeça. Tentei me enganar, pensando que eu queria música por estar feliz, mas era o medo que exigia uma distração. Fiquei surpreso com o bom gosto da programação e acompanhei a canção, atento à estrada.
“Every single day, every word you say, every game you play, every night you stay, I’ll be watching you”
Fui cantando e batendo os dedos no volante. O carro fez um mergulho e avistei uma curva à frente, com o brilho intenso dos faróis iluminando não só a estrada, mas também uma figura postada diante de uma placa, poucos metros antes da pista dobrar para a esquerda. Tive que forçar os olhos, me aproximando do pára-brisa para conseguir enxergar. Achei que era um motorista com problemas, mas ele não sinalizava ou se movia e ao chegar bem perto, senti como se uma mão invisível esmagasse minha garganta.
O homem devia ser alto, mas estava curvado para frente, o que lhe diminuía o tamanho. Tinha o queixo apoiado no peito, expondo mais a testa do que qualquer outra parte do rosto. A camisa era um trapo imundo, de cor indefinida, vítima de uma praga que a cobria de manchas escuras e buracos. A calça descia abrindo-se em muitas tiras retorcidas e duras de tecido, até os pés tortos, dobrados em uma posição impossível. Os braços pendiam, secos e apáticos, ao lado do corpo.
— Santo Deus!
Um acidente, com certeza. O coitado devia estar ali a um bom tempo, já que eu não tinha cruzado com nenhum outro veículo nos últimos quilômetros. Estava pronto para jogar o carro no acostamento, parando diante dele, quando seus olhos se levantaram. Aquilo fez o meu sangue gelar, ardendo em minhas veias. Suas pupilas eram duas bolas vazias e opacas. Das sombras, sua boca se revelou. Garras pareciam ter arrancado seus lábios, deixando um rastro de pele e músculos retalhados da ponta do queixo até a orelha direita, descortinando as gengivas e os dentes escuros em um eterno e macabro sorriso.
Não pisei, finquei o pé com toda minha força no acelerador e sai cantando pneus. Lancei o carro para a mão oposta para passar o mais longe possível daquela coisa que me acompanhava com os olhos mortos, escancarando a boca horrível para gritar algo que não consegui ouvir. Seus braços levantaram com um esforço terrível, tentando alcançar o veículo que disparava, fazendo a curva e desaparecendo.
— Meu Deus! Meu Deus do céu!
Eu me apertava na direção, sentindo dedos gelados que não existiam acariciando minha nuca, voltando os olhos a todo o instante para o retrovisor. Temia que ele surgisse dentro do veículo e me agarrasse pelo colarinho. Eu estava alucinado, guiando em alta velocidade e derrapando nas curvas. Não conseguia engolir. Minha língua estava presa ao céu da boca, impedindo o coração de subir pela garganta e fugir, saltando para a noite.
Cento e dez. Cento e vinte. Cento e trinta. Eu avançava, contando os segundos para chegar em casa e me jogar na cama, cobrindo a cabeça e escondendo meu terror embaixo dos edredons, como fazia quando criança. Era isso que me mantinha na estrada, a vontade de entrar na caverna e ficar oculto em sua segura escuridão até o nascer do sol, apagar o que eu não podia entender.
Um outro eu, muito mais racional, tentava me dizer que aquilo não tinha acontecido. Era o stress e a falta de sono. Na pior das hipóteses, meu medo tinha me obrigado a abandonar um ser humano que precisava de ajuda em uma estrada deserta.
— Vai tomar no cu, porra!
Não tinha carro algum. Não tinha acidente nenhum. Eu vi aquela coisa. Um pesadelo vivo pedindo carona. Uma alucinação doentia tomando a minha frente. Não sei, mas eu vi. Estava lá, me perseguindo, e levantou sua mão imunda, gritando em minha direção. Como isso podia acontecer?
“I’ve been looking so long at these pictures of you
That I almost believe that they’re real”
Desliguei o rádio com um tapa. Cento e quarenta. Cento e cinquenta. Desacelerando nas curvas, que eram cada vez mais difíceis de fazer. Não só pela velocidade, mas porque a tensão deixava meus braços rígidos, e eu apertava a direção com tanta força que as pontas de meus dedos já estavam dormentes.
Percorri, em alguns minutos, o que levaria meia hora para cobrir, graças ao pavor que me forçava a acelerar sem trégua. Calculei que logo ia ver as primeiras luzes da cidade aparecendo ao longe, pontinhos luminosos desalinhados em uma geografia irregular.
O carro curvou-se em uma descida acentuada, rangendo ao bater no ponto onde ela se tornava uma reta e logo dobraria para a esquerda. Vi mais uma placa e acompanhei a informação, sem conseguir desgrudar o olhar incrédulo dos números que apareciam diante de mim.
— Mas, que puta que o pariu é essa?
Voltei os olhos para a estrada e lá estava ele, bem no meio da pista, a bocarra aberta e os braços estendidos como se quisesse abraçar o carro que voava em sua direção.
Avistar aquele homem saído de meus pesadelos foi como ter uma serpente de gelo subindo por minhas pernas, provocando um calafrio sísmico, que explodiu em uma contração dolorosa no estômago, um relâmpago de pavor que me impedia de respirar.
Colei as costas no assento e, sem pensar, guinei para a esquerda, desviando no último instante e ouvindo a batida dos dedos escuros da criatura na lateral do veículo. Não foi uma manobra inteligente. Percebi que o lado do passageiro erguia-se no ar, já que eu andava em duas rodas. Agarrei o volante e agradeci aos céus por ter colocado o cinto. Os faróis desenharam uma série de arcos sobre o asfalto, enquanto o carro girava no ar com um rugido metálico. O mundo se espatifou em centenas de estilhaços brilhantes, que voaram atingindo meu rosto e peito, entrando na pele e se fundindo a mim. O som era enlouquecedor. Mesmo assim, eu ouvi o que a criatura gritava com sua boca bizarra.
— Acorde!
Sombras. Arredias e translúcidas. Era o que eu via entre minhas pálpebras inchadas. Um universo de formas difusas cobertas por um brilho cintilante. Tentei me mover, mas não consegui.
— Acorde, homem!
Juntei tudo o que restava de minha força de vontade para abrir os olhos e, mesmo com eles arregalados, não consegui distinguir o que estava diante de mim.
— Pode me ouvir, senhor?
Eu ia balançar a cabeça em afirmação, pois estava cansado demais para falar, mas eles já tinham fixado o colar cervical, e não pude mover nem um fio de cabelo.
Fiquei assustado e tentei me levantar. Foi como tomar vinte facadas ao mesmo tempo, em diferentes pontos vitais do corpo. Fui repreendido pelo paramédico, e a dor me fez ter certeza que minhas pernas e braços ainda respondiam a meus comandos.
— O senhor sofreu um acidente muito feio. Não tente se mover.
Levantaram primeiro a cabeceira da maca, não sei se era o procedimento ou se foi falta de sincronia entre os carregadores. A inclinação me permitiu ver o carro, tombado com as quatro rodas para cima, e achatado como se um gigante tivesse pisado sobre ele. Os pedaços de vidro se espalhavam até onde as vistas podiam alcançar, refletindo o brilho tênue do sol, que se levantava no horizonte.
Chorei de dor e pra dar vazão ao desespero.
Quando me colocaram na ambulância, pude ver um bombeiro carregando a placa retorcida de metal, que devo ter atingido com o carro, indicando sessenta e quatro quilômetros até a cidade.
Re: Contos fantasticos !!!
A inumação do necrófilo
- Spoiler:
- Fiquei perplexo!... Em estado de choque!
Assim fiquei quando, certo dia, ao amanhecer, descobri que uma das sepulturas do meu cemitério havia sido violada. E o que mais me impressionou foi o fato de que o autor desse crime manteve relações sexuais com o cadáver.
Lutei para acreditar que não estava louco e, não obstante, não estava mesmo.
O cadáver era de uma mulher, apresentava já um estado de decomposição e exalava um odor insuportável. Encontrava-se completamente nua e com as pernas escancaradas. Havia gotas de sêmen que iam da vagina até a altura dos seios. Por um momento, fiquei ali imóvel, um sentimento de nojo e terror, acompanhado por um calafrio, gelou-me a espinha.
Retornei meio aturdido ao meu casebre, que ficava nos fundos do cemitério, peguei uma pá, pregos, martelo, uma corda e voltei ao local do crime.
Apanhei o cadáver gelado e podre, deitei-o no caixão com as mãos cruzadas sobre o peito e, em seguida, tampei-o. As travas haviam sido arrebentadas, por isso, tive que pregar a tampa por inteiro. Enrolei a corda ao meio do caixão e, com um grande esforço, conduzi o pesado volume até o fundo da cova e o enterrei.
Nesse mesmo dia não consegui fazer outra coisa, a não ser pensar no incidente que eu presenciara. Pensei em procurar ajuda policial, ou até mesmo comentar o acontecido com alguém, mas não o fiz porque, de certa forma, eu tinha um grande respeito pelos que já morreram e, também, tinha pavor a escândalos. Mas não sei como nem por que, eu sentia que esse não era o motivo certo pelo qual não procurei ajuda.
Por fim, achei melhor pôr um ponto final e esquecer esta história. Mas durante semanas não consegui me livrar da imagem da morta. À noite, acordava aterrorizado, banhado de suor, tinha a impressão de que, quando dormia, ela ficava a me vigiar, a velar o meu sono.
Isso quando não tinha a impressão de ouvir o eco de sua gargalhada demoníaca vindo da tumba a percorrer o caminho até o meu quarto.
Uma manhã, quando fui regar as flores dos túmulos, deparei-me com a mesma cena anterior. A sepultura de outra mulher havia sido violada e o cadáver, completamente nu e com as pernas escancaradas, havia sofrido abuso sexual. Novamente, apanhei a pá, martelo, pregos e voltei pensativo ao local. Enquanto colocava o cadáver podre no caixão, pensei:
“Esse indivíduo só pode ser alguém conhecido e que, também, conhece muito bem o cemitério”.
E não me enganei nos meus pensamentos. Ao depositar o corpo no caixão, percebi algo que parecia uma carteira, meio soterrada no montante de terra. Peguei-a, abri-a, e finalmente vi nos documentos quem era o necrófilo que mantinha relações sexuais com meus mortos.
Cornélio: este era o nome do elemento responsável por aquela profanação aterrorizante. Tratava-se de um mau caráter leviano e morava a dois quarteirões do cemitério. Mas é claro! Como eu não pensei nisso antes? Só poderia ser o maldito Cornélio. Eu o conhecia muito bem, exceto sua perversão sexual.
Confesso que fiquei um pouco surpreso, pois todos os vícios que se possam imaginar – ele tinha, mas sofrer de necrofilia, já era demais. Pus fim à minha tarefa, cobri com a tampa o caixão, preguei-a, envolvi a corda ao meio dele, conduzi-o até o fundo da cova e o enterrei. Peguei meus instrumentos de trabalho, a carteira de Cornélio e fui para casa.
Ao chegar, abri uma garrafa de rum, acendi um charuto e comecei a pensar comigo mesmo: “eu tenho agora em minhas mãos as provas para colocar o miserável na cadeia, sim, é isso mesmo que eu vou fazer”. A garrafa de rum já estava um pouco menos da metade quando resolvi, finalmente, ir até a polícia. De repente, hesitei, não sei explicar como, mas pensamentos macabros e sentimentos sombrios apoderaram-se do meu espírito. Dir-se-ia que eu agora era a perversidade em pessoa.
Decidi não ir até a polícia e comecei a premeditar um castigo terrível contra o Cornélio. Eu precisava acabar com aquele patife sem deixar nenhum rastro. Sabendo do seu fraco por excessos e de sua atração por cadáveres, resolvi atraí-lo para uma emboscada sem que ele suspeitasse. Verifiquei se tinha bebida alcoólica suficiente para executar o meu plano diabólico. Ah! Ah! Ah!...
Uma noite, por volta das vinte e duas horas, fui à casa dele, bati palmas, chamei-o e ele apareceu sem desconfiar de nada.
— Boa noite – disse eu. – Oh, meu bom amigo Cornélio, queira me perdoar por estar-lhe incomodando a esta hora da noite! Mas, é que já faz algum tempo que tento falar com o senhor e não consigo.
— Sim, em que posso ser útil? – Disse ele.
— Bem, eu achei sua carteira na calçada próxima ao cemitério e guardei-a em minha casa. Como não sabia que iria encontrá-lo, deixei-a lá. O senhor quer ter a bondade de acompanhar-me até a minha humilde residência?
— Mas, a essa hora senhor? – Indagou.
— Ora, vamos senhor Cornélio. É rapidinho, não me diga que está com medo dos mortos?
— Não, é claro que não, é que...
— Ora, vamos, não há o que temer, o cemitério é um lugar de paz, temos que ter medo dos vivos e não dos mortos.
E seguimos para o cemitério, um lugar onde pessoa nenhuma me visitava, principalmente, à noite. Passamos por um longo corredor entre os túmulos guiados por uma lamparina até chegarmos em casa. Em nenhum momento, Cornélio demonstrou preocupação e medo, ou desconfiou de nada.
Abri a porta, entramos, pedi que se sentasse e ficasse à vontade enquanto eu ia buscar sua carteira. Peguei a carteira de Cornélio, duas canecas, uma garrafa de rum, um tabuleiro de xadrez e voltei à sala onde ele me esperava.
— Aqui está sua carteira, senhor. – Disse eu.
— Obrigado – respondeu. – Bem, já é tarde, eu preciso ir embora.
— Não, - eu disse educadamente. Ainda é cedo, fique um pouco mais, eu sou um homem muito solitário e os mortos não me fazem companhia. Por favor, sente-se, tome um pouco de rum comigo e joguemos uma boa partida de xadrez, sim!
—Tudo bem, mas, sem demora.
— Perfeito, - sente-se.
Eram quase vinte e três horas. Cornélio havia ganhado duas partidas de xadrez e eu uma. Quando dizia que iria embora, eu encontrava meios de segurá-lo, empurrando mais rum no miserável, que já apresentava sinais de embriaguez.
— Não se vá ainda, amigo Cornélio. É muito cedo. O senhor já provou um vinho português da região de Colares ou um bom vinho espanhol?
— Não – ele respondeu, já com a língua meio enrolada.
— Só um instante, que eu vou buscar, - não demoro. Voltei com uma garrafa de colares e outra de xerez.
— Olhe, aqui estão dois dos melhores vinhos do mundo, “experimente”. Enchi a caneca do desgraçado até à borda e retornamos ao jogo de xadrez.
Os ponteiros do relógio já marcavam uma hora da madrugada, as garrafas de vinho estavam vazias e eu nem me lembrava mais quantas partidas tínhamos jogado. Cornélio já cambaleava de bêbado e não dizia coisa com coisa, ou melhor, poder-se-ia dizer que só o álcool falava.
— Amigo - disse eu por fim - que tal fecharmos a noite com chave de ouro?! Eu posso contar-lhe um segredo?
“Claro que pode”, - disse o meu amigo com a voz trêmula e a língua enrolada devido aos efeitos do álcool.
— Eu tenho verdadeira veneração em praticar sexo com cadáveres! Você acredita?
— Acredito! Sério mesmo?! – Disse ele com agradável surpresa. - Eu pensei que só eu tinha esse tipo de fantasia louca! - Disse ele.
— Não! Fique sabendo que eu também adoro! Que tal irmos praticar uma orgia, com um cadáver lá fora. O senhor aceita o meu convite? Hesitou por um momento, mas, aceitou logo em seguida. “- Sim, eu aceito, vamos lá”.
— Bem, então, deixe-me pegar alguns instrumentos de que preciso e já volto.
Fui ao quarto. Peguei uma pá, martelos, pregos, correntes, um cadeado, um pé-de-cabra, cordas e mais uma garrafa de rum, e voltei à sala. Enchi as duas canecas, peguei meus instrumentos de trabalho, a lamparina, passei a garrafa de rum para o Cornélio e segui à frente rumo ao cemitério.
— Olhe, - logo ali tem a sepultura de uma mulher que foi enterrada como indigente há pouco tempo, vamos até lá?! Disse eu.
Ao chegarmos ao local, eu disse:
— Sente-se aqui enquanto eu cavo.
E Cornélio sentou ao lado do túmulo, tragando o rum no gargalo da garrafa.
Eu, por fim, depositei a lamparina ao lado da cova e comecei a cavar. A terra estava fofa e creio que levei, aproximadamente, uns vinte minutos até o buraco ficar um pouco acima da minha testa.
“Ei amigo Cornélio!?” – gritei!
— Pode pular aqui e me ajudar a tirar o caixão da cova, por favor? Levantou-se cambaleando e entrou na cova. Seguramos o caixão de ponta a ponta pelas alças e suspendemo-lo até a beira do túmulo.
Saímos de dentro da cova e imediatamente peguei o pé-de-cabra e arrebentei as travas do caixão. Ao retirar a tampa, tiramos o corpo de dentro e o odor era insuportável.
O cadáver encontrava-se já em longo estado de decomposição, apresentava bolhas de pus em algumas partes do corpo e parte da carne podre grudava na mortalha. O corpo também estava murcho, ressecado, o que não me deixou dúvidas de que tinha um lugar de sobra para mais um ocupante no caixão.
E não me enganei nos meus cálculos: Cornélio era um homem pequeno, franzino e, com certeza, caberia lá dentro com um pouquinho de esforço.
Senti um profundo enjôo e vontade de vomitar, ao passo que Cornélio olhava o cadáver com desejo e fascinação.
— Você primeiro amigo Cornélio, enquanto eu descanso um pouco, - depois eu vou.
Cornélio passou-me a garrafa de rum e aproximou-se do cadáver. Despiu-a da cintura para baixo, escancarou as pernas dela, abriu o zíper de sua calça, deitou-se por cima da carne podre e penetrou-a.
Quando ele já estava no coito com o cadáver, - eu disse:
— Senhor Cornélio, eu sou um pouco tímido e reservado. Vou cobrir o caixão com a tampa para o senhor ficar mais à vontade (no intuito de dispersar a atenção dele).
Ah... pouco deu atenção ao que eu falei. Estava bêbado e excitado demais para perceber o terror e o perigo que encontrava-se à sua volta. “O homem é o único ser vivo que sabe que vai morrer, mas é lamentável que não sintamos quando a morte está bem próxima de nós”.
Enquanto ele gozava dos prazeres de sua necrofilia, apanhei o pé-de-cabra, segurando-o fixamente com ambas as mãos. Aproximei-me dele, sorrateiramente, e desferi-lhe um golpe certeiro na nuca, que abriu acompanhado por um estalo! Emitiu alguns gemidos: - Hã... Hã...Hã..., e calou-se.
Não sabia se o matara.
Com toda a calma possível, coloquei o cadáver de volta no caixão, depositei Cornélio por cima deste, peguei a tampa, cobri o caixão e fiquei sentado em cima, bebendo o restante do rum.
Apanhei o martelo e os pregos. Comecei a pregar a tampa do caixão. Certifiquei-me de que a tampa estava bem pregada, quando ouvi um gemido abafado vindo de dentro do caixão, mas não era um gemido de orgasmo ou de prazer. Era um gemido de terror misturado com angústia. Por um momento, um calafrio percorreu-me todo o corpo.
Cheguei a sentir um desconforto ou remorso, mas não passou de um sentimento efêmero, pois logo meu espírito permaneceu sereno como a alma de um recém-nascido.
Eram quase duas horas da madrugada, eu estava cansado, mas precisava terminar a minha tarefa. Envolvi a corrente em volta do caixão e passei o cadeado porque queria ter certeza de que, se ele estivesse vivo, não poderia sair dali jamais.
Enrolei a corda ao meio do caixão, quando ouvi outro grito abafado emitido lá de dentro:
— Socorro... Tire-me daqui... – Eu lhe imploro!
Com um grande esforço fui descarregando o caixão até o fundo da cova. Peguei a pá e comecei a jogar terra no buraco e outra vez ouvi os gritos abafados de dentro do buraco, mas agora iam ficando mais distantes.
Quando joguei a última pá com terra no túmulo, fiquei plenamente satisfeito. Um denso nevoeiro cobria o cemitério, caía uma garoa fina e gélida. Tomei o último gole de rum, joguei uma coroa de rosas no túmulo, peguei meus instrumentos de trabalho, a lamparina e fui para casa dormir tranqüilamente.
E até hoje, sessenta anos depois, eu me encontro aqui, num abrigo para idosos, já no fim da vida e com este segredo guardado a sete palmos de terra. Ora, para quê procurar a polícia se eu podia punir o miserável à minha própria maneira!
Não concordam?...
Re: Contos fantasticos !!!
AS CRIANÇAS DA PONTE
Terror
- Spoiler:
- Ao longo de nossa existência acontecem situações de difícil absorção ou aceitação. Passados quase dois meses do fato, continuo a me perguntar se o que aconteceu foi real ou mero devaneio momentâneo por breve privação de sentidos. Asseguro-lhes, no entanto, que a narrativa a seguir adota dois critérios antagônicos: incredulidade e veracidade. Não peço que acreditem. Sinto-me trêmulo, trancado em meu quarto diante do notebook e faço tal relato como forma de desabafo. Busco relativo alívio, posto que desde o ocorrido, não tive a coragem necessária para relatar a ninguém o que vem me abatendo nos últimos dois dias. Minha idéia inicial era simplesmente esquecer, contudo, diante dos últimos acontecimentos sinto-me impelido a noticiar as horas de angústia e horror que tenho suportado.
Sou um rapaz sério e compenetrado, filho único de uma mãe amorosa e íntegra. Trabalho desde os quinze anos para ajudá-la, uma vez que me criou sozinha, com muito sacrifício e determinou todo embasamento de caráter e decência para eu me tornar o homem que sou hoje. Estou concluindo o curso de Odontologia e minha vida atualmente é uma verdadeira maratona entre o trabalho, os estudos e os estágios. Moramos somente eu e ela num bairro simples, num apartamento mais simples ainda, única herança que meu pai nos deixou antes de partir para a África com uma companhia mineradora. Eu estava com cinco anos e até hoje não sabemos notícias.
Hoje com 24 tenho poucos amigos que não cansam de dizer para eu aproveitar mais a vida. Falam que sou velho demais, careta demais... Sou muito caseiro e bastante introspectivo. Ao contrário de minha mãe que adora sair, especialmente para dançar. Comprei no inicio deste ano uma scooter. Para os que não conhecem, é uma moto pequena, de baixa cilindrada e bastante econômica. E foi justamente por economia de tempo e dinheiro, além da praticidade, que adquiri tal veiculo. Moramos numa metrópole onde o transporte público é um tanto deficitário e eu, decididamente, detesto depender dele. Tenho uma avó paterna que mora a 85 km daqui, longe de toda essa agitação de cidade grande. Foi no dia do aniversário dela que tudo começou. Vó Clarisse, viúva a mais de dez anos, leva uma vida pacata ao lado da neta, minha prima Denise.
Naquela semana foi minha mãe quem lembrou a data especial. Iria ser no sábado próximo. As duas nunca se deram bem, e já não se falavam há vários anos. Eu, ao contrário a visitava com freqüência. Afinal é a única vó que ainda tenho. Naquele sábado acordei cedo e fui para o estágio numa clínica, por sorte, próxima a auto-estrada. Meu plano era trabalhar até as treze e trinta e ir direto para Ribeirão Marques, um povoado composto por pequenos condomínios rurais aonde mora minha velha avó. Era a primeira vez que iria com a scooter. Nas visitas anteriores preferi ir com o carro de minha mãe, pois todos sabem que nas rodovias, veículos de quatro rodas são mais estáveis. Naquela ocasião, ela precisava do automóvel para sair com uns amigos à noite e eu tinha a intenção de retornar apenas no dia seguinte. Apressado, saí do consultório levando um presentinho básico nas mãos e um apetite voraz que me corroia as entranhas. Acomodei o pacote no banco, subi na scooter e ganhei a auto-estrada. A idéia era abastecer no posto mais próximo e comer qualquer coisa para aplacar a fome. A tarde estava linda e quente já anunciando o verão próximo. A estrada muito bem pavimentada por conta da empresa concessionária e o baixo fluxo de veículos ofereciam-me a segurança necessária para pilotar.
A viagem foi bastante tranquila, pois eu respeitava a velocidade da via sem a menor pressa de chegar. Deixei a rodovia as duas e quarenta e segui por uma estradinha de chão por mais 11 km até meu destino. Essa sempre foi a melhor parte do passeio. Uma atmosfera bucólica e acolhedora: telhados adornados de casas simples com jardins bem cuidados e pomares apinhados de frutas, charretes vagando com joviais senhoras, crianças saltando no trapiche do rio Miracauna, enfim um povo humilde e sempre hospitaleiro. Como único inconveniente a sufocante poeira vermelha. Entretanto senti naquela tarde certa tristeza implícita. Logo saberia o motivo. Um pontilhão de pedra sobre o córrego sinalizava a chegada já bem próxima. Andei por mais alguns metros e as três em ponto cheguei à porteira da chácara.
Minha avó veio receber-me de braços abertos e com o sorriso largo. Abraçamo-nos por vários segundos. E eu desejei-lhe tudo de bom e toda a felicidade do mundo. Entreguei-lhe o presente: Um rádio novinho, desses para se ouvir na cozinha de manhã enquanto se prepara o café ou o almoço. O que ela possuía não funcionava desde a páscoa. Entramos na casa e lá estava minha prima Denise e mais algumas vizinhas. Cumprimentei a todos e reparei de imediato na mesa ornamentada com toalha belíssima de crochê de linho branco. Um bolo cor de rosa decorado e encimado por incontáveis velinhas amarelas, salgadinhos e docinhos diversos, garrafas de espumante e uma faixa enorme dizendo: “Feliz Aniversário, Clarisse”. Todo esse cuidado foi idéia de Denise que assim como eu, adora a avó. É também a prima que eu mais amo e todas as vezes que eu vou para Ribeirão Marques conversamos por horas a fio, sem perceber o tempo passar. Por volta das cinco a casa já estava bastante movimentada. Minha vó convidara amigos de longa data, muitos eu nem conhecia. Uma estranha atmosfera de consternação notava-se nitidamente no semblante dos convidados. Vi-me obrigado a chamar Denise num canto e questioná-la:
— Aconteceu alguma coisa, Denise...? Notei algo pesado no ambiente desde que cheguei.
— O seu pressentimento está certo, primo. A semana passada aconteceu uma tragédia aqui no povoado. Você não soube? Passou até na TV...
— Tenho andado bastante atarefado nas últimas semanas. Não sobra tempo para nada. Nem para assistir televisão. Você acredita?! Mas... Diga-me o que aconteceu?
— Uma van escolar. Um ônibus antigo que transportava as crianças daqui até o colégio em Capão do Monte... Na volta para casa... Bateu no guardil da ponte, perdeu o controle e caiu no rio... Sete crianças morreram além do motorista e de uma professora que morava na Fazenda Castro Alves.
— Meu Deus...
— Dizem que tentou desviar de uma moto que ia até o armazém do Willy e perdeu o controle. Muitas morreram afogadas...
Fiquei perplexo diante da notícia e soube depois que pessoas naquela sala haviam perdido netos, sobrinhos ou eram diretamente ligados às famílias vitimadas. Eu mesmo conhecia uma garotinha, irmã de um amigo de infância. Retirei-me para o jardim para tomar ar fresco e tentar dissipar meu estado de choque. Minha avó notou minha mudança e logo veio ter comigo falando da dor que toda aquela comunidade estava sentindo e que somente o tempo iria fechar aquela ferida. Conversei com mais alguns conhecidos onde o assunto predominante era o trágico acidente até que Denise chamou a todos para cortar o bolo. Minha avó assoprou as velinhas e um vizinho de longa data fez uma prece e um pequeno discurso. Estávamos todos visivelmente emocionados. Aproveitei para usar a câmera do meu celular para tirar algumas fotos. Afinal não é todo o dia que se comemora setenta anos... Já passava das seis e começava a anoitecer quando os convidados pouco a pouco começavam a se retirar. Eu pretendia ficar aquela noite e voltar no dia seguinte. As sete, minha vó se despediu de Dona Carmem, a última convidada. Eu e Denise aproveitamos para ficarmos mais juntinhos dela. Demonstrava bastante cansaço e resolveu se recolher cedo.
A noite estava quente e abafada e eu e minha prima sentamos nas cadeiras de balanço sob o alpendre desfrutando da suave brisa e do singular céu estrelado. Colocamos a conversa em dia falando por horas sobre os assuntos mais variados: O noivado dela, que não deu certo, a minha conturbada rotina acadêmica e é claro o drama das pessoas daquele lugar. Por volta da meia-noite recebi um telefonema. Foi aí que começou o meu “drama particular”. Heloisa, melhor amiga de minha mãe, me informa que ela passara mal por conta de uma tentativa de assalto, sem graves consequencias, na saída do barzinho em que estavam. Disse que estava com minha mãe em uma clínica por conta de uma crise nervosa. Ao ouvir a palavra “clínica” estremeci. Helô insistia que minha mãe estava bem e que era para eu não me preocupar. Ela inclusive disse que estava ligando sem o conhecimento dela. Desconfiei pelo tom de sua voz que pudesse estar me omitindo algo. Num ímpeto, desliguei o aparelho, expliquei o conteúdo da conversa a Denise e disse que voltaria para casa imediatamente. Ela ainda contestou dizendo que era muito tarde. Pedi que avisasse minha avó, me despedi rapidamente e corri para a scooter.
A sombria noite sem luar, já na saída da porteira quase me fez desistir da empreitada, contudo, naquele momento o que importava era chegar a capital o mais rápido possível. Segui pela estradinha escura, atravessei o pequeno pontilhão e acelerei para ganhar tempo. Não fosse o tênue foco de luz do farol, não podia ver muita coisa naquele breu além da escassa claridade vinda das moradas à beira do caminho deserto. O incidente com minha mãe tomava cem por cento dos meus pensamentos e me enchia de preocupação.
Na saída da curva da mata, a poucos quilômetros da rodovia principal meu pesadelo teve início. Chegando quase a ponte sobre o rio Miracauna avistei de longe um pequeno vulto. À primeira vista indefinido, e conforme me aproximava cada vez mais nítido. Era uma menina de uns seis ou sete anos, moreninha de cabelos compridos, com roupas claras lembrando um uniforme colegial. De imediato lembrei do acidente do ônibus escolar. À medida que me aproximava podia ver melhor e notei que seus pezinhos não tocavam o chão da estrada. Estava estática bem em frente à ponte no meio da estrada. Um arrepio de pavor e pânico atravessou-me a espinha. Acelerei o máximo que pude para poder passar por ela.
Em nenhum instante ocorreu-me a idéia de voltar, pois estava muito perto para recuar. Minha intenção era passar ao lado daquela aparição e seguir adiante. Tive a nítida percepção que tudo acabaria se conseguisse transpor a ponte. A poucos metros da criança não pude deixar de olhar direto nos seus olhos, como se estivesse hipnotizado, mesmo não querendo fazê-lo. De súbito, ela pairando acima do chão veio em minha direção de maneira sutil e eu pressenti a colisão eminente. Virei o guidão para a direita e caí num desnível no matagal que margeava o caminho. A queda da moto foi violenta. Tive sorte porque o mato estava alto e amorteceu meu baque. Perdi a consciência por alguns segundos, mas logo despertei com uma dor lancinante na perna esquerda. Na hora tive a certeza de tê-la quebrado. Antes de desmaiar, na penumbra daquela madrugada pude ainda vislumbrar outras crianças vindo da margem do rio, flutuando no ar em minha direção com suas carinhas pálidas e os olhos fundos e sem brilho. Como uma procissão de almas perdidas querendo se mostrar para mim. A circunstância toda lembrava um terrível pesadelo. Parecia mesmo que eu iria acordar a qualquer momento, ofegante e suado na segurança do meu quarto. Todavia, sem poder me mover, caído e sem nenhuma chance de fuga, minhas narinas foram impregnadas por um cheiro sufocante. Uma mistura de odores que lembravam putrefação. O mesmo que se sente próximo a animais mortos. Deitado, olhei para cima e pude ver um círculo de cabeças me observando debilmente. Lancei com as forças que me restavam, um sonoro urro de medo e horror, e por fim, apaguei.
Acordei sem saber quanto tempo tinha se passado e sendo carregado por socorristas que me conduziram em uma prancha de imobilização até a ambulância. Tive sorte, graças a Deus, um motorista de caminhão, morador da região, passara pela ponte e viu a scooter tombada. Imediatamente ligou para o resgate. De fato quebrei a tíbia e sofri apenas algumas escoriações leves. Fui levado ao hospital em Capão do Monte e fiquei por lá até o dia seguinte quando minha mãe levou-me para casa. Daquela data até agora foram muitos contratempos. Ela também teve que antecipar suas férias no trabalho... Por quê? Para poder me carregar todos os dias até a universidade sob pena de eu perder o semestre e a colação de grau. Nunca imaginei que uma perna engessada pudesse ser tão inconveniente.
Anteontem, enfim retirei o gesso e desde este dia estou sozinho em casa. Minha mãe aproveitou os últimos dias de suas férias para curtir um hotelzinho com o namorado à beira da praia. Garantiu-me que volta amanhã. Eu fiquei por aqui por conta das provas finais. Denise me ligou para saber notícias e contou-me algo bastante bizarro: depois de mim outro motociclista tombou no mesmo local próximo à ponte. Ele e a namorada iam para uma feira agropecuária. A menina teve morte instantânea e ele permanece em coma num hospital aqui da capital. Fiquei bastante intrigado. Sempre me considerei um cara cético e racional. Tenho certeza que existe uma explicação lógica para tudo que aconteceu. Como eu tinha escrito antes, o que eu queria mesmo era esquecer, contudo os acontecimentos das últimas horas não contribuem nenhum pouco para o meu propósito.
Ontem, quando voltava da aula tive a nítida sensação de estar sendo seguido. Na chegada, aqui no prédio ao entrar no elevador, antes da porta fechar olhei para trás e observei com espanto uma silhueta infantil no reflexo do espelho do saguão principal. Foi muito rápido, averiguei e não havia ninguém por lá. Hoje pela manhã, enquanto eu preparava o café ouvi risos vindo do quarto de minha mãe, em seguida o som de algum objeto caindo. Corri até o quarto e deparei-me com o porta-jóias que é também uma caixinha de música onde são guardadas as bijuterias, caído aos pés do roupeiro e todos os anéis, pulseiras e correntinhas, espalhados pelo tapete do quarto. Sempre lembrando que eu estou sozinho em casa como já relatei. À tarde estava pesquisando na rede um estudo sobre implantodontia e, nem sei porque lembrei das fotos do aniversário de vó Clarisse. Apanhei o celular quebrado devido ao acidente e retirei o cartão de memória. Abri as fotos no computador e de imediato senti o mesmo calafrio daquela noite, começando na nuca e se espalhando pelo corpo todo. Reparei junto aos convidados de minha avó figuras desfocadas de crianças. Em uma foto em particular onde está Denise comendo vorazmente uma fatia do bolo, nota-se três vultos ao seu lado e dois acima de sua cabeça. Deletei todas.
Neste momento me preparo para sair logo que termine esta narrativa. Ana Claudia, uma colega de estágio passará aqui em casa para irmos ao cinema. Não pretendo voltar para este apartamento hoje. Venho sentindo desde cedo o mesmo odor fétido daquela maldita noite. Parece que vem da sala... Ou será do corredor? Às vezes parece que o mau cheiro vem debaixo de minha cama...
A campainha toca!
Espero sinceramente que seja Ana.
Re: Contos fantasticos !!!
As flores da morte
Conta-se que uma moça estava muito doente e teve que ser internada em um
hospital. Desenganada pelos médicos, a família não queria que a moça soubesse
que iria morrer. Todos seus amigos já sabiam. Menos ela. E para todo mundo que
ela perguntava se ia morrer, a afirmação era negada.
Depois de muito receber visitas, ela pediu durante uma oração que lhe enviassem
flores. Queria rosas brancas se fosse voltar para casa, rosas amarelas se fosse
ficar mais um tempo no hospital e estivesse em estado grave, e rosas vermelhas
se estivesse próxima sua morte.
Certa hora, bate a porta de seu quarto uma mulher e entrega a mãe da moça um
maço de rosas vermelhas murchas e sem vida. A mulher se identifica como
"mãe da Berenice". Nesse meio de tempo, a moça que estava dormindo
acordou, e a mãe avisou pra ela que a mulher havia deixado o buquê de rosas,
sem saber do pedido da filha feito em oração.
Ela ficou com uma cara de espanto quando foi informada pela mãe que quem havia
trazido as rosas era a mãe da Berenice. A única coisa que a moça conseguiu
responder era que a mãe da Berenice estava morta há 10 anos.
A moça morreu naquela mesma noite. No hospital ninguém viu a tal mulher
entrando ou saindo.
O Mosteiro de Satanás
1952, quinta feira, dia 23 de dezembro. Leonel sai de casa para passar o
natal com a família no Rio de Janeiro. Nas estradas mineiras chovia como ele
nunca tinha visto antes. Sozinho no carro Leonel sentiu um calafrio como se
estivesse prestes a morrer. Na mesma hora ele parou o carro. Começou a sentir febre
e a suar frio. Na estrada não passava um veículo e a chuva tinha apertado mais.
Quase cego com a tempestade Leonel avista uma luminosidade não muito longe
dali. Caminhando com dificuldade o pobre homem chega até o portão do que
parecia ser um mosteiro franciscano . Ele bate na porta e grita por ajuda mas
desmaia antes dela chegar.
Leonel acorda com muita dor de cabeça em um quarto escuro. Ele estava deitado
numa cama simples e pela janela podia ver que a chuva não havia reduzido.
Quando tentou levantar-se da cama a porta se abre e um homem alto vestido de
monge entra no quarto. "Você deve deixar o mosteiro imediatamente."
falou, com uma voz preocupada. "Estou doente, não podem me mandar embora
deste jeito, por favor deixe-me ficar.", agonizou Leonel quase chorando. O
monge não disse mais nada e se retirou do recinto. Preocupado em ter que ir
embora Leonel se levanta e sai do quarto sorrateiramente. O lugar mais parecia
um calabouço medieval. O coitado não sabia o que fazer. Por instinto
Leonel desce as escadas da masmorra. Uma voz o chama. Ela vem de uma
cela, a porta está trancada e pela pequena grade um homem magro de cavanhaque
conversa com Leonel. "Amigo, você precisa me ajudar. Esses monges me
prenderam aqui e me torturam quase diariamente. E eles farão isso com você
também se não fugirmos logo. Por fa..."Antes do sujeito concluir o monge
alto grita com Leonel. "Saia daí!!!" agarrando-o pelo braço o monge
arrasta o enfermo rapaz escada acima. O pobre Leonel não tinha forças para
reagir e foi levado facilmente.
Já em uma sala gigantesca repleta de monges Leonel se vê como um réu sendo
julgado. O franciscano que parecia o líder falou. "Rapaz, você deve ir
embora imediatamente. Foi um erro nosso tê-lo deixado entrar aqui. Sabemos do
seu estado de saúde mas não podemos deixá-lo ficar". Leonel mal ouviu o
homem e desmaiou novamente. O infeliz viajante acorda mais uma vez na masmorra.
A porta do quarto estava aberta e Leonel sai a procura do homem que estava
preso no andar de baixo. Sem vigília, ele consegue chegar até a cela do
magrelo. Mal se aproxima e Leonel é surpreendido com o sujeito na pequena grade
já pedindo ajuda. “Por favor, me tire daqui. Eles vão nos torturar, eles são de
uma seita maligna. São adoradores de Satanás.” Tremendo como uma vara verde em
dia de chuva, Leonel corre atéum pequeno depósito em busca de uma ferramenta
capaz de abrir a cela. Minutos depois ele retorna com um imenso pé de cabra.
Com um pouco de esforço a porta é arrombada. O sujeito magro sai correndo da
cela e rindo como se uma piada hilária tivesse acabada de ter sido contada. Sem
saber do que se tratava, Leonel corre também, mas dá de cara com um monge de
quase dois metros de altura. “ O que você acaba de fazer, maldito?!” Rugiu o
franciscano. “Me solte! Me solte seu filho de Satanás!” Gritava Leonel tentando
se soltar do agarrão do monge. Com um olhar de temor e raiva o homem alto
encara o pobre Leonel... “Você não sabe o que fez... sua vida está condenada
agora. Você acaba de libertar o próprio Satanás. E ele fará de você o seu servo
predileto. Sua alma será dele”. Logo após o monge ter terminado de falar Leonel
dá um grito de pavor... seu último grito de pavor. Naquele instante o pobre e
inocente viajante acaba de ter um fulminante ataque cardíaco que levou sua alma
literalmente para os quintos dos Infernos, ao lado do, agora, seu eterno
mestre, Satanás.
Conta-se que uma moça estava muito doente e teve que ser internada em um
hospital. Desenganada pelos médicos, a família não queria que a moça soubesse
que iria morrer. Todos seus amigos já sabiam. Menos ela. E para todo mundo que
ela perguntava se ia morrer, a afirmação era negada.
Depois de muito receber visitas, ela pediu durante uma oração que lhe enviassem
flores. Queria rosas brancas se fosse voltar para casa, rosas amarelas se fosse
ficar mais um tempo no hospital e estivesse em estado grave, e rosas vermelhas
se estivesse próxima sua morte.
Certa hora, bate a porta de seu quarto uma mulher e entrega a mãe da moça um
maço de rosas vermelhas murchas e sem vida. A mulher se identifica como
"mãe da Berenice". Nesse meio de tempo, a moça que estava dormindo
acordou, e a mãe avisou pra ela que a mulher havia deixado o buquê de rosas,
sem saber do pedido da filha feito em oração.
Ela ficou com uma cara de espanto quando foi informada pela mãe que quem havia
trazido as rosas era a mãe da Berenice. A única coisa que a moça conseguiu
responder era que a mãe da Berenice estava morta há 10 anos.
A moça morreu naquela mesma noite. No hospital ninguém viu a tal mulher
entrando ou saindo.
O Mosteiro de Satanás
1952, quinta feira, dia 23 de dezembro. Leonel sai de casa para passar o
natal com a família no Rio de Janeiro. Nas estradas mineiras chovia como ele
nunca tinha visto antes. Sozinho no carro Leonel sentiu um calafrio como se
estivesse prestes a morrer. Na mesma hora ele parou o carro. Começou a sentir febre
e a suar frio. Na estrada não passava um veículo e a chuva tinha apertado mais.
Quase cego com a tempestade Leonel avista uma luminosidade não muito longe
dali. Caminhando com dificuldade o pobre homem chega até o portão do que
parecia ser um mosteiro franciscano . Ele bate na porta e grita por ajuda mas
desmaia antes dela chegar.
Leonel acorda com muita dor de cabeça em um quarto escuro. Ele estava deitado
numa cama simples e pela janela podia ver que a chuva não havia reduzido.
Quando tentou levantar-se da cama a porta se abre e um homem alto vestido de
monge entra no quarto. "Você deve deixar o mosteiro imediatamente."
falou, com uma voz preocupada. "Estou doente, não podem me mandar embora
deste jeito, por favor deixe-me ficar.", agonizou Leonel quase chorando. O
monge não disse mais nada e se retirou do recinto. Preocupado em ter que ir
embora Leonel se levanta e sai do quarto sorrateiramente. O lugar mais parecia
um calabouço medieval. O coitado não sabia o que fazer. Por instinto
Leonel desce as escadas da masmorra. Uma voz o chama. Ela vem de uma
cela, a porta está trancada e pela pequena grade um homem magro de cavanhaque
conversa com Leonel. "Amigo, você precisa me ajudar. Esses monges me
prenderam aqui e me torturam quase diariamente. E eles farão isso com você
também se não fugirmos logo. Por fa..."Antes do sujeito concluir o monge
alto grita com Leonel. "Saia daí!!!" agarrando-o pelo braço o monge
arrasta o enfermo rapaz escada acima. O pobre Leonel não tinha forças para
reagir e foi levado facilmente.
Já em uma sala gigantesca repleta de monges Leonel se vê como um réu sendo
julgado. O franciscano que parecia o líder falou. "Rapaz, você deve ir
embora imediatamente. Foi um erro nosso tê-lo deixado entrar aqui. Sabemos do
seu estado de saúde mas não podemos deixá-lo ficar". Leonel mal ouviu o
homem e desmaiou novamente. O infeliz viajante acorda mais uma vez na masmorra.
A porta do quarto estava aberta e Leonel sai a procura do homem que estava
preso no andar de baixo. Sem vigília, ele consegue chegar até a cela do
magrelo. Mal se aproxima e Leonel é surpreendido com o sujeito na pequena grade
já pedindo ajuda. “Por favor, me tire daqui. Eles vão nos torturar, eles são de
uma seita maligna. São adoradores de Satanás.” Tremendo como uma vara verde em
dia de chuva, Leonel corre atéum pequeno depósito em busca de uma ferramenta
capaz de abrir a cela. Minutos depois ele retorna com um imenso pé de cabra.
Com um pouco de esforço a porta é arrombada. O sujeito magro sai correndo da
cela e rindo como se uma piada hilária tivesse acabada de ter sido contada. Sem
saber do que se tratava, Leonel corre também, mas dá de cara com um monge de
quase dois metros de altura. “ O que você acaba de fazer, maldito?!” Rugiu o
franciscano. “Me solte! Me solte seu filho de Satanás!” Gritava Leonel tentando
se soltar do agarrão do monge. Com um olhar de temor e raiva o homem alto
encara o pobre Leonel... “Você não sabe o que fez... sua vida está condenada
agora. Você acaba de libertar o próprio Satanás. E ele fará de você o seu servo
predileto. Sua alma será dele”. Logo após o monge ter terminado de falar Leonel
dá um grito de pavor... seu último grito de pavor. Naquele instante o pobre e
inocente viajante acaba de ter um fulminante ataque cardíaco que levou sua alma
literalmente para os quintos dos Infernos, ao lado do, agora, seu eterno
mestre, Satanás.
Re: Contos fantasticos !!!
Casa dos Rostos
Ao entrar em sua modesta cozinha em uma abafada tarde de agosto de 1971, Maria
Gomez Pereira, uma dona de casa espanhola, espantou-se com o que lhe pareceu um
rosto pintado no chão de cimento.
Estaria ela sonhando, ou com alucinações? Não, a estranha imagem que manchava o
chão parecia de fato o esboço de uma pintura, um retrato.
Com o correr dos dias a imagem foi ganhando detalhes e a noticia do rosto misterioso
espalhou-se com rapidez pela pequena aldeia de Belmez, perto de Cordoba, no sul
da Espanha. Alarmados pela imagem inexplicável e incomodados com o crescente
número de curiosos, os Pereira decidiram destruir o rosto; seis dias depois que
este apareceu, o filho de Maria, Miguel, quebrou o chão a marretadas. Fizeram
novo cimento e a vida dos Pereira voltou ao normal.
Mas não por muito tempo. Em uma semana, um novo rosto começou a se formar, no
mesmo lugar do primeiro. Esse rosto, aparentemente de um homem de meia idade,
era ainda mais detalhado. Primeiro apareceram os olhos, depois o nariz, os
lábios e o queixo.
Já não havia como manter os curiosos a distância. Centenas de pessoas faziam
fila fora da casa todos os dias, clamando para ver a "Casa dos
Rostos". Chamaram a policia para controlar as multidões. Quando a noticia
se espalhou, resolveu-se preservar a imagem. Os Pereira recortaram
cuidadosamente o retrato e puseram em uma moldura, protegida com vidro,
pendurando-o então ao lado da lareira.
Antes de consertar o chão os pesquisadores cavaram o local e acharam inúmeros
ossos humanos, a quase três metros de profundidade. Acreditou-se que os rastos
retratados no chão seriam dos mortos ali enterrados. Mas muitas pessoas não
aceitaram essa explicação, pois a maior das casas da rua fora construída sobre
um antigo cemitério, mas só a casa dos Pereira estava sendo afetada pelos
rostos misteriosos.
Duas semanas depois que o chão da cozinha foi cimentado pela segunda vez, outra
imagem apareceu. Um quarto rosto - de mulher - veio duas semanas depois.
Em volta deste ultimo apareceram vários rostos menores; os observadores
contaram de nove a dezoito imagens.
Ao longo dos anos os rostos mudaram de formato, alguns foram se apagando. E
então, no inicio dos anos oitenta, começaram a aparecer outros.
O que - ou quem - criou os rostos fantasmagóricos no chão daquela humilde casa?
Pelo menos um dos pesquisadores sugeriu que as imagens seriam obra de algum
membro da família Pereira. Mas alguns quimicos que examinaram o cimento
declararam-se perplexos com o fenômeno. Cientistas, professores universitários,
parapsicólogos, a policia, sacerdotes e outros analisaram minuciosamente a
imagem no chão da cozinha de Maria Gomes Pereira, mas nada concluiram que
explicasse a origem dos retratos.
Ao entrar em sua modesta cozinha em uma abafada tarde de agosto de 1971, Maria
Gomez Pereira, uma dona de casa espanhola, espantou-se com o que lhe pareceu um
rosto pintado no chão de cimento.
Estaria ela sonhando, ou com alucinações? Não, a estranha imagem que manchava o
chão parecia de fato o esboço de uma pintura, um retrato.
Com o correr dos dias a imagem foi ganhando detalhes e a noticia do rosto misterioso
espalhou-se com rapidez pela pequena aldeia de Belmez, perto de Cordoba, no sul
da Espanha. Alarmados pela imagem inexplicável e incomodados com o crescente
número de curiosos, os Pereira decidiram destruir o rosto; seis dias depois que
este apareceu, o filho de Maria, Miguel, quebrou o chão a marretadas. Fizeram
novo cimento e a vida dos Pereira voltou ao normal.
Mas não por muito tempo. Em uma semana, um novo rosto começou a se formar, no
mesmo lugar do primeiro. Esse rosto, aparentemente de um homem de meia idade,
era ainda mais detalhado. Primeiro apareceram os olhos, depois o nariz, os
lábios e o queixo.
Já não havia como manter os curiosos a distância. Centenas de pessoas faziam
fila fora da casa todos os dias, clamando para ver a "Casa dos
Rostos". Chamaram a policia para controlar as multidões. Quando a noticia
se espalhou, resolveu-se preservar a imagem. Os Pereira recortaram
cuidadosamente o retrato e puseram em uma moldura, protegida com vidro,
pendurando-o então ao lado da lareira.
Antes de consertar o chão os pesquisadores cavaram o local e acharam inúmeros
ossos humanos, a quase três metros de profundidade. Acreditou-se que os rastos
retratados no chão seriam dos mortos ali enterrados. Mas muitas pessoas não
aceitaram essa explicação, pois a maior das casas da rua fora construída sobre
um antigo cemitério, mas só a casa dos Pereira estava sendo afetada pelos
rostos misteriosos.
Duas semanas depois que o chão da cozinha foi cimentado pela segunda vez, outra
imagem apareceu. Um quarto rosto - de mulher - veio duas semanas depois.
Em volta deste ultimo apareceram vários rostos menores; os observadores
contaram de nove a dezoito imagens.
Ao longo dos anos os rostos mudaram de formato, alguns foram se apagando. E
então, no inicio dos anos oitenta, começaram a aparecer outros.
O que - ou quem - criou os rostos fantasmagóricos no chão daquela humilde casa?
Pelo menos um dos pesquisadores sugeriu que as imagens seriam obra de algum
membro da família Pereira. Mas alguns quimicos que examinaram o cimento
declararam-se perplexos com o fenômeno. Cientistas, professores universitários,
parapsicólogos, a policia, sacerdotes e outros analisaram minuciosamente a
imagem no chão da cozinha de Maria Gomes Pereira, mas nada concluiram que
explicasse a origem dos retratos.
Re: Contos fantasticos !!!
Tesouro macabro
A história que contarei a seguir é sobre dois amigos de infância, Pablo e José.
Os dois eram mexicanos e andarilhavam em direção de San Juan, um pequeno
vilarejo na província de Chiapas.
Estava chovendo muito e os cavalos já estavam inquietos. Pablo observara uma
caverna em meio às árvores e exclamou: "Veja José, uma gruta seca. Vamos
usá-la como abrigo até a chuva passar." José não titubeou e seguiu seu
amigo até a tal gruta. Lá dentro, os dois se abrigaram e acomodaram os cavalos.
A caverna era gelada e José sentiu um calafrio que percorreu sua espinha.
"Vamos sair daqui Pablo, esta caverna me dá arrepios." Balbuciou José
tremendo de frio e medo. "Bobagem! Lá fora podemos até morrer naquele
temporal. Aqui nós estamos secos e seguros."Retrucou Pablo.
A chuva não dava nem um sinal de cessar. José estava impaciente e Pablo curioso
com a caverna. "Vamos lá para o fundo, estaremos mais seguros lá."
Entusiasmou-se Pablo. "Estas louco homem, podemos nos perder naquela escuridão."
Protestou José. "Covarde! Vamos lá, seja homem pelo menos uma vez nessa
sua vida." Ameaçou Pablo com um sorriso sarcástico. Mesmo temendo pela sua
própria vida, José segue o amigo até o fundo da caverna. Pablo, indo na frente,
acende um fósforo e se surpreende com o que vê. Jogado ao chão, milhares de
moedas de ouro e prata e até algumas jóias que refletiam a luz do fósforo.
Junto delas, um esqueleto humano. Pablo dá uma gargalhada e grita."Estamos
ricos José, ou melhor, estou rico José!" Virando-se imediatamente para o
amigo e apontando a garrucha diretamente para a testa dele. Pablo dá um sorriso
e vê o pavor do amigo que suplica."Não Pablo, pelo amor de Deus... nós
somos amig...." E um estrondo interrompe a voz de José. Com um tiro certeiro,
Pablo espalha os miolos do amigo no chão... "He, he, he...agora o ouro é
só meu, todo meu." Recolhendo o tesouro e colocando-o num saco, Pablo já
vai até pensando no que fazer com o dinheiro.
O tempo passa e a chuva também. Com o tesouro devidamente embalado, Pablo sai
da caverna sorrindo e gozando do cadáver do amigo."Pena que você não
poderá se divertir com este dinheiro companheiro." Pablo coloca o saco com
o tesouro no lombo do cavalo e ruma para o vilarejo. Chegando lá, ele vai
diretamente para uma pensão contabilizar o seu achado. Euforicamente, Pablo
sobe para o seu quarto mal podendo conter sua alegria. Já no quarto, o homem
tranca a porta e joga o saco no chão. Ao abri-lo, Pablo depara-se com uma cena
inesperada e pavorosa. "Não, não pode ser !!!" Agoniza o coitado. Ao
invés do tesouro, ele encontrou o cadáver rígido de seu amigo José.
Os ruídos da morte
Extraído do Livro chamado: "O Livro dos Fenômenos Estranhos" de
Charles Berlitz
Os habitantes das ilhas Samoa acreditam que, quando a morte se aproxima,
pancadas secas paranormais são ouvidas na casa da vítima.
Esse estranho fenômeno já foi chamado de ruídos da morte, e sua existência
representa mais do que mero folclore.
Genevieve B. Miller, por exemplo, sempre ouviu esses estranhos ruídos, principalmente
na infância. As pancadas ocorreram durante o verão de 1924 em Woronoco,
Massachusetts, quando sua irmã, Stephanie, ficou acamada com uma doença
misteriosa.
Enquanto a menina permanecia na cama, ruídos estranhos, semelhantes a batidas
feitas com os dedos, ecoavam pela casa. Eles soavam de três em três, sendo que
o primeiro era mais longo do que os outro dois.
Certa vez, o pai de sra. Miller ficou tão irritado com os ruídos que arrancou
todas as cortinas das janelas da casa, culpando-as por aquele barulho infernal.
Contudo, essa demonstração de nervosismo de pouco adiantou para terminar com
aquele sofrimento.
No dia 4 de outubro, já se sabia que Stephanie estava morrendo. Quando o médico
chegou, ele também ouviu as pancadas estranhas.
- O que é isso? - perguntou, voltando-se para tentar descobrir a fonte do
barulho.
Quando se virou novamente para a pequena paciente, ela pronunciou suas últimas
palavras e morreu. As pancadas diminuíram a atividade após a morte de
Stephanie, porém nunca chegaram a parar de todo. Elas voltaram, ocasionalmente,
quando a família se mudou para uma casa nova.
Então, em 1928, o irmão de Stephanie morreu afogado quando a superfíc ie
congelada de um rio, sobre a qual caminhava, quebrou-se. A partir dessa época,
os ruídos da morte nunca mais foram ouvidos.
A história que contarei a seguir é sobre dois amigos de infância, Pablo e José.
Os dois eram mexicanos e andarilhavam em direção de San Juan, um pequeno
vilarejo na província de Chiapas.
Estava chovendo muito e os cavalos já estavam inquietos. Pablo observara uma
caverna em meio às árvores e exclamou: "Veja José, uma gruta seca. Vamos
usá-la como abrigo até a chuva passar." José não titubeou e seguiu seu
amigo até a tal gruta. Lá dentro, os dois se abrigaram e acomodaram os cavalos.
A caverna era gelada e José sentiu um calafrio que percorreu sua espinha.
"Vamos sair daqui Pablo, esta caverna me dá arrepios." Balbuciou José
tremendo de frio e medo. "Bobagem! Lá fora podemos até morrer naquele
temporal. Aqui nós estamos secos e seguros."Retrucou Pablo.
A chuva não dava nem um sinal de cessar. José estava impaciente e Pablo curioso
com a caverna. "Vamos lá para o fundo, estaremos mais seguros lá."
Entusiasmou-se Pablo. "Estas louco homem, podemos nos perder naquela escuridão."
Protestou José. "Covarde! Vamos lá, seja homem pelo menos uma vez nessa
sua vida." Ameaçou Pablo com um sorriso sarcástico. Mesmo temendo pela sua
própria vida, José segue o amigo até o fundo da caverna. Pablo, indo na frente,
acende um fósforo e se surpreende com o que vê. Jogado ao chão, milhares de
moedas de ouro e prata e até algumas jóias que refletiam a luz do fósforo.
Junto delas, um esqueleto humano. Pablo dá uma gargalhada e grita."Estamos
ricos José, ou melhor, estou rico José!" Virando-se imediatamente para o
amigo e apontando a garrucha diretamente para a testa dele. Pablo dá um sorriso
e vê o pavor do amigo que suplica."Não Pablo, pelo amor de Deus... nós
somos amig...." E um estrondo interrompe a voz de José. Com um tiro certeiro,
Pablo espalha os miolos do amigo no chão... "He, he, he...agora o ouro é
só meu, todo meu." Recolhendo o tesouro e colocando-o num saco, Pablo já
vai até pensando no que fazer com o dinheiro.
O tempo passa e a chuva também. Com o tesouro devidamente embalado, Pablo sai
da caverna sorrindo e gozando do cadáver do amigo."Pena que você não
poderá se divertir com este dinheiro companheiro." Pablo coloca o saco com
o tesouro no lombo do cavalo e ruma para o vilarejo. Chegando lá, ele vai
diretamente para uma pensão contabilizar o seu achado. Euforicamente, Pablo
sobe para o seu quarto mal podendo conter sua alegria. Já no quarto, o homem
tranca a porta e joga o saco no chão. Ao abri-lo, Pablo depara-se com uma cena
inesperada e pavorosa. "Não, não pode ser !!!" Agoniza o coitado. Ao
invés do tesouro, ele encontrou o cadáver rígido de seu amigo José.
Os ruídos da morte
Extraído do Livro chamado: "O Livro dos Fenômenos Estranhos" de
Charles Berlitz
Os habitantes das ilhas Samoa acreditam que, quando a morte se aproxima,
pancadas secas paranormais são ouvidas na casa da vítima.
Esse estranho fenômeno já foi chamado de ruídos da morte, e sua existência
representa mais do que mero folclore.
Genevieve B. Miller, por exemplo, sempre ouviu esses estranhos ruídos, principalmente
na infância. As pancadas ocorreram durante o verão de 1924 em Woronoco,
Massachusetts, quando sua irmã, Stephanie, ficou acamada com uma doença
misteriosa.
Enquanto a menina permanecia na cama, ruídos estranhos, semelhantes a batidas
feitas com os dedos, ecoavam pela casa. Eles soavam de três em três, sendo que
o primeiro era mais longo do que os outro dois.
Certa vez, o pai de sra. Miller ficou tão irritado com os ruídos que arrancou
todas as cortinas das janelas da casa, culpando-as por aquele barulho infernal.
Contudo, essa demonstração de nervosismo de pouco adiantou para terminar com
aquele sofrimento.
No dia 4 de outubro, já se sabia que Stephanie estava morrendo. Quando o médico
chegou, ele também ouviu as pancadas estranhas.
- O que é isso? - perguntou, voltando-se para tentar descobrir a fonte do
barulho.
Quando se virou novamente para a pequena paciente, ela pronunciou suas últimas
palavras e morreu. As pancadas diminuíram a atividade após a morte de
Stephanie, porém nunca chegaram a parar de todo. Elas voltaram, ocasionalmente,
quando a família se mudou para uma casa nova.
Então, em 1928, o irmão de Stephanie morreu afogado quando a superfíc ie
congelada de um rio, sobre a qual caminhava, quebrou-se. A partir dessa época,
os ruídos da morte nunca mais foram ouvidos.
Re: Contos fantasticos !!!
Casa mal assombrada
O ano era 1944. Carlos que antes morava em Itaperuna - RJ, iria se mudar para
Natividade, RJ. Estava a procura de uma casa e depois de algumas visitas,
encontrou uma que seria ideal para acomodar sua família. Ao sair da casa, os
vizinhos o alertaram de que ela era mal assombrada pelo espírito do antigo
morador conhecido como "Manoel Açougueiro". Carlos que era metido a
valentão ignorou os avisos dos futuros vizinhos e a família mudou-se na semana
seguinte.
Depois de um mês instalados, a mãe e os filhos começaram a ouvir todas as
noites, sem falta, às 22:00 horas em ponto, batidas na porta. Quando iam
atender, não havia ninguém e o portão ficava sempre trancado com cadeado. Não
havia tempo suficiente para alguém bater e pular o muro sem que ninguém
percebesse. Carlos que sempre chegava após às 22:00 horas, não acreditava em
tal estória.
Porém um dia, Carlos chegara mais cedo em casa e novamente às 22:00 horas
bateram na porta. Carlos correu até a porta e não vendo ninguém por perto,
gritou aos quatro cantos:
- "Manoel, é você? Se for você mesmo, apareça."
Para espanto de todos, nesta noite, à meia-noite o neném acordou chorando e
Carlos ao entrar no quarto viu um cachorro branco dentro do berço. Ninguém na
casa via o tal cachorro, mas Carlos insistia em tentar bater no cachorro com um
cinto e acabava por acertar o bebê.
Apesar de toda a confusão da noite, Carlos ainda duvidava de que havia um
fantasma na casa. No fim de semana, na sexta-feira, Carlos voltou a gritar aos
quatro cantos da casa, fazendo dessa vez, um desafio ao tal fantasma.
- "Se tiver alguém aqui mesmo, que atire essas almofadas que estão na sala
para o outro quarto."
De madrugada o filho mais velho da família, que também se chamava Carlos,
acordou desesperado gritando que alguém havia atirado almofadas em sua cabeça
enquanto dormia.
Carlos no dia seguinte, procurou o Monsenhor que providenciou a celebração de
uma missa em intenção a alma de "Manoel, o Açougueiro". Desde aquela
data, nunca mais ninguém ouviu batidas na porta da casa às 22:00 horas.
O ano era 1944. Carlos que antes morava em Itaperuna - RJ, iria se mudar para
Natividade, RJ. Estava a procura de uma casa e depois de algumas visitas,
encontrou uma que seria ideal para acomodar sua família. Ao sair da casa, os
vizinhos o alertaram de que ela era mal assombrada pelo espírito do antigo
morador conhecido como "Manoel Açougueiro". Carlos que era metido a
valentão ignorou os avisos dos futuros vizinhos e a família mudou-se na semana
seguinte.
Depois de um mês instalados, a mãe e os filhos começaram a ouvir todas as
noites, sem falta, às 22:00 horas em ponto, batidas na porta. Quando iam
atender, não havia ninguém e o portão ficava sempre trancado com cadeado. Não
havia tempo suficiente para alguém bater e pular o muro sem que ninguém
percebesse. Carlos que sempre chegava após às 22:00 horas, não acreditava em
tal estória.
Porém um dia, Carlos chegara mais cedo em casa e novamente às 22:00 horas
bateram na porta. Carlos correu até a porta e não vendo ninguém por perto,
gritou aos quatro cantos:
- "Manoel, é você? Se for você mesmo, apareça."
Para espanto de todos, nesta noite, à meia-noite o neném acordou chorando e
Carlos ao entrar no quarto viu um cachorro branco dentro do berço. Ninguém na
casa via o tal cachorro, mas Carlos insistia em tentar bater no cachorro com um
cinto e acabava por acertar o bebê.
Apesar de toda a confusão da noite, Carlos ainda duvidava de que havia um
fantasma na casa. No fim de semana, na sexta-feira, Carlos voltou a gritar aos
quatro cantos da casa, fazendo dessa vez, um desafio ao tal fantasma.
- "Se tiver alguém aqui mesmo, que atire essas almofadas que estão na sala
para o outro quarto."
De madrugada o filho mais velho da família, que também se chamava Carlos,
acordou desesperado gritando que alguém havia atirado almofadas em sua cabeça
enquanto dormia.
Carlos no dia seguinte, procurou o Monsenhor que providenciou a celebração de
uma missa em intenção a alma de "Manoel, o Açougueiro". Desde aquela
data, nunca mais ninguém ouviu batidas na porta da casa às 22:00 horas.
Re: Contos fantasticos !!!
Gwarach-y-Rhibyn
O significado do nome Gwrach-y-rhibyn,
literalmente é "Bruxa da Bruma" mas é mais comumente chamada de
"Bruxa da Baba". Dizem que parece com uma velha horrenda, toda
desgrenhada, de nariz adunco, olhos penetrantes e dentes semelhantes a presas.
De braços compridos e dedos com longas garras, tem na corcunda duas asas negras
escamosas, coriáceas como a de um morcego. Por mais diferente que ela seja da adorável
banshee irlandesa, a Bruxa da Baba do País de Gales lamenta e chora quando
cumpre funções semelhantes, prevendo a morte. Acredita-se que a medonha
aparição sirva de emissária principalmente às antigas famílias galesas. Alguns
habitantes de Gales até dizem ter visto a cara dessa górgona; outros conhecem a
velha agourenta apenas por marcas de garras nas janelas ou por um bater de
asas, grandes demais para pertencer a um pássaro.
Uma antiga família que teria sido assombrada pela
Gwrach-y-rhibyn foi a dos Stardling, do sul de Gales. Por setecentos anos, até
meados do século XVIII, os Stardling ocuparam o Castelo de São Donato, no
litoral de Glamorgan. A família acabou por perder a propriedade, mas parece que
a Bruxa da Baba continuou associando São Donato aos Stardling.
Uma noite, um hóspede do Castelo acordou com o som de uma
mulher se lamuriando e gemendo abaixo de sua janela. Olhou para fora, mas a
escuridão envolvia tudo. Em seguida ouviu o bater de asas imensas. Os
misteriosos sons assustaram tanto o visitante que este voltou para cama, não
sem antes acender uma lâmpada que ficaria acesa até o amanhecer. Na manhã
seguinte, indagando se mais alguém havia ouvido tais barulhos, a sua anfitriã
confirmou os sons e disse que seriam de uma Gwrach-y-rhibyn que estava
avisando de uma morte na família Stardling. Mesmo sem haver um membro da
família morando mais no casarão, a velha bruxa continuava a visitar a
casa que um dia fora dos Stardling. Naquele mesmo dia, ficou-se sabendo que o
último descendente direto da família estava morto.
O significado do nome Gwrach-y-rhibyn,
literalmente é "Bruxa da Bruma" mas é mais comumente chamada de
"Bruxa da Baba". Dizem que parece com uma velha horrenda, toda
desgrenhada, de nariz adunco, olhos penetrantes e dentes semelhantes a presas.
De braços compridos e dedos com longas garras, tem na corcunda duas asas negras
escamosas, coriáceas como a de um morcego. Por mais diferente que ela seja da adorável
banshee irlandesa, a Bruxa da Baba do País de Gales lamenta e chora quando
cumpre funções semelhantes, prevendo a morte. Acredita-se que a medonha
aparição sirva de emissária principalmente às antigas famílias galesas. Alguns
habitantes de Gales até dizem ter visto a cara dessa górgona; outros conhecem a
velha agourenta apenas por marcas de garras nas janelas ou por um bater de
asas, grandes demais para pertencer a um pássaro.
Uma antiga família que teria sido assombrada pela
Gwrach-y-rhibyn foi a dos Stardling, do sul de Gales. Por setecentos anos, até
meados do século XVIII, os Stardling ocuparam o Castelo de São Donato, no
litoral de Glamorgan. A família acabou por perder a propriedade, mas parece que
a Bruxa da Baba continuou associando São Donato aos Stardling.
Uma noite, um hóspede do Castelo acordou com o som de uma
mulher se lamuriando e gemendo abaixo de sua janela. Olhou para fora, mas a
escuridão envolvia tudo. Em seguida ouviu o bater de asas imensas. Os
misteriosos sons assustaram tanto o visitante que este voltou para cama, não
sem antes acender uma lâmpada que ficaria acesa até o amanhecer. Na manhã
seguinte, indagando se mais alguém havia ouvido tais barulhos, a sua anfitriã
confirmou os sons e disse que seriam de uma Gwrach-y-rhibyn que estava
avisando de uma morte na família Stardling. Mesmo sem haver um membro da
família morando mais no casarão, a velha bruxa continuava a visitar a
casa que um dia fora dos Stardling. Naquele mesmo dia, ficou-se sabendo que o
último descendente direto da família estava morto.
Re: Contos fantasticos !!!
A Virgem do Poço
Havia no Japão Feudal do século XVII uma bela jovem de nome Okiko. Essa jovem
era serva de um Grande Senhor de Terras e Exércitos, seu nome era Oyama Tessan.
Okiko que era de uma família humilde, sofria assédios diários de seu Mestre,
mas sempre conseguia se manter longe de seus braços.
Cansado de tantas recusas, Tessan arquitetou um plano sórdido para que Okiko se
entregasse à ele. Certo dia, Tessan entregou aos cuidados de Okiko uma sacola
com 9 moedas de ouro holandesas -mas dizendo que havia 10 moedas- para que as
guardasse por um tempo. Passado alguns dias, Tessan pediu que a jovem
devolvesse as "10" moedas.
A donzela, ao constatar que só havia 9 moedas, ficou desesperada e contou as
moedas várias vezes para ver se não havia algum engano. Tessan se mostrou
furioso com o "sumiço" de uma de suas moedas, mas disse que se ela o
aceitasse como marido, o erro seria esquecido. Okiko pensou a respeito e
decidiu que seria melhor morrer do que casar com seu Mestre. Tessan furioso com
tal repúdio, agarrou a jovem e a jogou no poço de seu propriedade. Okiko morreu
na hora.
Depois do ocorrido, todas as noites, o espectro de Okiko aparecia no poço com
ar de tristeza, pegava a sacola de moedas e as contava... quando chegava até a
nona moeda, o espectro suspirava e desaparecia. Tessan assistia aquela
melancólica cena todas as noites, e torturado pelo remorso, pediu ajuda à um
amigo para dar um fim àquela maldição.
Na noite seguinte, escondido entre os arbustos perto do poço, o amigo de Tessan
esperou a jovem aparecer para dar fim ao sofrimento de sua alma. Quando o
fantasma contou as moedas até o 9, o rapaz escondido gritou: ...10!!! O
fantasma deu um suspiro de alívio e nunca mais apareceu.
Essa Lenda do século XVIII, é uma das mais famosas do folclore japonês.
Havia no Japão Feudal do século XVII uma bela jovem de nome Okiko. Essa jovem
era serva de um Grande Senhor de Terras e Exércitos, seu nome era Oyama Tessan.
Okiko que era de uma família humilde, sofria assédios diários de seu Mestre,
mas sempre conseguia se manter longe de seus braços.
Cansado de tantas recusas, Tessan arquitetou um plano sórdido para que Okiko se
entregasse à ele. Certo dia, Tessan entregou aos cuidados de Okiko uma sacola
com 9 moedas de ouro holandesas -mas dizendo que havia 10 moedas- para que as
guardasse por um tempo. Passado alguns dias, Tessan pediu que a jovem
devolvesse as "10" moedas.
A donzela, ao constatar que só havia 9 moedas, ficou desesperada e contou as
moedas várias vezes para ver se não havia algum engano. Tessan se mostrou
furioso com o "sumiço" de uma de suas moedas, mas disse que se ela o
aceitasse como marido, o erro seria esquecido. Okiko pensou a respeito e
decidiu que seria melhor morrer do que casar com seu Mestre. Tessan furioso com
tal repúdio, agarrou a jovem e a jogou no poço de seu propriedade. Okiko morreu
na hora.
Depois do ocorrido, todas as noites, o espectro de Okiko aparecia no poço com
ar de tristeza, pegava a sacola de moedas e as contava... quando chegava até a
nona moeda, o espectro suspirava e desaparecia. Tessan assistia aquela
melancólica cena todas as noites, e torturado pelo remorso, pediu ajuda à um
amigo para dar um fim àquela maldição.
Na noite seguinte, escondido entre os arbustos perto do poço, o amigo de Tessan
esperou a jovem aparecer para dar fim ao sofrimento de sua alma. Quando o
fantasma contou as moedas até o 9, o rapaz escondido gritou: ...10!!! O
fantasma deu um suspiro de alívio e nunca mais apareceu.
Essa Lenda do século XVIII, é uma das mais famosas do folclore japonês.
Re: Contos fantasticos !!!
O Melhor Amigo do Homem
No interior de Minas contam uma história de um sujeito que perdeu-se em uma
mata. ficou vagando por dias, sem água ou comida. Todo maltrapilho e à beira da
morte viu de longe em uma clareira um cão que latia para ele. Por um momento
pensou que fosse uma alucinação causada pelo seu estado debilitado. Chegando
mais perto, pode ver que se tratava de um cão de verdade que se afastava a
passos lentos cada vez que o sujeito se aproximava.
Pensou então com ele: "Se há um cachorro aqui, devo estar perto de alguma
habitação. Alguém deve morar por perto. Vou segui-lo."
Andou na direção do animal, que se afastava como que mostrando um caminho para
o homem. Após alguns horas o sujeito pode ver uma pequena casinha mal
construída, feita de barro e palha, onde um casal sentado à porta, conversava
sobre amenidades.
Feliz e desesperado, o homem correu na direção dos dois moradores, sentindo-se
salvo.
Assustados, os dois receberam o homem tentando entender o que havia se passado.
Depois de beber um pouco d'água e se recuperar, o sujeito contou a história,
falando do cachorro que o havia guiado pela mata até o local onde estava agora.
Entreolhando-se, os dois moradores desconfiaram da história, dizendo que não
havia nenhum cachorro pelas redondezas. Ele, então, se propôs a levar os dois
céticos ao local onde havia visto o cachorro pela primeira vez.
Ao chegar lá, nada viram a não ser uma cruz sobre uma cova rasa, que o morador
informou tratar-se do túmulo do filho, que havia sido assassinado por uma
matilha de lobos.
No interior de Minas contam uma história de um sujeito que perdeu-se em uma
mata. ficou vagando por dias, sem água ou comida. Todo maltrapilho e à beira da
morte viu de longe em uma clareira um cão que latia para ele. Por um momento
pensou que fosse uma alucinação causada pelo seu estado debilitado. Chegando
mais perto, pode ver que se tratava de um cão de verdade que se afastava a
passos lentos cada vez que o sujeito se aproximava.
Pensou então com ele: "Se há um cachorro aqui, devo estar perto de alguma
habitação. Alguém deve morar por perto. Vou segui-lo."
Andou na direção do animal, que se afastava como que mostrando um caminho para
o homem. Após alguns horas o sujeito pode ver uma pequena casinha mal
construída, feita de barro e palha, onde um casal sentado à porta, conversava
sobre amenidades.
Feliz e desesperado, o homem correu na direção dos dois moradores, sentindo-se
salvo.
Assustados, os dois receberam o homem tentando entender o que havia se passado.
Depois de beber um pouco d'água e se recuperar, o sujeito contou a história,
falando do cachorro que o havia guiado pela mata até o local onde estava agora.
Entreolhando-se, os dois moradores desconfiaram da história, dizendo que não
havia nenhum cachorro pelas redondezas. Ele, então, se propôs a levar os dois
céticos ao local onde havia visto o cachorro pela primeira vez.
Ao chegar lá, nada viram a não ser uma cruz sobre uma cova rasa, que o morador
informou tratar-se do túmulo do filho, que havia sido assassinado por uma
matilha de lobos.
Re: Contos fantasticos !!!
O Baile
Era um sábado à noite... O baile iria começar às 23:00 hs. Todos chiques, bem
arrumados, vestidos para uma noite de gala. Mulheres lindas, homens charmosos.
Richard tinha ido ao baile sozinho. Não tinha namorada, apesar de ser muito
bonito. No baile conheceu uma moça muito bonita que estava sozinha e procurava
alguém com quem dançar.
Richard dançou com ela a noite toda, e conversaram por muito tempo. Acabaram se
apaixonando naquela noite, mas tudo só ficou na conversa e no romantismo. No
final do baile, Richard prometeu que levaria a moça embora, mas de repente ela
sumiu. Ele procurou-a por todo o salão por muito tempo. Como não encontrou,
desistiu e foi embora.
No caminho para sua casa, ainda muito triste, ele passou em frente ao cemitério
e viu a moça entrando lá. Desconfiou do que tinha visto... suspeitou que fosse
o cansaço e que estivesse sonhando.
Quando Richard chegou em casa, ele não conseguia dormir, nem parava de pensar
na cena que tinha visto da moça entrando no cemitério.
Quando amanheceu o dia, Richard não se conteve e foi ao cemitério. Estava vazio
e ele não encontrou ninguém. Passando por um dos túmulos, ele encontrou a foto
da garota, vestida como no baile. E lá estava registrado que ela tinha morrido
há dez anos.
E um detalhe: Ninguém viu a moça com que Richard dançou a noite toda, a não ser
ele. Ninguém mais viu a tal mulher entrando ou saindo.
Era um sábado à noite... O baile iria começar às 23:00 hs. Todos chiques, bem
arrumados, vestidos para uma noite de gala. Mulheres lindas, homens charmosos.
Richard tinha ido ao baile sozinho. Não tinha namorada, apesar de ser muito
bonito. No baile conheceu uma moça muito bonita que estava sozinha e procurava
alguém com quem dançar.
Richard dançou com ela a noite toda, e conversaram por muito tempo. Acabaram se
apaixonando naquela noite, mas tudo só ficou na conversa e no romantismo. No
final do baile, Richard prometeu que levaria a moça embora, mas de repente ela
sumiu. Ele procurou-a por todo o salão por muito tempo. Como não encontrou,
desistiu e foi embora.
No caminho para sua casa, ainda muito triste, ele passou em frente ao cemitério
e viu a moça entrando lá. Desconfiou do que tinha visto... suspeitou que fosse
o cansaço e que estivesse sonhando.
Quando Richard chegou em casa, ele não conseguia dormir, nem parava de pensar
na cena que tinha visto da moça entrando no cemitério.
Quando amanheceu o dia, Richard não se conteve e foi ao cemitério. Estava vazio
e ele não encontrou ninguém. Passando por um dos túmulos, ele encontrou a foto
da garota, vestida como no baile. E lá estava registrado que ela tinha morrido
há dez anos.
E um detalhe: Ninguém viu a moça com que Richard dançou a noite toda, a não ser
ele. Ninguém mais viu a tal mulher entrando ou saindo.
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